Por Mino Carta, na revista CartaCapital:
Prezada presidenta,
Nesta hora gravíssima, e tão dolorosa para um velho praticante do jornalismo, honesto porque verdadeiro, permito-me escrever-lhe, movido por aquele que enxergo como o interesse do Brasil. Deixa-me à vontade ter CartaCapital apoiado sua candidatura em 2010 e 2014, embora não a tenha poupado de críticas, amiúde contundentes, durante seu primeiro mandato e mais ainda no breve cumprimento do segundo, ignominiosamente interrompido pela manobra golpista urdida à sombra da casa-grande.
Inspira-me a possibilidade da reversão do primeiro resultado da votação do impeachment pelo Senado. Haverá quem diga ser chance remota, entretanto existe a ponto de levar a admiti-la o American Quarterly, importante publicação norte-americana próxima ao Departamento de Estado. E bem imaginamos o quanto desagradaria a Washington um retorno petista.
Chego ao busillis, como dizia um meu professor de latim: caso o destino a favoreça, a senhora ganhará a oportunidade de colocar o País na rota certa. Não disse recolocar, e explico. Perdoe a ousadia da proposta e a imponência das palavras: trata-se de aprimorar a ideia de refundar o Brasil, ao reconhecer a debacle geral, a derrota de todos nesta monstruosa refrega que nos pune sem exceção e nos reserva o caos final.
Não me refiro ao já desfraldado desastre do governo interino do seu pomposo vice, soberano apenas no uso da mesóclise. Governo desastrado até aos olhos de Congresso disposto a rasgar a Constituição de 1988, a sacramentar o enterro dos modestos avanços sociais conseguidos nos últimos 13 anos e de embarcar na aventura golpista comandada por um bando de corruptos. Está aí, talvez, a razão pela qual um ou outro senador poderia rever seu voto, sem deixar de combinar a responsabilidade moral com a conveniência política.
Sejamos claros. O Brasil foi escalado pela natureza para ser um paraíso terrestre, como disse Amerigo Vespucci ao adentrar a Baía de Guanabara faz 515 anos. Dissera um ano antes Caminha: aqui tudo “em se plantando dá”. Não vamos nos fazer de desentendidos: o patrimônio, felizmente ainda em boa parte intocado, foi esbanjado por quem mandou, voltado exclusivamente para a satisfação das suas vontades.
A gente sabe. Pagamos pela colonização predatória, por três séculos e meio de escravidão até hoje não extinta, pela proclamação da independência de um país sem nação, por uma série de golpes de Estado desde aquele que selou o advento da República. O mais deletério, até ontem, o de 1964, capaz de cortar no nascedouro um processo de modernização que tornaria o Brasil contemporâneo do mundo. O mais recente, enésimo e espantoso, é este que vivemos.
País totalmente festeiro, pueril porque não haveria de ser de outra maneira, vincado por uma desigualdade insuportável à luz da moral, da razão, de qualquer miúdo anseio democrático. O governo interino do seu arguto vice, professor de Direito Constitucional pronto a rasgar a Constituição, atinge o estágio ideal da derrocada brasileira.
Pune o trabalho, devolve à miséria quantos tinham saído dela, desliga-se mais e mais da educação e da saúde do povo, entrega-se como súdito obediente nos braços do império de Tio Sam e alegremente leiloa o País. Ouvi da sua boca recentemente uma frase que me encantou. Aludia aos atuais donos do poder provisório, não são conservadores, disse a senhora, porque há conservadores de todo respeito.
E repare em quem está por trás da vergonhosa tramoia: muitos que já se declararam de esquerda, assim como militantes da mídia nativa, propagandistas em lugar de jornalistas. Pois é, presidenta, ódio de classe não é próprio de quem deseja e busca a igualdade. Daí a minha convicção de que os progressistas da fé autêntica sempre foram exceções. De uma forma ou de outra, somos todos culpados, mesmo porque quem teve a ocasião de ir fundo em sua ação ficou no meio do caminho, quando não passou da intenção.
Retorno ao busillis. Se vale considerar a possibilidade do seu reingresso no Palácio do Planalto, creio fundamental e indispensável que a senhora decline desde agora, de imediato, a plataforma de seu retorno à vista da inevitável dificuldade de governar à sua espera. Melhor dizer impossibilidade. Desculpe a insistência: neste exato instante cabe-lhe dizer a que viria. Com isso, assumiria previamente um compromisso capaz de representar um argumento a seu favor para a mudança de votos deste ou daquele senador.
