Professor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, Renato Janine Ribeiro tem há muitos anos contato frequente com jornalistas. Durante cinco meses, em 2015, ele experimentou essa convivência sob outra ótica, como ministro da Educação. Antes disso, de 2011 a 2013, ministrou curso de Ética na Imprensa na pós-graduação da Escola Superior de Propaganda e Marketing, e acumulou reflexões sobre esse universo, que começou a conhecer de casa: seu pai, Benedicto Ribeiro, foi presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo entre 1959 e 1961.
A experiência no curso resultou no recém-lançado livro A Imprensa entre Antígona e Maquiavel – A ética jornalística na vida real das redações. Organizada por Janine, a obra traz trabalhos selecionados entre os alunos, com abordagens sobre dilemas cotidianos do exercício da profissão.
"O objetivo dos trabalhos, que eu pedi aos alunos, é o que coloca você em xeque eticamente. Pode ser uma ordem que o jornalista recebeu que vai contra a verdade dos fatos, pode ser uma situação imprevista, o caso de uma jornalista que descobre uma mãe de rua que está proibida pela Justiça de ter contato com o filho, que já venceu as drogas, e quer ter contato", diz Janine. "O que eu queria fazer com os alunos, e acho que eles corresponderam muito bem a isso, era desafiá-los para além das regras burocráticas."
O jornalista lida o tempo todo com a questão ética, lembra o professor. "Não dá para você pensar a ética sem Antígona", afirma, em referência à personagem de Sófocles que reage a uma determinação do rei que considera injusta e morre por causa disso. "Uma pessoa que viola a lei conscientemente, que corre riscos." No caso do pensador Maquiavel – também um pensador ético, observa Janine –, a importância está em pensar nasconsequências de seus atos.
Como ministro, Janine diz não ter queixas dos jornalistas com quem conversava, mas constata que a educação não costumar ser prioridade para a mídia, com poucas exceções. Assim, em vez de discutir questões como base curricular, a imprensa parece preferir uma boa fofoca.
Leia, a seguir, a íntegra da entrevista. Parte será publicada na edição de maio da Revista do Brasil.
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Logo no início do livro, o sr. escreve: "Não é fácil ser ético no jornalismo. Por que isso acontece? O jornalista perdeu uma certa "consciência cidadã", ou foi pela fragilização como categoria?
São as condições de trabalho do jornalista que acabam colocando, a meu ver, duas questões muito conflituosas entre si: por um lado, o jornalista está o tempo todo, ao narrar suas histórias, suas reportagens, com frequência está exprimindo valores. Sobretudo hoje no Brasil, quando é muito difícil os jornais separarem a parte de cobertura das notícias e a parte de opinião editorial, o que é uma falha monumental do jornalismo. Mesmo que a rigor seja impossível separar radicalmente juízo de valor e relato do que aconteceu, porque a própria escolha do que você vai relatar já é um juízo de valor, apesar disso, você tem de fazer o possível para separar. Costumo dizer que o jornalismo é uma missão impossível. Você não vai conseguir fazer separação radical, mas tem de lutar com todas as forças para efetuá-la. E o jornalismo brasileiro não faz isso, mistura o valor no relato dos fatos, mistura opinião nas notícias, e com isso foge à missão dele.
Agora, justamente porque o jornalista acaba exprimindo um valor, o trabalho dele é muito diferente do trabalho de marceneiro. O marceneiro tem de fazer um trabalho bom, mas não está exprimindo valor sobre o mundo, uma opinião sobre conflitos políticos, sociais, econômicos, pelo menos não diretamente. Já o trabalho do jornalista está constantemente tratando desses pontos. Então, a posição do jornalista em relação à ética é muito especial, porque a cada momento ele está sendo demandado a ser ético ou não ser. Quando você lida com as coisas, a sua ética mais ou menos se esgota no fazer bem o seu trabalho e cobrar o valor justo, sem exageros. Quando você é jornalista, a sua ética se expressa nas minúcias do seu trabalho. Por outro lado, para esse jornalista que está exprimindo juízo, você tem uma pressão muito forte das empresas, sobretudo quando no nosso país elas decidiram tomar uma posição uma determinada posição política em relação ao próprio governo. Isso torna a questão da cobertura jornalística muito delicada. (A jornalista) Barbara Gancia disse há poucos dias que na Band foi proibida ou dissuadida de criticar o presidente da Câmara dos Deputados. Isso é algo incompatível com o jornalismo. Passamos a ter agendas nos jornais que não são do bom jornalismo.
O livro trata de casos...
No livro que organizei, com trabalhos de um curso de Ética para um curso de jornalismo, você tem relatos de histórias complicadas. Por exemplo, a cidade onde apareceu um outdoor homófobo, os jornalistas querem criticar, mas o outdoor é de uma seita religiosa que tem negócios com o dono do jornal, que não quer que seja criticada uma flagrante violação dos direitos humanos. Você tem outra história, de uma jornalista que vai ver uma praia no Guarujá, onde o acesso ao mar é fechado, e essa praia tem ilustres figuras da República no período Fernando Henrique Cardoso. Nesse segundo caso, o jornal publica, e a matéria tem repercussões positivas, tanto que o próprio Ministério Público tomou iniciativas visando a abrir o acesso à praia. Mas muitas vezes o jornalista tem de dizer aquilo com que ele não concorda, tem de assumir a camisa do jornal. Quer dizer, você tem duas situações, ele dizer aquilo que não é opinião dele, mas assinando, porque se tornou praxe assinar matéria, então, ele assume responsabilidades por algo que não é a convicção dele e, por outro lado, você tem também uma dificuldade grande da independência jornalística de apurar os fatos, doa a quem doer.
A BBC World me entrevistou há duas semanas sobre o Brasil. Eu disse o que eu acho, que não há fundamentação jurídica para o impeachment. Mas eles pegaram muito pesado. Não são como a imprensa brasileira, que pega leve, deixa você falar. O cara cortava e cobrava. E é isso o correto. Não é o jornalista que te dá corda para você continuar defendendo suas ideias. Jornalista cobra. A própria BBB entrevistou o Fernando Henrique Cardoso, mas em 2008, e cada vez que ele tomava a defesa do governo eles pegavam pesado, dizendo "o senhor tolerou a corrupção, o senhor não fez tal coisa". E quando ele tentava partir para uma generalidade ou para seu conhecido charme, o jornalista voltava. Você tem jornalistas que fazem isso. O Mario Sérgio Conti é um jornalista que cobra dos entrevistados. Mas é muito comum o jornalista estar seguindo uma plataforma que não é dele.
Havia um pouco mais de contestação dentro da redação contra as ordens do que se chamava de aquário. Hoje, além dessa dificuldade que ele tem, às vezes, o jornalista não está mais identificado com o ponto de vista do dono?
Isso não é 100%, mas é frequente. Você tem exceções, que são importantes. Você tem jornalistas, mesmo dentro de jornais conservadores, que fazem uma pauta mais independente. Mas a maior parte dos jornalistas promovidos é os que se identificam com a linha editorial do jornal. Isso causa um problema. Outro problema é que os jornais foram dando muito importância a colunistas. Em tese, isso é muito bom, porque são vozes diferentes, independentes, às vezes especializadas nos assuntos. Ter um colunista como Drauzio Varella, por exemplo, é um luxo. Mas você tem um volume de colunistas que repetem toda semana a mesma coisa. E tem outro problema que ficou agudo, que é a escassez de reportagens, poucas que cubram efetivamente o que acontece no país, na sociedade. Hoje, os grandes jornais têm um grande desconhecimento do que está acontecendo no Brasil. Com exceção do Valor e em menor medida do Globo, você não tem uma cobertura detalhada, uma rede de correspondentes vasta. O Globo tem, cobre melhor o Brasil como um todo, o Valormanda fazer reportagens específicas, como uma sobre educação no Ceará, faz uns quatro anos, que são notáveis, porque permitem conhecer o que não saberíamos. Há um caso famoso de um colunista da Folhaque, de férias no Nordeste, depara com um ônibus em que estava escrito alguma coisa como transporte escolar para a zona rural. Isso era uma novidade criada pelo ministro (Fernando) Haddad. Milhões de crianças transportadas todos os dias nesses veículos, e o jornal não sabia. É muito grave você ter um jornal que não sabe o que está acontecendo na educação brasileira, ou na saúde. Quando você vê a discussão de políticas públicas, essa discussão muita vezes pega uma questão totalmente secundária.
