Por Maria Betânia Ávila, na revista Teoria e Debate:
Uma vez desmascarados podemos ver agora as faces horrendas dos homens públicos que arquitetaram e produziram o golpe patriarcal e ultraliberal contra a primeira mulher, democraticamente, eleita presidenta do Brasil.
Articuladores ocultos, traidores, homens violentos e gananciosos visam destruir as políticas sociais que sustentam a vida cotidiana, eliminar os direitos trabalhistas que asseguram cidadania a milhões de mulheres e homens, privatizar os bens públicos e comuns para autofavorecimento com fins de enriquecimento de seus patrimônios formados, em grande medida, pelo desvio do dinheiro público e, finalmente, mas não menos grave, cumprir os desígnios do sistema financeiro e entregar a riqueza do país aos capitalistas do Norte, que não cessaram, jamais, de extorquir os países do Sul.
A cena de posse do presidente interino e ilegítimo, cercado dos seus ministros, também ilegítimos, é memorável como demonstração do que significa, no concreto real, o conceito de patriarcado: um sistema de poder dos homens. A ausência absoluta de mulheres na formação do gabinete do governo interino é, em si, um indicador da ordem conservadora que naquele momento toma conta do poder político no país. Os arranjos posteriores de inclusão irrisória de mulheres não servem para superar em nada o significado da cena original. Ao contrário, as mulheres que se dispuseram a compor essa farsa só contribuem para sustentar o poder que lhes oprime.
É importante ressaltar que, desde a campanha eleitoral em 2014, as expressões misóginas já se mostravam como uma arma de confronto das forças políticas conservadoras. Após a vitória nas urnas da presidenta eleita Dilma Rousseff essas forças, inconformadas com a derrota e desrespeitando as regras do processo democrático eleitoral, intensificaram os ataques e utilizaram de maneira recorrente todas as formas de preconceitos contra as mulheres na política como um mecanismo de desqualificação pessoal e do poder de uma mulher como presidenta da República.
Patriarcado
Muitas vezes encontramos em textos e discursos correntes a crítica ao uso do conceito de patriarcado na contemporaneidade. Ora, os conceitos servem justamente para explicar e interpretar a realidade social. Como podemos prescindir desse conceito quando o poder patriarcal se apresenta com toda a sua força? O patriarcado em coexistência com o capitalismo e o racismo deve ser analisado a partir de cada contexto social e histórico. Para Delphy (2004), o termo patriarcado é muito antigo, mas “na nova acepção feminista, o patriarcado designa uma formação social na qual os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente: o poder dos homens” (Delphy, 2004, p. 154).
Para Saffioti (2004), o sistema patriarcal é histórico e, portanto, pode-se estabelecer uma periodização. Podemos, dessa forma, analisar como se expressam as relações sociais de sexo/gênero em cada período histórico e em um determinado contexto social a partir das contradições que se apresentam na realidade social.
O patriarcado, como um sistema de poder dos homens, usou, desde a origem do processo de colonização no Brasil, a força e a violência contra as mulheres como mecanismo para sua reprodução. Nesse sentido, desenvolveu um sistema econômico baseado na divisão social, racial e sexual do trabalho. A conformação dessa divisão sexual do trabalho, elemento central das relações sociais de sexo/gênero, é inextricável do processo histórico na formação da sociedade capitalista e, nesse processo, são consubstanciais as relações sociais de classe e de raça. Desde esse período, a relação público/privado foi baseada nos princípios patriarcais dos senhores brancos, que não só sobrepunham os interesses privados sobre os interesses públicos como também designavam espaços diferenciados para homens e mulheres. As mulheres, confinadas à esfera privada, estavam ainda divididas e confrontadas pelas contradições das relações sociais de raça que configuravam e permanecem conformando as desigualdades entre mulheres brancas e mulheres negras. A relação entre exploração sexual das mulheres e o exercício do poder foi desde a origem da colonização um mecanismo da violência patriarcal extremamente utilizado. O estupro das mulheres, e sobretudo das mulheres negras, foi uma prática colonial dos senhores brancos, uma arma de dominação do colonizador.