Na entrevista que a senhora deu a CartaCapital faz três semanas, falamos também de eventual convocação de eleições antecipadas e concordamos quanto à inviabilidade prática da ideia: quem, neste Congresso, aceitaria renunciar ao cargo antes do tempo? Pelo contrário, a proposta de um plebiscito é amplamente sustentável. Acredito na conveniência de se convocar uma comissão de sábios para a formulação de umas poucas, claras e reveladoras perguntas ao povo brasileiro, para saber de vez o que pensa do momento de crise e o que deseja para sair dele e confiar no futuro. Se forem eleições já, como deixar de convocá-las a partir do aval popular?
Há uma questão em jogo, de gravidade imensa: o descrédito da política, compacto, total, generalizado. Seria altamente recomendável que os políticos brasileiros, os praticantes da chamada arte do possível no Brasil tornada artimanha, digo, os fazedores de política das mais diversas extrações, a incluir, por exemplo, toda a vasta gama de envolvidos no golpe, além dos parlamentares, ou seja, juízes, promotores, policiais, empresários, propagandistas midiáticos, tentassem um mea-culpa antes de serem tragados pelo abissal desencanto popular. Política é a única saída para a rejeição da política.
Este sim seria lance democrático na acepção mais precisa. Não cabe, obviamente, perdoar corruptos, corruptores e corrompidos, sem exceções, de onde quer que se cheguem, sem exclusão, é bom acentuar, de quem goza da benevolência da casa-grande ou faz parte dela. Presidenta Dilma, se a senhora lograr reverter a primeira votação do Senado para não perder, ganhará a extraordinária oportunidade de reescrever a história do Brasil. Parada dura, duríssima, a exigir a fé e o desassombro da jovem Dilma. Arrisco-me a imaginar o ideal, a convocação de uma Constituinte exclusiva chamada a refundar o Brasil.
Escreveu Voltaire a uma dama: “Desculpe, senhora, esta longa carta, não tive tempo de fazê-la curta”. Sem permitir-me comparações, peço desculpas pela longa carta destinada a contar um sonho das noites passadas. Encare estas mal traçadas como derradeira tentativa de dar significado a uma vida, a minha própria vida, assoalhada pelas ilusões.
Com todo o respeito.
Mino Carta
Prezada presidenta,
Nesta hora gravíssima, e tão dolorosa para um velho praticante do jornalismo, honesto porque verdadeiro, permito-me escrever-lhe, movido por aquele que enxergo como o interesse do Brasil. Deixa-me à vontade ter CartaCapital apoiado sua candidatura em 2010 e 2014, embora não a tenha poupado de críticas, amiúde contundentes, durante seu primeiro mandato e mais ainda no breve cumprimento do segundo, ignominiosamente interrompido pela manobra golpista urdida à sombra da casa-grande.
Inspira-me a possibilidade da reversão do primeiro resultado da votação do impeachment pelo Senado. Haverá quem diga ser chance remota, entretanto existe a ponto de levar a admiti-la o American Quarterly, importante publicação norte-americana próxima ao Departamento de Estado. E bem imaginamos o quanto desagradaria a Washington um retorno petista.
Chego ao busillis, como dizia um meu professor de latim: caso o destino a favoreça, a senhora ganhará a oportunidade de colocar o País na rota certa. Não disse recolocar, e explico. Perdoe a ousadia da proposta e a imponência das palavras: trata-se de aprimorar a ideia de refundar o Brasil, ao reconhecer a debacle geral, a derrota de todos nesta monstruosa refrega que nos pune sem exceção e nos reserva o caos final.
Não me refiro ao já desfraldado desastre do governo interino do seu pomposo vice, soberano apenas no uso da mesóclise. Governo desastrado até aos olhos de Congresso disposto a rasgar a Constituição de 1988, a sacramentar o enterro dos modestos avanços sociais conseguidos nos últimos 13 anos e de embarcar na aventura golpista comandada por um bando de corruptos. Está aí, talvez, a razão pela qual um ou outro senador poderia rever seu voto, sem deixar de combinar a responsabilidade moral com a conveniência política.
Sejamos claros. O Brasil foi escalado pela natureza para ser um paraíso terrestre, como disse Amerigo Vespucci ao adentrar a Baía de Guanabara faz 515 anos. Dissera um ano antes Caminha: aqui tudo “em se plantando dá”. Não vamos nos fazer de desentendidos: o patrimônio, felizmente ainda em boa parte intocado, foi esbanjado por quem mandou, voltado exclusivamente para a satisfação das suas vontades.