Por exemplo...
A questão da base curricular, que eu lancei. Tinha uma deficiência série em história que eu tentei corrigir. A área de história foi absolutamente impermeável, fez um projeto, a meu ver, errado. Mas a maior parte da discussão foi sobre isso, excetuando mais uma vez o Globo, que dá uma importância grande à educação. Você tem um compromisso com a educação que os jornais paulistas não têm. Se dão sorte de ter um bom repórter, até cobrem alguma coisa. O Luiz Fernando Toledo fez uma cobertura muito boa da ocupação das escolas no ano passado. Mas, de modo geral, a educação não é uma prioridade dos jornais. Então, acaba sendo mais interessante, mais divertido você fazer uma fofoca, especular, por exemplo, se o ministro vai continuar ou não, se viajou ou não com a presidente Dilma, acaba se tornando quase mais importante do que entrar na discussão de quais são as metas que a educação deve ter. Dos três grandes jornais, só um me chamou. Aí, eu dei uma sugestão ao Otávio Frias Filho, vocês podiam colocar grandes discussões educacionais, como métodos de alfabetização. Ele gostou da ideia e não fez nada disso. Esse é apenas um exemplo.
Você tem pouca discussão sobre educação, a não ser quando a discussão já é ideológica. Se der para fazer ideológica, eles fazem. Por exemplo, existe uma tese de que os livros didáticos visam a formar opiniões mais de esquerda... Esse tese é bastante equivocada, até porque o livro mais criticado, mais atacado por isso, foi distribuído pelo governo Fernando Henrique e não pelos governos petistas. Mas essa é uma discussão que acaba ficando mais atraente do que discutir, por exemplo, que tipo de formação você quer do aluno de 8, 9, 10 anos, que você quer de Matemática, Química, Biologia, História, Geografia, que é a discussão da base curricular, que é muito importante. Significa discutir o que você quer que a criança saiba do mundo, em que universo ela está.
Como professor, intelectual, o sr. tem contato frequente com jornalistas, em outro tipo de abordagem. Como ministro, se espantou um pouco com o que saía após conversar com jornalistas?
Eu me surpreendia com o que saía na imprensa, não por força de conversas, mas pelo que a imprensa relatava. As conversas que eu tive foram praticamente todas tratadas com fidelidade. Eu tenho muito pouco queixa do jornalismo. Agora, quando você não é da carreira política e assume um cargo de ministro, ou um cargo desses, em que se torna vidraça, gigantesca, você tem uma suscetibilidade maior que um político de carreira, que está acostumado a ser atacado e depois fazer as pazes e se aliar com quem o atacou. Uma pessoa que não é político de carreira, sobretudo um intelectual, leva um choque diante de uma mentira. Então, a mentira assume uma dimensão gigantesca.
No meu primeiro fim de semana como ministro, eu vim a São Paulo no começo da sexta-feira para uma agenda de trabalho, e saiu uma matéria na Folha de S. Paulo dizendo que eu tinha violado uma regra recém-editada pela presidente, que proibia uso de jatinho para voltar para casa. Bom, eu tinha vindo para trabalho. E a notícia acrescentava que não tinham conseguido contato com o ministro. A Folha tem meus telefones, e-mail, há 30 anos ou mais. Então, a notícia era duplamente mentirosa. Nós nos queixamos, eles mantiveram que tinham tentado contato. Fizeram o seguinte: o repórter de Belém, não sei o que ele tinha a ver com Brasília, São Paulo, deve ter telefonado para o MEC, era um sábado, não tinha ninguém, não olhou o site para ver que tinha lá o celular da assessora de imprensa, que está sempre disponível, então o resultado disso tudo é um absurdo.
Você diz uma mentira e fica por isso mesmo. Esse é um caso pequeno, mas me causou um choque. Um ministro político nem dá bola para isso, desmente e sabe que o jornal vai embrulhar peixe. Agora, quando você vem do mundo acadêmico, a mentira, a imprecisão, a deformação da notícia causam um incômodo muito maior. Mais grave do que isso, é a experiência do descaso com a informação, mais uma vez com exceção doGlobo. Você pode fazer muitas críticas ao império Globo... Não estou falando da TV, mas o veículo impresso e a Fundação Roberto Marinho têm compromisso com a educação.
Do ponto de vista político, a sua passagem pelo ministério, relativamente curta, deixou frustração?
Claro que deixou. Eu assumi sem ter recursos, numa fase de cortes constantes, com muito pouco apoio do governo, que não se empenhou em fortalecer o MEC. Apesar de a presidente ter falado em Pátria Educadora, não houve um fortalecimento do MEC. Isso criou uma situação difícil de trabalho. E há outro lado que afetaria qualquer pessoa que chegasse lá: foi o momento em que a prosperidade de 12 anos, graças ao boom das commodities etc, chegou ao fim, a um fim brutal. Durante 12 anos, o Brasil teve recursos bem mais fartos, usou bem os recursos, em educação, saúde, desenvolvimento social, e de repente esse dinheiro estancou, acabou. Essa é uma hora muito difícil, porque as pessoas estão acostumadas a gastar mais e mais, fazer projetos o tempo todo, sem pensar no rendimento, na qualidade, no desperdício, que são inevitáveis quando você está em plena expansão. Quando você tem de dar essa volta, a própria base do governo fica contra. Você tem criação de quase 20 universidades federais, mais de 100 campi, uma série de projetos, alguns já em andamento, de construção de campi universitários às vezes em cidades muito pequenas. E de repente nada disso pode ser feito. E aí quando você percebe que não tem como fazer, começa a discutir os critérios e vê que às vezes um passo foi dado sem o passo anterior estar assegurado.
O governo, acreditando que tinha muito dinheiro e que as coisas pelo investimento criterioso de dinheiro iriam melhorar, não foi tão criterioso na execução. Um exemplo: em 2014, ano da campanha eleitoral, teve 730 mil financiamentos do Fies, mas não houve um critério para quais áreas, quais regiões, ou qual qualidade de curso. Essa foi uma das coisas que consegui fazer, e não foi fácil. Eu coloquei como critério o tipo de curso. Tínhamos 16% de financiamentos para Direito, caiu para menos de 10%. Fortaleci Engenharia, saúde e professorado. Não havia critério de notas de curso. Fortaleci os cursos de nota mais alta, 5 e 4. E regiões, também fortaleci as menos desenvolvidas. Não havia esses critérios. Desse jeito, com menos vagas, a gente conseguiu dar um preenchimento mais justo.