As estruturas da nossa sociedade, marcadas por profundas desigualdades sociais, estão construídas a partir de um ideário positivista que justificou, através de argumentos naturalizadores da vida social, as formas de violência exercidas sobre as mulheres e a população negra. A construção da pobreza é um componente dos modelos de desenvolvimento econômico que se sucederam ao longo da história. É justamente contra as possibilidades de avançar na superação dessa exploração e de prosseguir nas conquistas de direitos, para uma vida social com igualdade e justiça social, que são produzidos pelas forças conservadoras os golpes de Estado, os processos de repressão política e outros arbítrios que vigoraram no passado e continuam sendo utilizados no presente, como o que está ocorrendo nesta atual conjuntura.
O patriarcado que se instituiu no Brasil, como parte de um sistema de dominação no período colonial, passou, evidentemente, por grandes transformações. Isso, no entanto, não significa que seja um tipo de poder historicamente superado. “Necessitamos teorias que possam analisar o funcionamento do patriarcado em todas as suas manifestações – ideológicas, institucionais, organizativas, subjetivas – explicando não somente a continuidade, mas também as mudanças no tempo” (Scott, 1989).
Desvendar a existência desse sistema de dominação e fazer conhecer os mecanismos de sua reprodução, a partir das suas expressões e dos mecanismos instituídos a cada momento histórico, é uma contribuição fundamental do feminismo para uma análise em profundidade da realidade social brasileira. Lutar para a superação desse sistema é uma contribuição fundamental do movimento feminista para a democratização da vida social.
O contexto atual
A violência contra as mulheres no Brasil é de alta intensidade e se constitui como uma das questões mais emblemáticas da persistência do poder patriarcal no país. No plano simbólico a violência sexista é utilizada como um elemento de desqualificação política e como ameaça para todas as mulheres. Mesmo quando se dirige a uma mulher específica ou a mulheres que exercem cargos de poder, essa violência simbólica, necessariamente, atinge todas as mulheres. No plano político, a violência sexista tem sido utilizada, permanentemente, como uma arma contra a presidenta eleita Dilma Rousseff, mostrando, dessa forma, que o machismo é um elemento central para uma forma de disputa política baseada na truculência e na ausência de princípios éticos.
A divisão sexual do trabalho que faz das mulheres as responsáveis principais pelo trabalho doméstico mesmo que elas se constituam como uma força de trabalho fundamental na esfera do trabalho produtivo e um mecanismo central da exploração das mulheres nesse sistema. No mercado de trabalho as mulheres são maioria nos espaços de trabalho precário, com a prevalência das mulheres negras. Na esfera pública, são minoria absoluta em qualquer espaço de representação política e de tomada de decisão. Os setores conservadores e fundamentalistas impõem um poder sobre o Estado que fere os princípios democráticos da laicidade, impedindo a plenitude do acesso e da vivência das mulheres aos direitos reprodutivos e sexuais. Ameaças constantes ao que já foi alcançado pelas mulheres no campo desses direitos e a criminalização do aborto denotam o quanto ainda é contundente o exercício de controle patriarcal sobre o corpo e a sexualidade das mulheres.
A prática do estupro, essa violência bárbara contra as mulheres, persiste dramaticamente nos dias atuais. De outro lado, a violência sexual e a mercantilização do corpo das mulheres é um conteúdo comum e corrente das redes privadas de rádio e televisão, por meio de publicidades, novelas, noticiários, programas humorísticos e outros.
A relação entre patriarcado e ultraliberalismo econômico se mostra vigorosa no contexto atual. Acrescente-se a essa relação o fundamentalismo religioso, e teremos a conformação do caráter das forças políticas que engendram a crise política, que por sua vez afeta negativamente a economia do país, e que desrespeitam e já desestruturam nesse breve tempo de governo interino a cidadania da maioria da população brasileira.
Na sessão da Câmara dos Deputados do dia 17 de abril de 2016, na qual foi aprovada a abertura do processo de golpe, chamado de impeachment, da presidenta eleita Dilma Rousseff, o espetáculo político, que poderia ser chamado de patético não fosse trágico, foi amplamente divulgado pela mídia, nacional e internacional. As redes privadas de televisão do país, que tanto investiram e continuam investindo para que aconteça a ruptura da legalidade democrática, obviamente para favorecê-las como corporações, dedicaram todo seu potencial para alienar e mascarar o significado do que estava de fato acontecendo. Mas a situação se mostrou tão grotesca que todos os truques utilizados, para produzir os enganos, se mostraram inúteis. No primeiro momento veio a perplexidade e, em seguida, a indignação, a crítica e o repúdio apareceram por toda parte, no país e no exterior, nas ruas, nos campos, nas redes sociais, em todas as formas de expressão e em todas as dimensões.