A gente sabe. Pagamos pela colonização predatória, por três séculos e meio de escravidão até hoje não extinta, pela proclamação da independência de um país sem nação, por uma série de golpes de Estado desde aquele que selou o advento da República. O mais deletério, até ontem, o de 1964, capaz de cortar no nascedouro um processo de modernização que tornaria o Brasil contemporâneo do mundo. O mais recente, enésimo e espantoso, é este que vivemos.
País totalmente festeiro, pueril porque não haveria de ser de outra maneira, vincado por uma desigualdade insuportável à luz da moral, da razão, de qualquer miúdo anseio democrático. O governo interino do seu arguto vice, professor de Direito Constitucional pronto a rasgar a Constituição, atinge o estágio ideal da derrocada brasileira.
Pune o trabalho, devolve à miséria quantos tinham saído dela, desliga-se mais e mais da educação e da saúde do povo, entrega-se como súdito obediente nos braços do império de Tio Sam e alegremente leiloa o País. Ouvi da sua boca recentemente uma frase que me encantou. Aludia aos atuais donos do poder provisório, não são conservadores, disse a senhora, porque há conservadores de todo respeito.
E repare em quem está por trás da vergonhosa tramoia: muitos que já se declararam de esquerda, assim como militantes da mídia nativa, propagandistas em lugar de jornalistas. Pois é, presidenta, ódio de classe não é próprio de quem deseja e busca a igualdade. Daí a minha convicção de que os progressistas da fé autêntica sempre foram exceções. De uma forma ou de outra, somos todos culpados, mesmo porque quem teve a ocasião de ir fundo em sua ação ficou no meio do caminho, quando não passou da intenção.
Retorno ao busillis. Se vale considerar a possibilidade do seu reingresso no Palácio do Planalto, creio fundamental e indispensável que a senhora decline desde agora, de imediato, a plataforma de seu retorno à vista da inevitável dificuldade de governar à sua espera. Melhor dizer impossibilidade. Desculpe a insistência: neste exato instante cabe-lhe dizer a que viria. Com isso, assumiria previamente um compromisso capaz de representar um argumento a seu favor para a mudança de votos deste ou daquele senador.
Na entrevista que a senhora deu a CartaCapital faz três semanas, falamos também de eventual convocação de eleições antecipadas e concordamos quanto à inviabilidade prática da ideia: quem, neste Congresso, aceitaria renunciar ao cargo antes do tempo? Pelo contrário, a proposta de um plebiscito é amplamente sustentável. Acredito na conveniência de se convocar uma comissão de sábios para a formulação de umas poucas, claras e reveladoras perguntas ao povo brasileiro, para saber de vez o que pensa do momento de crise e o que deseja para sair dele e confiar no futuro. Se forem eleições já, como deixar de convocá-las a partir do aval popular?
Há uma questão em jogo, de gravidade imensa: o descrédito da política, compacto, total, generalizado. Seria altamente recomendável que os políticos brasileiros, os praticantes da chamada arte do possível no Brasil tornada artimanha, digo, os fazedores de política das mais diversas extrações, a incluir, por exemplo, toda a vasta gama de envolvidos no golpe, além dos parlamentares, ou seja, juízes, promotores, policiais, empresários, propagandistas midiáticos, tentassem um mea-culpa antes de serem tragados pelo abissal desencanto popular. Política é a única saída para a rejeição da política.
Este sim seria lance democrático na acepção mais precisa. Não cabe, obviamente, perdoar corruptos, corruptores e corrompidos, sem exceções, de onde quer que se cheguem, sem exclusão, é bom acentuar, de quem goza da benevolência da casa-grande ou faz parte dela. Presidenta Dilma, se a senhora lograr reverter a primeira votação do Senado para não perder, ganhará a extraordinária oportunidade de reescrever a história do Brasil. Parada dura, duríssima, a exigir a fé e o desassombro da jovem Dilma. Arrisco-me a imaginar o ideal, a convocação de uma Constituinte exclusiva chamada a refundar o Brasil.
Escreveu Voltaire a uma dama: “Desculpe, senhora, esta longa carta, não tive tempo de fazê-la curta”. Sem permitir-me comparações, peço desculpas pela longa carta destinada a contar um sonho das noites passadas. Encare estas mal traçadas como derradeira tentativa de dar significado a uma vida, a minha própria vida, assoalhada pelas ilusões.
Com todo o respeito.
Mino Carta
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