A expansão da universidades com os governos Lula e Dilma foi uma medida muito necessária, mas não mexeu na ética dos estudantes. O Brasil tem tendência a acreditar que universidade serve para uma coisa só: dar diploma, formar pessoas. Esquece que a universidade tem um trabalho importante de pesquisa e de extensão. Não é porque a USP forma 10 ou 20 mil alunos por ano que ela é boa, mas porque tem um ... de ponta. A opinião pública pensa que é só a vaga e que o pai não vai pagar nada. Então, há uma série de derivadas éticas. A pessoa acha que o diploma é propriedade privada dela. Tira vantagem com isso e não deve nada à sociedade, nada. Não pensa, como o norte-americano pensaria, em deixar uma parte de herança à universidade que tanto o formou. Não pensa em escolher uma modalidade de profissionais que seja mais útil ao país. Isso tudo cria problemas grandes. Cria até uma coisa irônica: tradicionalmente, as universidades têm movimentos estudantis de esquerda, que muitas vezes são apenas um local de passagem. A pessoa passa quatro anos na universidade, faz greves, manifestações, e depois vai viver a vida conservadora dela como se aquilo tivesse sido só um carnaval pelo qual ela passou. Não deixa marcas. Alguns dos nossos propagandistas mais de direita são egressos do movimento trotskista de extrema-esquerda. O que isso quer dizer senão que aquilo tudo era superfície, não entrou no DNA da pessoa, na corrente sanguínea?
A universidade pública, muitas vezes é um espaço de militância política facilitada, sem profundidade. Fica só na demagogia. O que precisa ter sido feito, precisaria ter apoio efetivo para isso, era rever a estrutura universitária, para tempos de crise, para tentar preservar o principal e, ao mesmo tempo, aprender que a mesma coisa era feita por vários atores, havia repetição de funções, desperdício funcional. Por exemplo, a greve dos servidores, no ano passado – uma das principais reivindicações era trabalhar 30 horas por semana em vez de 40, mantendo salário. Num momento em que o governo não tem como contratar substitutos e está havendo um desemprego crescente, uma crise no país, uma reivindicação desse tipo é um acinte. É uma falta de compromisso com a sociedade surpreendente. Então, esses foram pontos difíceis. Ao mesmo tempo, na greve dos professores de universidades federais, uma das reivindicações era tirar dinheiro da educação básica. Queriam quase todo o dinheiro da União fosse para as universidades federais. Foi um esforço enorme dos governos petistas ampliar o dinheiro para a educação básica, que é o que é decisivo no Brasil. Aí você tem gente que se diz de esquerda, inclusive que acusa o governo de não ser suficientemente de esquerda, querendo tirar dinheiro das crianças.
Para o sr., que é professor de Ética, não é um paradoxo, ou uma ironia, termos um Conselho de Ética da Câmara dos Deputados que não conseguiu punir um deputado que inclusive é réu no Supremo Tribunal Federal? Por que o Conselho não funciona nesse caso?
O Conselho de Ética tenta funcionar, é que constantemente o presidente Cunha intervém. Agora, por que o Cunha está forte? Porque o Executivo se enfraqueceu muito. Ele adquiriu um protagonismo enorme, com uma pauta que não tem nada de bom para o Brasil. A maior parte dos projetos agrava a crise ou recua na tolerância à diferença. Agora, ele conseguiu isso porque o Executivo está fraco. E como essa pauta dele é poderosa só na aparência, porque não está caminhando para resolver nada no Brasil, o Executivo e o Legislativo ficam fracos, e quem se fortalece é o Judiciário. Nós estamos vivendo um momento em que o Judiciário, especificamente o juiz Sérgio Moro, a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República estão ocupando um espaço que foi abandonado pelo Executivo e pelo Legislativo. Os dois poderes democraticamente eleitos não estão cumprindo o seu papel, e o poder que não é eleito, faz parte do nosso sistema, tem toda legitimidade, mas está avançando em prerrogativas que são dos poderes eleitos. Nós temos uma situação muito delicada do ponto de vista democrático. Questões que deveriam ser resolvidas pelo voto popular estão sendo encaminhadas para decisão tribunalícia.
Houve algum abuso, algum exagero?
Parece que o juiz Sérgio Moro exagera em algumas medidas. Mas o que dá força a ele? É que você tem um magistrado que está atuando, pegando corrupto, mandando para a cadeia e reavendo dinheiro. Em sã consciência, como uma pessoa assim não seria popular, se está fazendo algo que contrasta com a morosidade, para fazer um mau trocadilho, do sistema judiciário? Temos um sistema todo voltado para absolver as pessoas pelo decurso de prazo, pelo recursos... Agora, isso favorece, sim, excessos, há várias medidas dele que são excessivas, e o próprio Supremo censurou, condenou. Agora, mais uma vez, tudo isso vem do vazio. Uma sucessão de vazios. O Executivo federal está fraco, esvaziado, fortalece o Cunha. A soma de Executivo e Legislativo está fraca, não está fazendo nada de relevante para o país, fortalece o Judiciário. O Supremo Tribunal demora nas suas decisões, favorece o juiz Moro. Você tem uma sucessão de abdicações que vai levando ao fortalecimento de outros atores.
Outro esvaziamento que você tem, estamos discutindo só política. Agora, você tem uma economia despencando, e onde estão os empresários, os trabalhadores? Os trabalhadores se manifestam contra a destituição da Dilma, cujo governo não os alegra, não é progressista, de esquerda. Nem no primeiro mandato foi. Dilma ganhou a reeleição na hora em que a esquerda foi para a rua, no final da campanha de 2014, mas ela não tinha feito um governo voltado para essa base. Agora, as manifestações em defesa do mandato dela crescem porque a esquerda está indo para a rua, mas ela não vai fazer a agenda da esquerda se salvar o mandato. Porque vai ter de lidar com a economia, e a economia, hoje, não seria dois ou quatro anos atrás, a agenda de recuperação passa por medidas mais conservadoras.
Não sei dizer se houve um erro, se a nova matriz econômica da Dilma era errada ou se foi mal executada. Com toda a certeza, as desonerações das empresas foram um erro, e também foi um erro segurar o preço da gasolina a ponto de quebrar o álcool. Tivemos também a queda das commodities, que não dependeu do governo. É muito difícil saber se o projeto econômico dela estava errado, não acho que estivesse, mas a gestão acabou tendo problemas que estamos vivenciando agora.
O sr. falou dos empresários, que, em boa parte, estão investindo na saída desse governo, se manifestando nesse sentido, associações empresariais, a começar da Fiesp...
Vamos tratar disso, que não é bem assim. A Fiesp é presidida por um não industrial. A Federação das Indústrias é presidida por uma pessoa que não tem indústria e está utilizando a Fiesp há vários anos como plataforma para seus interesses políticos. Se você comparar com a Confederação Nacional da Indústria, em nenhum momento a CNI defendeu o impeachment. O máximo que você teve foi o presidente dela, Robson Andrade, dizer que precisava de uma solução rápida e dentro da Constituição. Pode ser defesa do impeachment ou da derrota do impeachment, não foi claro isso. Eu não vi os empresários apoiando o impeachment.
Associações como Abigraf, a indústria têxtil...
Isso é muito recente. Os empresários não queriam o impeachment. Apesar das críticas fortes à presidente Dilma, eles preferiam uma mudança de rumo do governo na direção econômica em vez do impeachment. Tem de levar em conta, não é 1964. Em 1964, havia um pavor do comunismo, que tem hoje só nas cabeças de pessoas limitadas que fazem parte de alguns dos movimentos que vão para a rua. Mas você não tem isso nos agentes econômicos. Eles têm ou tinham uma grande admiração pelo Lula. Era o candidato preferido deles em 2010, quando ele não podia concorrer, em em 2014, quando podia. Então, o que você tem é que chegou uma hora em que o empresariado perdeu a expectativa com a presidente, gradualmente perdeu a esperança.
Sobre o Lula, voltando ao juiz Moro, o sr. se manifestou pelas redes sociais no episódio dos grampos ("Hoje muitos estão felizes porque acham que pegaram Lula e Dilma. Na verdade, pegaram você. Você não tem mais proteção contra os agentes da lei", escreveu Janine)...
