Por Patrick Cockburn, no site Outras Palavras:
Vivemos numa era de desintegração. Em nenhum lugar isso é mais evidente do que no Oriente Médio e na África. De lado a lado da vasta faixa de território entre o Paquistão e a Nigéria, há pelo menos sete guerras acontecendo – no Afeganistão, Iraque, Síria, Iêmen, Líbia, Somália e Sudão do Sul. Esses conflitos são extraordinariamente destrutivos. Despedaçam os países onde estão ocorrendo, a ponto que é de se duvidar se algum dia poderão recuperar-se. Cidades como Aleppo, na Síria; Ramadi, no Iraque; Taiz, no Iêmen; e Benghazi, na Líbia, foram reduzidas a ruínas, em parte ou totalmente. Há também pelo menos três outras sérias conflagrações: no sudeste da Turquia, onde as guerrilhas curdas estão combatendo o exército turco; na península do Sinai, no Egito, onde atua uma guerrilha pouco divulgada, porém feroz; e no nordeste da Nigéria e países vizinhos, onde o Boko Haram continua a fazer ataques assassinos.
Todos têm algumas coisas em comum: são intermináveis, e parecem nunca produzir vencedores ou perdedores definitivos. (O Afeganistão está em guerra desde 1979 e a Somália, desde 1991). Envolvem a destruição ou o desmembramento de nações unificadas, sua divisão de facto entre movimentos de massa da população e insurreições – bemdivulgados no caso da Síria e do Iraque, e menos em lugares como o Sudão do Sul, onde mais de 2,4 milhões de pessoas foram deslocadas nos últimos anos.
Some-se a isso mais uma semelhança, não menos crucial, embora óbvia: na maioria desses países, nos quais o Islã é a religião dominante, movimentos salafistas extremistas, entre eles o Estado Islâmico (ISIS), a Al-Qaeda e o Talibã, são essencialmente os únicos canais disponíveis para protestos e rebeliões. No momento, substituíram inteiramente os movimentos socialistas e nacionalistas que predominaram no século 20. Os últimos anos viram um significativo retorno à identidade religiosa, étnica e tribal, por movimentos que buscam estabelecer seu próprio território exclusivo pela perseguição e expulsão de minorias.
No processo, e sob pressão de intervenção militar externa, uma vasta região do planeta parece estar sendo cindida. Há muito pouco entendimento desses processos em Washington. Um bom exemplo disso foi o recente protesto de 51 diplomatas do departamento de Estado, contrários à política do presidente Barack Obama para a Síria e a sugestão de que sejam lançados ataques aéreos contra as forças do regime sírio, acreditando que o presidente Bashar al-Assad iria assim cooperar com um cessar fogo. A abordagem dos diplomatas mantém-se tipicamente simplória, num conflito extremamente complexo, ao acreditar que o bombardeio de áreas civis e outros atos impiedosos do governo sírio são a “causa raiz da instabilidade que continua a sufocar a Síria e a região mais ampla”.
É como se a mente desses diplomatas estivesse ainda na era da Guera Fria, como se eles ainda estivessem lutando contra a União Soviética e seus aliados. Contra todas as evidências dos últimos cinco anos, assume-se que uma oposição síria moderada, que mal sobrevive, seria beneficiada pela queda de Assad. Falta entender que a oposição armada na Síria é inteiramente dominada pelos clones do Estado Islâmico e da al-Qaeda.
Embora admita-se amplamente, hoje, que a invasão do Iraque em 2003 foi um erro (mesmo por aqueles que a apoiaram à época), não se aprenderam as verdadeiras lições. Por que todas as intervenções militares, diretas ou indiretas, dos EUA e seus aliados no Oriente Médio, no último quarto de século, apenas exacerbaram a violência e aceleraram a falência do Estado?
Extinção em massa de estados independentes
O Estado Islâmico (ISIS), que acaba de comemorar seu segundo aniversário, é o resultado grotesco desta era de caos e conflitos. A simples existência dessa seita hedionda é um sintoma do profundo deslocamento sofrido pelas sociedades de toda a região, governada por elites corruptas e desacreditadas. O crescimento do ISIS – e o de vários clones do estilo Talibã e Al-Qaeda – é uma medida da fraqueza de seus opositores.