Os protagonistas golpistas dessa votação espetaculosa, que estarreceu o mundo, desprovidos das “virtudes” públicas, justificaram seus votos evocando motivos e homenagens privadas, sobretudo familiares e religiosas. Naquele momento, a captura do espaço público pelas motivações privadas se materializa, a olhos vistos, a tal ponto que um parlamentar, alheio às regras mínimas das normas da Câmara Federal na qual ele exerce um mandato popular que não é o primeiro, levou seu próprio filho ao plenário e tentou transferir para ele a declaração do seu voto. Evidências materiais e simbólicas dos mecanismos de reprodução do sistema patriarcal, abertas à observação fenomenológica, em pleno acontecimento, as manifestações machistas, violentas e zombeteiras, dirigidas à presidenta, aconteceram durante todo o processo de votação e evidenciavam como são misóginos aqueles homens que se dizem representantes do povo. Povo este, no nosso país, formado em sua maioria por mulheres. No momento em que protagonizavam aqueles atos de violência política, contra uma mulher, que é a presidenta eleita do país, estavam exercendo essa violência contra todas as mulheres brasileiras.
A conquista primordial do movimento feminista foi a própria formação desse movimento que instituiu as mulheres como sujeito da história. O acesso à esfera pública como um direito das mulheres significou a ruptura com um tipo de privação que não só as impedia de exercer sua cidadania como sujeito político, mas também as tornava ainda mais vulneráveis à violência sexual e doméstica. Podemos ainda afirmar que a ruptura com o isolamento que esse confinamento assegurava também significa um questionamento e uma fissura da ordem liberal burguesa que se assenta na dicotomia entre as esferas públicas e privadas.
Mulheres organizadas em luta contra o golpe
A luta das mulheres por igualdade no Brasil vem desde os tempos coloniais. O direito ao trabalho com direitos, à educação e ao voto são conquistas marcantes dessa trajetória. No plano legal, as conquistas do movimento feminista contemporâneo configuram uma nova etapa histórica no processo de transformação das relações sociais de sexo. A Constituição Brasileira de 1988 é um marco, pois afirma, como um de seus princípios, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Além de garantir no seu texto uma série de outros direitos fundamentais para as mulheres.
É importante ressaltar que, nos últimos anos, o movimento feminista brasileiro tem levado uma luta permanente em prol da reforma do sistema político, em cuja pauta figura a defesa da paridade entre homens e mulheres como uma dimensão necessária e democratizante desse sistema. A defesa da paridade implica, entre outras questões, a superação do caráter hierárquico dos partidos políticos e da mercantilização dos processos eleitorais.
Neste momento, em que os movimentos sociais, do campo e da cidade se mobilizam, resistem e lutam contra o golpe, o movimento feminista e de mulheres tem se mostrado como um sujeito político fundamental na luta pela democracia. De todos os espaços do país surgem protestos que se expandiram pelo exterior.
O movimento feminista mostra sua criatividade e sua contundência nas ruas e nas redes sociais. Mostra sua força e sua capacidade de resistência e mobilização radicais em defesa do mandato da primeira mulher presidenta da República do Brasil, e da legalidade democrática. É um confronto contra o patriarcado, aberto e explícito que não admite camuflagens. Contra os machistas e neoliberais e contra tudo que eles representam. Esse confronto para o movimento feminista é incontornável, o qual guarda em si uma luta do presente, reaver o mandato da presidenta eleita com a afirmação de uma agenda de reformas e de implantação de políticas públicas voltadas para superação das desigualdades e garantias de bem-estar da população, e uma luta que aponta para o futuro, para avançar no processo democrático, nos direitos sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais como caminhos para construção da igualdade, da justiça social e para a emancipação das mulheres.
Referências
DELPHY, Christine. Patriarcat (Théories du). In: HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; LE DOARÉ, Hélène et al. Dictionnaire Critique du Féminisme, p.141-146. Paris: Presses Universitaires de France, 2000.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004.
SCOTT, Joan W. Gênero: uma Categoria Útil para Análise Histórica. Recife: SOS Corpo, 1989.
* Maria Betânia Ávila é doutora em Sociologia, pesquisadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia e militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Mercosur.