Na hora em que rompe o seu sigilo, devassa a sua intimidade para expor falas que nem sequer são ilegais, mas que tem palavrões, todos nós estamos à mercê da arbitrariedade. Esse é um ponto, o juiz agiu de forma totalmente arbitrária, eticamente errado. Você selecionar um documento que desmoraliza o outro lado e, em função disso, divulgar. Está errado.
Desde 2013, quando houve aquelas manifestações que começaram com a questão da tarifa de transporte, a gente sente um descrédito muito crescente com políticos. Isso não é perigoso à medida que as pessoas deixam de acreditar na solução pela via política e podem passar a acreditar em outras fórmulas salvadoras?
Perigoso é. Fórmulas salvadoras, autoritárias, não vejo nenhuma no horizonte. Penso que o próprio juiz Moro acaba sendo construído como um salvador da pátria, independentemente de suas qualidades – faço questão de reconhecer as qualidades que eu vejo nele –, e isso tudo leva a esse esvaziamento da política, esse é um lado arriscado. Temos o risco de repetir a nossa fantasia com um Jânio, um Collor, de uma pessoa que vai pôr ordem no galinheiro. Isso é um mito forte, um mito brasileiro forte. Agora, por outro lado, os nossos políticos se esforçaram para se desmoralizar, não foi trabalho de um dia ou outro, foi constante, empenhado, vigoroso, fizeram o possível para se autodesmoralizar. O próprio PT. O discurso hoje em boa parte é: os outros fizeram isso. Não é: nós somos diferentes. Por exemplo, os abolicionistas diziam que a escravidão é uma chaga ética. O PT parou de dizer que a miséria é uma chaga ética, de dizer que combater a miséria é a ação ética por excelência. Aceitou discutir a política apenas no campo da corrupção. Corrupção é inaceitável, mas a ética não é só corrupção. Você não ser corrupto é apenas sua obrigação. O PT promoveu ações sociais importantes e não soube transformar isso num discurso ético. Então, esvaziou muito. Quando a gente vê hoje uma situação em que tirar a Dilma do poder representa até aumentar o percentual de políticos no poder, que popularidade vai ter esse governo, que apoio vai ter o governo pós impeachment, pós Dilma? Um erro gigantesco é considerar que os líderes do PMDB são burros. Ele achou que podia derrotar o Cunha na eleição da Câmara, que podia utilizar o Temer na base do on/off. Chama quando precisa, depois deixa de lado. O PMDB é muito sábio, muito experiente na política. Eles são profissionais, estão jogando pra valer.
Em seu livro A Regra do Jogo, o jornalista Claudio Abramo fala sobre a ética do jornalista, comparando-o com a do marceneiro, dizendo que, na verdade, o que existe é a ética do cidadão. Isso tem de alguma maneira relação com essas reflexões que o livro traz, sobre situações cotidianas que muitas vezes trazem dilemas?
O objetivo dos trabalhos, que eu pedi aos alunos, é o que coloca você em xeque eticamente. Pode ser uma ordem que o jornalista recebeu que vai contra a verdade dos fatos, pode ser uma situação imprevista, o caso de uma jornalista que descobre uma mãe de rua que está proibida pela Justiça de ter contato com o filho, que já venceu as drogas, e quer ter contato, a jornalista fica pensando "o que eu faço, eu violo a ordem judicial, o que posso fazer com isso", dada a lentidão do Judiciário nessas coisas. O que eu queria fazer com os alunos, e acho que eles corresponderam muito bem a isso, era desafiá-los para além das regras burocráticas. Você tem na sociedade um conjunto de regras burocráticas que você cumpre como cidadão obediente às leis. Só que a questão ética surge às vezes quando a lei não é suficiente, quando é injusta, ou quando a aplicação da lei... Nessas situações é que cabe perguntar: o que você faria? Para que a pessoa não seja apenas alguém que está cumprindo o tempo todo regras ditadas pelo Estado ou pela própria corporação. Não dá para você pensar a ética sem Antígona. Uma pessoa que viola a lei conscientemente, que corre riscos, que vai morrer por causa disso, porque ela considera injusto, e em função disso ela coloca bem cono começo da civilização, da cultura ocidental, essa ideia de alguém, que não por acaso uma mulher, que considera que tem valores acima dos valores do Estado.
A importância de Maquiavel, que é estranho para você pensar como um pensador ético, mas é, está na importância de você pensar consequências de seus atos. Há um caso que eu gosto muito é o de escola onde uma criança que teve câncer, teve de rapar o cabelo, aí todos os coleguinhas raparam o cabelo em solidariedade e virou um movimento muito bonito na cidade. O jornalista foi apurar a história e descobriu que não era verdade, que não tinha ocorrido isso. Aí fica a dúvida para o jornalista: eu desminto ou mantenho esse boato que está levando pessoas a serem mais solidárias? A solução automática é meu compromisso com a verdade, vou desmentir o boato. Agora, isso vai trazer consequências. Eu quero que essas consequências ocorram? Por outro lado, eu tenho tanto poder que posso tomar essa decisão? Esse tipo de questão acho que nem os jornalistas nem as pessoas comuns pensam no dia a dia.
O Claudio não está errado quando ele diz que é a mesma ética. O problema é que você não tem ética se você tiver certezas. Para você ter ética, você tem que ter dúvidas, questionamentos. Talvez o marceneiro tenha menos questionamentos do que o jornalista. Talvez. O jornalista tem uma questão delicada: eu vou esvaziar esse movimento em solidariedade às crianças cancerosas?
Houve o caso do Enem, também citado, quando um jornal, o Estadão, até avisou o ministério, que cancelou a prova. A preocupação era se isso, dependendo da forma como fosse feito, prejudicaria milhões de pessoas...
Prejudicou, e a gráfica e os criminosos até hoje não pagaram. O prejuízo foi grande para o ministério, mas foi para milhões de pessoas. Se essas milhões de pessoas entrassem com uma ação, os ladrões e a gráfica não teriam como pagar, e seria justo serem fortemente penalizados. Acho que a rigor o caso do Enem é até emblemático, porque tendo sido ministro eu diria que o impacto real do roubo das provas teria sido muito baixo. Se você tiver provas e pode vender para alguns interessados, primeiro não pode vender para muitos. Segundo, você tem de contratar quem resolva as questões, porque eles não tinham garabito. Então, tinha um custo. Aí você vai vender para pessoas interessadas em cursos mais caros, como Medicina. Se o sujeito for uma nulidade e entrar em Medicina, vai ser reprovado. No fundo, o mercado de venda dessas provas era baixo. Algumas dezenas de pessoas em milhões e milhões é muito pouco. Isso num raciocínio mais pragmático. Agora, na prática era uma notícia e não tinha mais controle. Na hora que essa informação sai, não existe mais controle. Você tem de cancelar a prova porque 50 que tenham fraudado já bastam para poluir todo o processo. Aí a decisão do ministro Haddad que foi uma decisão ética, ele teve de tomar uma decisão difícil.
A ética está em assumir responsabilidades?
A ética está em muitas coisas. Mas eu acho que no ensino é prioritário mostrar os casos difíceis, não os fáceis. Há casos fáceis: dar o troco devido, não mentir. Mas, por exemplo, um doente terminal: você mente ou diz a verdade para ele? Durante décadas ou séculos, se mentia. Hoje prevalece a ideia que você tem dizer a verdade. Mas nos dois casos é uma regra universal, isso não é ético. Você teria de tentar saber se para esse doente é melhor saber a verdade ou não. Pode ser que seja melhor não saber. A decisão é falível. Uma decisão coletiva tira das pessoas a decisão ética. Eu apenas cumpro uma regra.
O sr. considera esses meios ditos alternativos de comunicação, como sistes e blogs, uma alternativa importante de consumo de informação, em um setor tão concentrado (em termos empresariais)?