Uma vez desmascarados podemos ver agora as faces horrendas dos homens públicos que arquitetaram e produziram o golpe patriarcal e ultraliberal contra a primeira mulher, democraticamente, eleita presidenta do Brasil.
Articuladores ocultos, traidores, homens violentos e gananciosos visam destruir as políticas sociais que sustentam a vida cotidiana, eliminar os direitos trabalhistas que asseguram cidadania a milhões de mulheres e homens, privatizar os bens públicos e comuns para autofavorecimento com fins de enriquecimento de seus patrimônios formados, em grande medida, pelo desvio do dinheiro público e, finalmente, mas não menos grave, cumprir os desígnios do sistema financeiro e entregar a riqueza do país aos capitalistas do Norte, que não cessaram, jamais, de extorquir os países do Sul.
A cena de posse do presidente interino e ilegítimo, cercado dos seus ministros, também ilegítimos, é memorável como demonstração do que significa, no concreto real, o conceito de patriarcado: um sistema de poder dos homens. A ausência absoluta de mulheres na formação do gabinete do governo interino é, em si, um indicador da ordem conservadora que naquele momento toma conta do poder político no país. Os arranjos posteriores de inclusão irrisória de mulheres não servem para superar em nada o significado da cena original. Ao contrário, as mulheres que se dispuseram a compor essa farsa só contribuem para sustentar o poder que lhes oprime.
É importante ressaltar que, desde a campanha eleitoral em 2014, as expressões misóginas já se mostravam como uma arma de confronto das forças políticas conservadoras. Após a vitória nas urnas da presidenta eleita Dilma Rousseff essas forças, inconformadas com a derrota e desrespeitando as regras do processo democrático eleitoral, intensificaram os ataques e utilizaram de maneira recorrente todas as formas de preconceitos contra as mulheres na política como um mecanismo de desqualificação pessoal e do poder de uma mulher como presidenta da República.
Patriarcado
Muitas vezes encontramos em textos e discursos correntes a crítica ao uso do conceito de patriarcado na contemporaneidade. Ora, os conceitos servem justamente para explicar e interpretar a realidade social. Como podemos prescindir desse conceito quando o poder patriarcal se apresenta com toda a sua força? O patriarcado em coexistência com o capitalismo e o racismo deve ser analisado a partir de cada contexto social e histórico. Para Delphy (2004), o termo patriarcado é muito antigo, mas “na nova acepção feminista, o patriarcado designa uma formação social na qual os homens detêm o poder, ou ainda, mais simplesmente: o poder dos homens” (Delphy, 2004, p. 154).
Para Saffioti (2004), o sistema patriarcal é histórico e, portanto, pode-se estabelecer uma periodização. Podemos, dessa forma, analisar como se expressam as relações sociais de sexo/gênero em cada período histórico e em um determinado contexto social a partir das contradições que se apresentam na realidade social.
O patriarcado, como um sistema de poder dos homens, usou, desde a origem do processo de colonização no Brasil, a força e a violência contra as mulheres como mecanismo para sua reprodução. Nesse sentido, desenvolveu um sistema econômico baseado na divisão social, racial e sexual do trabalho. A conformação dessa divisão sexual do trabalho, elemento central das relações sociais de sexo/gênero, é inextricável do processo histórico na formação da sociedade capitalista e, nesse processo, são consubstanciais as relações sociais de classe e de raça. Desde esse período, a relação público/privado foi baseada nos princípios patriarcais dos senhores brancos, que não só sobrepunham os interesses privados sobre os interesses públicos como também designavam espaços diferenciados para homens e mulheres. As mulheres, confinadas à esfera privada, estavam ainda divididas e confrontadas pelas contradições das relações sociais de raça que configuravam e permanecem conformando as desigualdades entre mulheres brancas e mulheres negras. A relação entre exploração sexual das mulheres e o exercício do poder foi desde a origem da colonização um mecanismo da violência patriarcal extremamente utilizado. O estupro das mulheres, e sobretudo das mulheres negras, foi uma prática colonial dos senhores brancos, uma arma de dominação do colonizador.