Considero. Permitem visões diferentes das que eram, e ainda são, predominantes. Contudo, os blogs de esquerda são ainda muito dependentes da grande mídia. Reproduzem e comentam notícias dela. Geram pouquíssimo conteúdo próprio. Por isso, estão muito longe de constituir um “quarto poder” alternativo.
A experiência no curso resultou no recém-lançado livro A Imprensa entre Antígona e Maquiavel – A ética jornalística na vida real das redações. Organizada por Janine, a obra traz trabalhos selecionados entre os alunos, com abordagens sobre dilemas cotidianos do exercício da profissão.
"O objetivo dos trabalhos, que eu pedi aos alunos, é o que coloca você em xeque eticamente. Pode ser uma ordem que o jornalista recebeu que vai contra a verdade dos fatos, pode ser uma situação imprevista, o caso de uma jornalista que descobre uma mãe de rua que está proibida pela Justiça de ter contato com o filho, que já venceu as drogas, e quer ter contato", diz Janine. "O que eu queria fazer com os alunos, e acho que eles corresponderam muito bem a isso, era desafiá-los para além das regras burocráticas."
O jornalista lida o tempo todo com a questão ética, lembra o professor. "Não dá para você pensar a ética sem Antígona", afirma, em referência à personagem de Sófocles que reage a uma determinação do rei que considera injusta e morre por causa disso. "Uma pessoa que viola a lei conscientemente, que corre riscos." No caso do pensador Maquiavel – também um pensador ético, observa Janine –, a importância está em pensar nasconsequências de seus atos.
Como ministro, Janine diz não ter queixas dos jornalistas com quem conversava, mas constata que a educação não costumar ser prioridade para a mídia, com poucas exceções. Assim, em vez de discutir questões como base curricular, a imprensa parece preferir uma boa fofoca.
Leia, a seguir, a íntegra da entrevista. Parte será publicada na edição de maio da Revista do Brasil.
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Logo no início do livro, o sr. escreve: "Não é fácil ser ético no jornalismo. Por que isso acontece? O jornalista perdeu uma certa "consciência cidadã", ou foi pela fragilização como categoria?
São as condições de trabalho do jornalista que acabam colocando, a meu ver, duas questões muito conflituosas entre si: por um lado, o jornalista está o tempo todo, ao narrar suas histórias, suas reportagens, com frequência está exprimindo valores. Sobretudo hoje no Brasil, quando é muito difícil os jornais separarem a parte de cobertura das notícias e a parte de opinião editorial, o que é uma falha monumental do jornalismo. Mesmo que a rigor seja impossível separar radicalmente juízo de valor e relato do que aconteceu, porque a própria escolha do que você vai relatar já é um juízo de valor, apesar disso, você tem de fazer o possível para separar. Costumo dizer que o jornalismo é uma missão impossível. Você não vai conseguir fazer separação radical, mas tem de lutar com todas as forças para efetuá-la. E o jornalismo brasileiro não faz isso, mistura o valor no relato dos fatos, mistura opinião nas notícias, e com isso foge à missão dele.
Agora, justamente porque o jornalista acaba exprimindo um valor, o trabalho dele é muito diferente do trabalho de marceneiro. O marceneiro tem de fazer um trabalho bom, mas não está exprimindo valor sobre o mundo, uma opinião sobre conflitos políticos, sociais, econômicos, pelo menos não diretamente. Já o trabalho do jornalista está constantemente tratando desses pontos. Então, a posição do jornalista em relação à ética é muito especial, porque a cada momento ele está sendo demandado a ser ético ou não ser. Quando você lida com as coisas, a sua ética mais ou menos se esgota no fazer bem o seu trabalho e cobrar o valor justo, sem exageros. Quando você é jornalista, a sua ética se expressa nas minúcias do seu trabalho. Por outro lado, para esse jornalista que está exprimindo juízo, você tem uma pressão muito forte das empresas, sobretudo quando no nosso país elas decidiram tomar uma posição uma determinada posição política em relação ao próprio governo. Isso torna a questão da cobertura jornalística muito delicada. (A jornalista) Barbara Gancia disse há poucos dias que na Band foi proibida ou dissuadida de criticar o presidente da Câmara dos Deputados. Isso é algo incompatível com o jornalismo. Passamos a ter agendas nos jornais que não são do bom jornalismo.
O livro trata de casos...
No livro que organizei, com trabalhos de um curso de Ética para um curso de jornalismo, você tem relatos de histórias complicadas. Por exemplo, a cidade onde apareceu um outdoor homófobo, os jornalistas querem criticar, mas o outdoor é de uma seita religiosa que tem negócios com o dono do jornal, que não quer que seja criticada uma flagrante violação dos direitos humanos. Você tem outra história, de uma jornalista que vai ver uma praia no Guarujá, onde o acesso ao mar é fechado, e essa praia tem ilustres figuras da República no período Fernando Henrique Cardoso. Nesse segundo caso, o jornal publica, e a matéria tem repercussões positivas, tanto que o próprio Ministério Público tomou iniciativas visando a abrir o acesso à praia. Mas muitas vezes o jornalista tem de dizer aquilo com que ele não concorda, tem de assumir a camisa do jornal. Quer dizer, você tem duas situações, ele dizer aquilo que não é opinião dele, mas assinando, porque se tornou praxe assinar matéria, então, ele assume responsabilidades por algo que não é a convicção dele e, por outro lado, você tem também uma dificuldade grande da independência jornalística de apurar os fatos, doa a quem doer.
A BBC World me entrevistou há duas semanas sobre o Brasil. Eu disse o que eu acho, que não há fundamentação jurídica para o impeachment. Mas eles pegaram muito pesado. Não são como a imprensa brasileira, que pega leve, deixa você falar. O cara cortava e cobrava. E é isso o correto. Não é o jornalista que te dá corda para você continuar defendendo suas ideias. Jornalista cobra. A própria BBB entrevistou o Fernando Henrique Cardoso, mas em 2008, e cada vez que ele tomava a defesa do governo eles pegavam pesado, dizendo "o senhor tolerou a corrupção, o senhor não fez tal coisa". E quando ele tentava partir para uma generalidade ou para seu conhecido charme, o jornalista voltava. Você tem jornalistas que fazem isso. O Mario Sérgio Conti é um jornalista que cobra dos entrevistados. Mas é muito comum o jornalista estar seguindo uma plataforma que não é dele.
Havia um pouco mais de contestação dentro da redação contra as ordens do que se chamava de aquário. Hoje, além dessa dificuldade que ele tem, às vezes, o jornalista não está mais identificado com o ponto de vista do dono?
Isso não é 100%, mas é frequente. Você tem exceções, que são importantes. Você tem jornalistas, mesmo dentro de jornais conservadores, que fazem uma pauta mais independente. Mas a maior parte dos jornalistas promovidos é os que se identificam com a linha editorial do jornal. Isso causa um problema. Outro problema é que os jornais foram dando muito importância a colunistas. Em tese, isso é muito bom, porque são vozes diferentes, independentes, às vezes especializadas nos assuntos. Ter um colunista como Drauzio Varella, por exemplo, é um luxo. Mas você tem um volume de colunistas que repetem toda semana a mesma coisa. E tem outro problema que ficou agudo, que é a escassez de reportagens, poucas que cubram efetivamente o que acontece no país, na sociedade. Hoje, os grandes jornais têm um grande desconhecimento do que está acontecendo no Brasil. Com exceção do Valor e em menor medida do Globo, você não tem uma cobertura detalhada, uma rede de correspondentes vasta. O Globo tem, cobre melhor o Brasil como um todo, o Valormanda fazer reportagens específicas, como uma sobre educação no Ceará, faz uns quatro anos, que são notáveis, porque permitem conhecer o que não saberíamos. Há um caso famoso de um colunista da Folhaque, de férias no Nordeste, depara com um ônibus em que estava escrito alguma coisa como transporte escolar para a zona rural. Isso era uma novidade criada pelo ministro (Fernando) Haddad. Milhões de crianças transportadas todos os dias nesses veículos, e o jornal não sabia. É muito grave você ter um jornal que não sabe o que está acontecendo na educação brasileira, ou na saúde. Quando você vê a discussão de políticas públicas, essa discussão muita vezes pega uma questão totalmente secundária.
Por exemplo...
A questão da base curricular, que eu lancei. Tinha uma deficiência série em história que eu tentei corrigir. A área de história foi absolutamente impermeável, fez um projeto, a meu ver, errado. Mas a maior parte da discussão foi sobre isso, excetuando mais uma vez o Globo, que dá uma importância grande à educação. Você tem um compromisso com a educação que os jornais paulistas não têm. Se dão sorte de ter um bom repórter, até cobrem alguma coisa. O Luiz Fernando Toledo fez uma cobertura muito boa da ocupação das escolas no ano passado. Mas, de modo geral, a educação não é uma prioridade dos jornais. Então, acaba sendo mais interessante, mais divertido você fazer uma fofoca, especular, por exemplo, se o ministro vai continuar ou não, se viajou ou não com a presidente Dilma, acaba se tornando quase mais importante do que entrar na discussão de quais são as metas que a educação deve ter. Dos três grandes jornais, só um me chamou. Aí, eu dei uma sugestão ao Otávio Frias Filho, vocês podiam colocar grandes discussões educacionais, como métodos de alfabetização. Ele gostou da ideia e não fez nada disso. Esse é apenas um exemplo.
Você tem pouca discussão sobre educação, a não ser quando a discussão já é ideológica. Se der para fazer ideológica, eles fazem. Por exemplo, existe uma tese de que os livros didáticos visam a formar opiniões mais de esquerda... Esse tese é bastante equivocada, até porque o livro mais criticado, mais atacado por isso, foi distribuído pelo governo Fernando Henrique e não pelos governos petistas. Mas essa é uma discussão que acaba ficando mais atraente do que discutir, por exemplo, que tipo de formação você quer do aluno de 8, 9, 10 anos, que você quer de Matemática, Química, Biologia, História, Geografia, que é a discussão da base curricular, que é muito importante. Significa discutir o que você quer que a criança saiba do mundo, em que universo ela está.
Como professor, intelectual, o sr. tem contato frequente com jornalistas, em outro tipo de abordagem. Como ministro, se espantou um pouco com o que saía após conversar com jornalistas?
Eu me surpreendia com o que saía na imprensa, não por força de conversas, mas pelo que a imprensa relatava. As conversas que eu tive foram praticamente todas tratadas com fidelidade. Eu tenho muito pouco queixa do jornalismo. Agora, quando você não é da carreira política e assume um cargo de ministro, ou um cargo desses, em que se torna vidraça, gigantesca, você tem uma suscetibilidade maior que um político de carreira, que está acostumado a ser atacado e depois fazer as pazes e se aliar com quem o atacou. Uma pessoa que não é político de carreira, sobretudo um intelectual, leva um choque diante de uma mentira. Então, a mentira assume uma dimensão gigantesca.
No meu primeiro fim de semana como ministro, eu vim a São Paulo no começo da sexta-feira para uma agenda de trabalho, e saiu uma matéria na Folha de S. Paulo dizendo que eu tinha violado uma regra recém-editada pela presidente, que proibia uso de jatinho para voltar para casa. Bom, eu tinha vindo para trabalho. E a notícia acrescentava que não tinham conseguido contato com o ministro. A Folha tem meus telefones, e-mail, há 30 anos ou mais. Então, a notícia era duplamente mentirosa. Nós nos queixamos, eles mantiveram que tinham tentado contato. Fizeram o seguinte: o repórter de Belém, não sei o que ele tinha a ver com Brasília, São Paulo, deve ter telefonado para o MEC, era um sábado, não tinha ninguém, não olhou o site para ver que tinha lá o celular da assessora de imprensa, que está sempre disponível, então o resultado disso tudo é um absurdo.
Você diz uma mentira e fica por isso mesmo. Esse é um caso pequeno, mas me causou um choque. Um ministro político nem dá bola para isso, desmente e sabe que o jornal vai embrulhar peixe. Agora, quando você vem do mundo acadêmico, a mentira, a imprecisão, a deformação da notícia causam um incômodo muito maior. Mais grave do que isso, é a experiência do descaso com a informação, mais uma vez com exceção doGlobo. Você pode fazer muitas críticas ao império Globo... Não estou falando da TV, mas o veículo impresso e a Fundação Roberto Marinho têm compromisso com a educação.
Do ponto de vista político, a sua passagem pelo ministério, relativamente curta, deixou frustração?
Claro que deixou. Eu assumi sem ter recursos, numa fase de cortes constantes, com muito pouco apoio do governo, que não se empenhou em fortalecer o MEC. Apesar de a presidente ter falado em Pátria Educadora, não houve um fortalecimento do MEC. Isso criou uma situação difícil de trabalho. E há outro lado que afetaria qualquer pessoa que chegasse lá: foi o momento em que a prosperidade de 12 anos, graças ao boom das commodities etc, chegou ao fim, a um fim brutal. Durante 12 anos, o Brasil teve recursos bem mais fartos, usou bem os recursos, em educação, saúde, desenvolvimento social, e de repente esse dinheiro estancou, acabou. Essa é uma hora muito difícil, porque as pessoas estão acostumadas a gastar mais e mais, fazer projetos o tempo todo, sem pensar no rendimento, na qualidade, no desperdício, que são inevitáveis quando você está em plena expansão. Quando você tem de dar essa volta, a própria base do governo fica contra. Você tem criação de quase 20 universidades federais, mais de 100 campi, uma série de projetos, alguns já em andamento, de construção de campi universitários às vezes em cidades muito pequenas. E de repente nada disso pode ser feito. E aí quando você percebe que não tem como fazer, começa a discutir os critérios e vê que às vezes um passo foi dado sem o passo anterior estar assegurado.
O governo, acreditando que tinha muito dinheiro e que as coisas pelo investimento criterioso de dinheiro iriam melhorar, não foi tão criterioso na execução. Um exemplo: em 2014, ano da campanha eleitoral, teve 730 mil financiamentos do Fies, mas não houve um critério para quais áreas, quais regiões, ou qual qualidade de curso. Essa foi uma das coisas que consegui fazer, e não foi fácil. Eu coloquei como critério o tipo de curso. Tínhamos 16% de financiamentos para Direito, caiu para menos de 10%. Fortaleci Engenharia, saúde e professorado. Não havia critério de notas de curso. Fortaleci os cursos de nota mais alta, 5 e 4. E regiões, também fortaleci as menos desenvolvidas. Não havia esses critérios. Desse jeito, com menos vagas, a gente conseguiu dar um preenchimento mais justo.
A expansão da universidades com os governos Lula e Dilma foi uma medida muito necessária, mas não mexeu na ética dos estudantes. O Brasil tem tendência a acreditar que universidade serve para uma coisa só: dar diploma, formar pessoas. Esquece que a universidade tem um trabalho importante de pesquisa e de extensão. Não é porque a USP forma 10 ou 20 mil alunos por ano que ela é boa, mas porque tem um ... de ponta. A opinião pública pensa que é só a vaga e que o pai não vai pagar nada. Então, há uma série de derivadas éticas. A pessoa acha que o diploma é propriedade privada dela. Tira vantagem com isso e não deve nada à sociedade, nada. Não pensa, como o norte-americano pensaria, em deixar uma parte de herança à universidade que tanto o formou. Não pensa em escolher uma modalidade de profissionais que seja mais útil ao país. Isso tudo cria problemas grandes. Cria até uma coisa irônica: tradicionalmente, as universidades têm movimentos estudantis de esquerda, que muitas vezes são apenas um local de passagem. A pessoa passa quatro anos na universidade, faz greves, manifestações, e depois vai viver a vida conservadora dela como se aquilo tivesse sido só um carnaval pelo qual ela passou. Não deixa marcas. Alguns dos nossos propagandistas mais de direita são egressos do movimento trotskista de extrema-esquerda. O que isso quer dizer senão que aquilo tudo era superfície, não entrou no DNA da pessoa, na corrente sanguínea?