As estruturas da nossa sociedade, marcadas por profundas desigualdades sociais, estão construídas a partir de um ideário positivista que justificou, através de argumentos naturalizadores da vida social, as formas de violência exercidas sobre as mulheres e a população negra. A construção da pobreza é um componente dos modelos de desenvolvimento econômico que se sucederam ao longo da história. É justamente contra as possibilidades de avançar na superação dessa exploração e de prosseguir nas conquistas de direitos, para uma vida social com igualdade e justiça social, que são produzidos pelas forças conservadoras os golpes de Estado, os processos de repressão política e outros arbítrios que vigoraram no passado e continuam sendo utilizados no presente, como o que está ocorrendo nesta atual conjuntura.
O patriarcado que se instituiu no Brasil, como parte de um sistema de dominação no período colonial, passou, evidentemente, por grandes transformações. Isso, no entanto, não significa que seja um tipo de poder historicamente superado. “Necessitamos teorias que possam analisar o funcionamento do patriarcado em todas as suas manifestações – ideológicas, institucionais, organizativas, subjetivas – explicando não somente a continuidade, mas também as mudanças no tempo” (Scott, 1989).
Desvendar a existência desse sistema de dominação e fazer conhecer os mecanismos de sua reprodução, a partir das suas expressões e dos mecanismos instituídos a cada momento histórico, é uma contribuição fundamental do feminismo para uma análise em profundidade da realidade social brasileira. Lutar para a superação desse sistema é uma contribuição fundamental do movimento feminista para a democratização da vida social.
O contexto atual
A violência contra as mulheres no Brasil é de alta intensidade e se constitui como uma das questões mais emblemáticas da persistência do poder patriarcal no país. No plano simbólico a violência sexista é utilizada como um elemento de desqualificação política e como ameaça para todas as mulheres. Mesmo quando se dirige a uma mulher específica ou a mulheres que exercem cargos de poder, essa violência simbólica, necessariamente, atinge todas as mulheres. No plano político, a violência sexista tem sido utilizada, permanentemente, como uma arma contra a presidenta eleita Dilma Rousseff, mostrando, dessa forma, que o machismo é um elemento central para uma forma de disputa política baseada na truculência e na ausência de princípios éticos.
A divisão sexual do trabalho que faz das mulheres as responsáveis principais pelo trabalho doméstico mesmo que elas se constituam como uma força de trabalho fundamental na esfera do trabalho produtivo e um mecanismo central da exploração das mulheres nesse sistema. No mercado de trabalho as mulheres são maioria nos espaços de trabalho precário, com a prevalência das mulheres negras. Na esfera pública, são minoria absoluta em qualquer espaço de representação política e de tomada de decisão. Os setores conservadores e fundamentalistas impõem um poder sobre o Estado que fere os princípios democráticos da laicidade, impedindo a plenitude do acesso e da vivência das mulheres aos direitos reprodutivos e sexuais. Ameaças constantes ao que já foi alcançado pelas mulheres no campo desses direitos e a criminalização do aborto denotam o quanto ainda é contundente o exercício de controle patriarcal sobre o corpo e a sexualidade das mulheres.
A prática do estupro, essa violência bárbara contra as mulheres, persiste dramaticamente nos dias atuais. De outro lado, a violência sexual e a mercantilização do corpo das mulheres é um conteúdo comum e corrente das redes privadas de rádio e televisão, por meio de publicidades, novelas, noticiários, programas humorísticos e outros.
A relação entre patriarcado e ultraliberalismo econômico se mostra vigorosa no contexto atual. Acrescente-se a essa relação o fundamentalismo religioso, e teremos a conformação do caráter das forças políticas que engendram a crise política, que por sua vez afeta negativamente a economia do país, e que desrespeitam e já desestruturam nesse breve tempo de governo interino a cidadania da maioria da população brasileira.
Na sessão da Câmara dos Deputados do dia 17 de abril de 2016, na qual foi aprovada a abertura do processo de golpe, chamado de impeachment, da presidenta eleita Dilma Rousseff, o espetáculo político, que poderia ser chamado de patético não fosse trágico, foi amplamente divulgado pela mídia, nacional e internacional. As redes privadas de televisão do país, que tanto investiram e continuam investindo para que aconteça a ruptura da legalidade democrática, obviamente para favorecê-las como corporações, dedicaram todo seu potencial para alienar e mascarar o significado do que estava de fato acontecendo. Mas a situação se mostrou tão grotesca que todos os truques utilizados, para produzir os enganos, se mostraram inúteis. No primeiro momento veio a perplexidade e, em seguida, a indignação, a crítica e o repúdio apareceram por toda parte, no país e no exterior, nas ruas, nos campos, nas redes sociais, em todas as formas de expressão e em todas as dimensões.