A universidade pública, muitas vezes é um espaço de militância política facilitada, sem profundidade. Fica só na demagogia. O que precisa ter sido feito, precisaria ter apoio efetivo para isso, era rever a estrutura universitária, para tempos de crise, para tentar preservar o principal e, ao mesmo tempo, aprender que a mesma coisa era feita por vários atores, havia repetição de funções, desperdício funcional. Por exemplo, a greve dos servidores, no ano passado – uma das principais reivindicações era trabalhar 30 horas por semana em vez de 40, mantendo salário. Num momento em que o governo não tem como contratar substitutos e está havendo um desemprego crescente, uma crise no país, uma reivindicação desse tipo é um acinte. É uma falta de compromisso com a sociedade surpreendente. Então, esses foram pontos difíceis. Ao mesmo tempo, na greve dos professores de universidades federais, uma das reivindicações era tirar dinheiro da educação básica. Queriam quase todo o dinheiro da União fosse para as universidades federais. Foi um esforço enorme dos governos petistas ampliar o dinheiro para a educação básica, que é o que é decisivo no Brasil. Aí você tem gente que se diz de esquerda, inclusive que acusa o governo de não ser suficientemente de esquerda, querendo tirar dinheiro das crianças.
Para o sr., que é professor de Ética, não é um paradoxo, ou uma ironia, termos um Conselho de Ética da Câmara dos Deputados que não conseguiu punir um deputado que inclusive é réu no Supremo Tribunal Federal? Por que o Conselho não funciona nesse caso?
O Conselho de Ética tenta funcionar, é que constantemente o presidente Cunha intervém. Agora, por que o Cunha está forte? Porque o Executivo se enfraqueceu muito. Ele adquiriu um protagonismo enorme, com uma pauta que não tem nada de bom para o Brasil. A maior parte dos projetos agrava a crise ou recua na tolerância à diferença. Agora, ele conseguiu isso porque o Executivo está fraco. E como essa pauta dele é poderosa só na aparência, porque não está caminhando para resolver nada no Brasil, o Executivo e o Legislativo ficam fracos, e quem se fortalece é o Judiciário. Nós estamos vivendo um momento em que o Judiciário, especificamente o juiz Sérgio Moro, a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República estão ocupando um espaço que foi abandonado pelo Executivo e pelo Legislativo. Os dois poderes democraticamente eleitos não estão cumprindo o seu papel, e o poder que não é eleito, faz parte do nosso sistema, tem toda legitimidade, mas está avançando em prerrogativas que são dos poderes eleitos. Nós temos uma situação muito delicada do ponto de vista democrático. Questões que deveriam ser resolvidas pelo voto popular estão sendo encaminhadas para decisão tribunalícia.
Houve algum abuso, algum exagero?
Parece que o juiz Sérgio Moro exagera em algumas medidas. Mas o que dá força a ele? É que você tem um magistrado que está atuando, pegando corrupto, mandando para a cadeia e reavendo dinheiro. Em sã consciência, como uma pessoa assim não seria popular, se está fazendo algo que contrasta com a morosidade, para fazer um mau trocadilho, do sistema judiciário? Temos um sistema todo voltado para absolver as pessoas pelo decurso de prazo, pelo recursos... Agora, isso favorece, sim, excessos, há várias medidas dele que são excessivas, e o próprio Supremo censurou, condenou. Agora, mais uma vez, tudo isso vem do vazio. Uma sucessão de vazios. O Executivo federal está fraco, esvaziado, fortalece o Cunha. A soma de Executivo e Legislativo está fraca, não está fazendo nada de relevante para o país, fortalece o Judiciário. O Supremo Tribunal demora nas suas decisões, favorece o juiz Moro. Você tem uma sucessão de abdicações que vai levando ao fortalecimento de outros atores.
Outro esvaziamento que você tem, estamos discutindo só política. Agora, você tem uma economia despencando, e onde estão os empresários, os trabalhadores? Os trabalhadores se manifestam contra a destituição da Dilma, cujo governo não os alegra, não é progressista, de esquerda. Nem no primeiro mandato foi. Dilma ganhou a reeleição na hora em que a esquerda foi para a rua, no final da campanha de 2014, mas ela não tinha feito um governo voltado para essa base. Agora, as manifestações em defesa do mandato dela crescem porque a esquerda está indo para a rua, mas ela não vai fazer a agenda da esquerda se salvar o mandato. Porque vai ter de lidar com a economia, e a economia, hoje, não seria dois ou quatro anos atrás, a agenda de recuperação passa por medidas mais conservadoras.
Não sei dizer se houve um erro, se a nova matriz econômica da Dilma era errada ou se foi mal executada. Com toda a certeza, as desonerações das empresas foram um erro, e também foi um erro segurar o preço da gasolina a ponto de quebrar o álcool. Tivemos também a queda das commodities, que não dependeu do governo. É muito difícil saber se o projeto econômico dela estava errado, não acho que estivesse, mas a gestão acabou tendo problemas que estamos vivenciando agora.
O sr. falou dos empresários, que, em boa parte, estão investindo na saída desse governo, se manifestando nesse sentido, associações empresariais, a começar da Fiesp...
Vamos tratar disso, que não é bem assim. A Fiesp é presidida por um não industrial. A Federação das Indústrias é presidida por uma pessoa que não tem indústria e está utilizando a Fiesp há vários anos como plataforma para seus interesses políticos. Se você comparar com a Confederação Nacional da Indústria, em nenhum momento a CNI defendeu o impeachment. O máximo que você teve foi o presidente dela, Robson Andrade, dizer que precisava de uma solução rápida e dentro da Constituição. Pode ser defesa do impeachment ou da derrota do impeachment, não foi claro isso. Eu não vi os empresários apoiando o impeachment.
Associações como Abigraf, a indústria têxtil...
Isso é muito recente. Os empresários não queriam o impeachment. Apesar das críticas fortes à presidente Dilma, eles preferiam uma mudança de rumo do governo na direção econômica em vez do impeachment. Tem de levar em conta, não é 1964. Em 1964, havia um pavor do comunismo, que tem hoje só nas cabeças de pessoas limitadas que fazem parte de alguns dos movimentos que vão para a rua. Mas você não tem isso nos agentes econômicos. Eles têm ou tinham uma grande admiração pelo Lula. Era o candidato preferido deles em 2010, quando ele não podia concorrer, em em 2014, quando podia. Então, o que você tem é que chegou uma hora em que o empresariado perdeu a expectativa com a presidente, gradualmente perdeu a esperança.
Sobre o Lula, voltando ao juiz Moro, o sr. se manifestou pelas redes sociais no episódio dos grampos ("Hoje muitos estão felizes porque acham que pegaram Lula e Dilma. Na verdade, pegaram você. Você não tem mais proteção contra os agentes da lei", escreveu Janine)...
Na hora em que rompe o seu sigilo, devassa a sua intimidade para expor falas que nem sequer são ilegais, mas que tem palavrões, todos nós estamos à mercê da arbitrariedade. Esse é um ponto, o juiz agiu de forma totalmente arbitrária, eticamente errado. Você selecionar um documento que desmoraliza o outro lado e, em função disso, divulgar. Está errado.