Os protagonistas golpistas dessa votação espetaculosa, que estarreceu o mundo, desprovidos das “virtudes” públicas, justificaram seus votos evocando motivos e homenagens privadas, sobretudo familiares e religiosas. Naquele momento, a captura do espaço público pelas motivações privadas se materializa, a olhos vistos, a tal ponto que um parlamentar, alheio às regras mínimas das normas da Câmara Federal na qual ele exerce um mandato popular que não é o primeiro, levou seu próprio filho ao plenário e tentou transferir para ele a declaração do seu voto. Evidências materiais e simbólicas dos mecanismos de reprodução do sistema patriarcal, abertas à observação fenomenológica, em pleno acontecimento, as manifestações machistas, violentas e zombeteiras, dirigidas à presidenta, aconteceram durante todo o processo de votação e evidenciavam como são misóginos aqueles homens que se dizem representantes do povo. Povo este, no nosso país, formado em sua maioria por mulheres. No momento em que protagonizavam aqueles atos de violência política, contra uma mulher, que é a presidenta eleita do país, estavam exercendo essa violência contra todas as mulheres brasileiras.
A conquista primordial do movimento feminista foi a própria formação desse movimento que instituiu as mulheres como sujeito da história. O acesso à esfera pública como um direito das mulheres significou a ruptura com um tipo de privação que não só as impedia de exercer sua cidadania como sujeito político, mas também as tornava ainda mais vulneráveis à violência sexual e doméstica. Podemos ainda afirmar que a ruptura com o isolamento que esse confinamento assegurava também significa um questionamento e uma fissura da ordem liberal burguesa que se assenta na dicotomia entre as esferas públicas e privadas.
Mulheres organizadas em luta contra o golpe
A luta das mulheres por igualdade no Brasil vem desde os tempos coloniais. O direito ao trabalho com direitos, à educação e ao voto são conquistas marcantes dessa trajetória. No plano legal, as conquistas do movimento feminista contemporâneo configuram uma nova etapa histórica no processo de transformação das relações sociais de sexo. A Constituição Brasileira de 1988 é um marco, pois afirma, como um de seus princípios, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Além de garantir no seu texto uma série de outros direitos fundamentais para as mulheres.
É importante ressaltar que, nos últimos anos, o movimento feminista brasileiro tem levado uma luta permanente em prol da reforma do sistema político, em cuja pauta figura a defesa da paridade entre homens e mulheres como uma dimensão necessária e democratizante desse sistema. A defesa da paridade implica, entre outras questões, a superação do caráter hierárquico dos partidos políticos e da mercantilização dos processos eleitorais.
Neste momento, em que os movimentos sociais, do campo e da cidade se mobilizam, resistem e lutam contra o golpe, o movimento feminista e de mulheres tem se mostrado como um sujeito político fundamental na luta pela democracia. De todos os espaços do país surgem protestos que se expandiram pelo exterior.
O movimento feminista mostra sua criatividade e sua contundência nas ruas e nas redes sociais. Mostra sua força e sua capacidade de resistência e mobilização radicais em defesa do mandato da primeira mulher presidenta da República do Brasil, e da legalidade democrática. É um confronto contra o patriarcado, aberto e explícito que não admite camuflagens. Contra os machistas e neoliberais e contra tudo que eles representam. Esse confronto para o movimento feminista é incontornável, o qual guarda em si uma luta do presente, reaver o mandato da presidenta eleita com a afirmação de uma agenda de reformas e de implantação de políticas públicas voltadas para superação das desigualdades e garantias de bem-estar da população, e uma luta que aponta para o futuro, para avançar no processo democrático, nos direitos sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais como caminhos para construção da igualdade, da justiça social e para a emancipação das mulheres.
Referências
DELPHY, Christine. Patriarcat (Théories du). In: HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; LE DOARÉ, Hélène et al. Dictionnaire Critique du Féminisme, p.141-146. Paris: Presses Universitaires de France, 2000.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004.
SCOTT, Joan W. Gênero: uma Categoria Útil para Análise Histórica. Recife: SOS Corpo, 1989.
* Maria Betânia Ávila é doutora em Sociologia, pesquisadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia e militante feminista da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulación Feminista Mercosur.
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