Desde 2013, quando houve aquelas manifestações que começaram com a questão da tarifa de transporte, a gente sente um descrédito muito crescente com políticos. Isso não é perigoso à medida que as pessoas deixam de acreditar na solução pela via política e podem passar a acreditar em outras fórmulas salvadoras?
Perigoso é. Fórmulas salvadoras, autoritárias, não vejo nenhuma no horizonte. Penso que o próprio juiz Moro acaba sendo construído como um salvador da pátria, independentemente de suas qualidades – faço questão de reconhecer as qualidades que eu vejo nele –, e isso tudo leva a esse esvaziamento da política, esse é um lado arriscado. Temos o risco de repetir a nossa fantasia com um Jânio, um Collor, de uma pessoa que vai pôr ordem no galinheiro. Isso é um mito forte, um mito brasileiro forte. Agora, por outro lado, os nossos políticos se esforçaram para se desmoralizar, não foi trabalho de um dia ou outro, foi constante, empenhado, vigoroso, fizeram o possível para se autodesmoralizar. O próprio PT. O discurso hoje em boa parte é: os outros fizeram isso. Não é: nós somos diferentes. Por exemplo, os abolicionistas diziam que a escravidão é uma chaga ética. O PT parou de dizer que a miséria é uma chaga ética, de dizer que combater a miséria é a ação ética por excelência. Aceitou discutir a política apenas no campo da corrupção. Corrupção é inaceitável, mas a ética não é só corrupção. Você não ser corrupto é apenas sua obrigação. O PT promoveu ações sociais importantes e não soube transformar isso num discurso ético. Então, esvaziou muito. Quando a gente vê hoje uma situação em que tirar a Dilma do poder representa até aumentar o percentual de políticos no poder, que popularidade vai ter esse governo, que apoio vai ter o governo pós impeachment, pós Dilma? Um erro gigantesco é considerar que os líderes do PMDB são burros. Ele achou que podia derrotar o Cunha na eleição da Câmara, que podia utilizar o Temer na base do on/off. Chama quando precisa, depois deixa de lado. O PMDB é muito sábio, muito experiente na política. Eles são profissionais, estão jogando pra valer.
Em seu livro A Regra do Jogo, o jornalista Claudio Abramo fala sobre a ética do jornalista, comparando-o com a do marceneiro, dizendo que, na verdade, o que existe é a ética do cidadão. Isso tem de alguma maneira relação com essas reflexões que o livro traz, sobre situações cotidianas que muitas vezes trazem dilemas?
O objetivo dos trabalhos, que eu pedi aos alunos, é o que coloca você em xeque eticamente. Pode ser uma ordem que o jornalista recebeu que vai contra a verdade dos fatos, pode ser uma situação imprevista, o caso de uma jornalista que descobre uma mãe de rua que está proibida pela Justiça de ter contato com o filho, que já venceu as drogas, e quer ter contato, a jornalista fica pensando "o que eu faço, eu violo a ordem judicial, o que posso fazer com isso", dada a lentidão do Judiciário nessas coisas. O que eu queria fazer com os alunos, e acho que eles corresponderam muito bem a isso, era desafiá-los para além das regras burocráticas. Você tem na sociedade um conjunto de regras burocráticas que você cumpre como cidadão obediente às leis. Só que a questão ética surge às vezes quando a lei não é suficiente, quando é injusta, ou quando a aplicação da lei... Nessas situações é que cabe perguntar: o que você faria? Para que a pessoa não seja apenas alguém que está cumprindo o tempo todo regras ditadas pelo Estado ou pela própria corporação. Não dá para você pensar a ética sem Antígona. Uma pessoa que viola a lei conscientemente, que corre riscos, que vai morrer por causa disso, porque ela considera injusto, e em função disso ela coloca bem cono começo da civilização, da cultura ocidental, essa ideia de alguém, que não por acaso uma mulher, que considera que tem valores acima dos valores do Estado.
A importância de Maquiavel, que é estranho para você pensar como um pensador ético, mas é, está na importância de você pensar consequências de seus atos. Há um caso que eu gosto muito é o de escola onde uma criança que teve câncer, teve de rapar o cabelo, aí todos os coleguinhas raparam o cabelo em solidariedade e virou um movimento muito bonito na cidade. O jornalista foi apurar a história e descobriu que não era verdade, que não tinha ocorrido isso. Aí fica a dúvida para o jornalista: eu desminto ou mantenho esse boato que está levando pessoas a serem mais solidárias? A solução automática é meu compromisso com a verdade, vou desmentir o boato. Agora, isso vai trazer consequências. Eu quero que essas consequências ocorram? Por outro lado, eu tenho tanto poder que posso tomar essa decisão? Esse tipo de questão acho que nem os jornalistas nem as pessoas comuns pensam no dia a dia.
O Claudio não está errado quando ele diz que é a mesma ética. O problema é que você não tem ética se você tiver certezas. Para você ter ética, você tem que ter dúvidas, questionamentos. Talvez o marceneiro tenha menos questionamentos do que o jornalista. Talvez. O jornalista tem uma questão delicada: eu vou esvaziar esse movimento em solidariedade às crianças cancerosas?
Houve o caso do Enem, também citado, quando um jornal, o Estadão, até avisou o ministério, que cancelou a prova. A preocupação era se isso, dependendo da forma como fosse feito, prejudicaria milhões de pessoas...
Prejudicou, e a gráfica e os criminosos até hoje não pagaram. O prejuízo foi grande para o ministério, mas foi para milhões de pessoas. Se essas milhões de pessoas entrassem com uma ação, os ladrões e a gráfica não teriam como pagar, e seria justo serem fortemente penalizados. Acho que a rigor o caso do Enem é até emblemático, porque tendo sido ministro eu diria que o impacto real do roubo das provas teria sido muito baixo. Se você tiver provas e pode vender para alguns interessados, primeiro não pode vender para muitos. Segundo, você tem de contratar quem resolva as questões, porque eles não tinham garabito. Então, tinha um custo. Aí você vai vender para pessoas interessadas em cursos mais caros, como Medicina. Se o sujeito for uma nulidade e entrar em Medicina, vai ser reprovado. No fundo, o mercado de venda dessas provas era baixo. Algumas dezenas de pessoas em milhões e milhões é muito pouco. Isso num raciocínio mais pragmático. Agora, na prática era uma notícia e não tinha mais controle. Na hora que essa informação sai, não existe mais controle. Você tem de cancelar a prova porque 50 que tenham fraudado já bastam para poluir todo o processo. Aí a decisão do ministro Haddad que foi uma decisão ética, ele teve de tomar uma decisão difícil.
A ética está em assumir responsabilidades?
A ética está em muitas coisas. Mas eu acho que no ensino é prioritário mostrar os casos difíceis, não os fáceis. Há casos fáceis: dar o troco devido, não mentir. Mas, por exemplo, um doente terminal: você mente ou diz a verdade para ele? Durante décadas ou séculos, se mentia. Hoje prevalece a ideia que você tem dizer a verdade. Mas nos dois casos é uma regra universal, isso não é ético. Você teria de tentar saber se para esse doente é melhor saber a verdade ou não. Pode ser que seja melhor não saber. A decisão é falível. Uma decisão coletiva tira das pessoas a decisão ética. Eu apenas cumpro uma regra.
O sr. considera esses meios ditos alternativos de comunicação, como sistes e blogs, uma alternativa importante de consumo de informação, em um setor tão concentrado (em termos empresariais)?
Considero. Permitem visões diferentes das que eram, e ainda são, predominantes. Contudo, os blogs de esquerda são ainda muito dependentes da grande mídia. Reproduzem e comentam notícias dela. Geram pouquíssimo conteúdo próprio. Por isso, estão muito longe de constituir um “quarto poder” alternativo.
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