O exército e forças de segurança do Iraque, por exemplo, tinham 350 mil soldados e 660 mil policiais, segundo os registros, em junho de 2014, quando alguns poucos milhares de combatentes do Estado Islâmico capturaram Mossul, segunda maior cidade do país, que ainda dominam. Hoje, o exército iraquiano, os serviços de segurança e cerca de 20 mil paramilitares xiitas, apoiados pelo poder de fogo maciço dos Estados Unidos e forças aéreas aliadas, abriram caminho a bala até a cidade de Faluja, cerca de 60 quilômetros a oeste de Bagdá, contra a resistência de não mais que 900 combatentes do ISIS. No Afeganistão, o ressurgimento do Talibã, supostamente derrotado em definitivo em 2001, aconteceu menos em razão da popularidade do movimento do que pelo descaso com que os afegãos viam o governo corrupto de Cabul.
Os estados-nação estão depauperados ou desmoronando em todos os lugares, enquanto líderes autoritários lutam pela sobrevivência frente a crescentes pressões, externas e internas. Esse não é, de modo algum, o modo como se esperava que se desse o desenvolvimento da região. Os países que escaparam do domínio colonial na segunda metade do século 20, com o passar do tempo, deveriam tornar-se mais e não menos unificados.
Entre 1950 e 1975, líderes nacionalistas assumiram o poder em grande parte do mundo anteriormente colonizado. Prometeram alcançar autodeterminação nacional criando estados independentes poderosos, por meio da concentração de todos os recursos políticos, militares e econômicos disponíveis. Em vez disso, no decorrer das décadas muitos desses regimes transformaram-se em estados policiais controlados por um pequeno número de famílias surpreendentemente ricas, e uma camarilha de empresários dependentes de suas conexões com líderes como Hosni Mubarak, no Egito, ou Bashar al-Assad, na Síria.
Nos últimos anos, esses países foram também abertos ao furacão do neoliberalismo, que destruiu qualquer contrato social rudimentar que existia entre os governantes e os governados. Veja a Síria. Lá, vilas e cidades rurais que em algum momento apoiaram o regime do partido Baath da família al-Assad, porque proporcionou empregos e manteve baixos os preços dos produtos básicos, foram depois de 2000 abandonados às forças do mercado, distorcidas em favor daqueles que estão no poder. Esses lugares foram a espinha dorsal da rebelião pós 2011. Ao mesmo tempo, instituições como a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), que tanto fez para aumentar a riqueza e o poder dos produtores de petróleo da região nos anos 1970, perderam a capacidade de agir unificadamente.
A questão do momento é: por que uma “extinção em massa” de estados independentes está acontecendo no Oriente Médio, no Norte da África e região? Os políticos e a mídia ocidentais referem-se frequentemente a esses países como “estados fracassados”. O sentido que esse termo implica é que o processo é autodestrutivo. Mas vários estados agora rotulados de fracassados, como a Líbia, reduziram-se a isso somente depois que movimentos de oposição, apoiados pelo Ocidente, tomaram o poder com o apoio e a intervenção militar de Washington e da OTAN, e mostraram-se muito fracos para impor seus próprios governos centrais e o monopólio da violência no território nacional.
O processo começou, em vários sentidos, com a intervenção no Iraque pela coalizão liderada pelos EUA, em 2003, que levou à queda de Saddam Hussein, ao fechamento do Partido Baath e à dissolução de seu exército. Qualquer que sejam seus erros, Saddam e o autocrático governante da Líbia, Muammar Gaddafi, foram claramente demonizados e acusados pelas diferenças étnicas, sectárias e regionais dos países que governavam — forças estas que foram, na verdade, liberadas de modo cruel depois de suas mortes.
Há, contudo, uma pergunta que não quer calar: por que a oposição à autocracia e à intervenção do Ocidente assumiu a forma islâmica, e por que os movimentos islâmicos que acabaram por dominar a resistência armada no Iraque e na Síria, em particular, toram tão violentos, regressivos e sectários? Colocado de outra forma, como poderiam esses grupos encontrar tantas pessoas querendo morrer por suas causas, enquanto seus opositores encontraram tão poucas? Quando os grupos de combate do ISIS estavam varrendo o norte do Iraque, no verão de 2014, soldados que haviam jogado fora suas armas e uniformes, e desertaram daquelas cidades do norte do país, justificaram sua revoada dizendo com desdém: “Morrer pelo [então primeiro ministro Nouri] al-Maliki? Jamais!”
Uma explicação usual para o crescimento dos movimentos de resistência islâmica é que a oposição socialista, secular e nacionalista foi esmagada pelas forças de segurança dos velhos regimes, ao contrário dos islâmicos. Em países como a Líbia e a Síria, contudo, os islâmicos também foram perseguidos com selvageria, e apesar disso dominaram a oposição. Mesmo assim, embora esses movimentos religiosos tenham sido suficientemente fortes para opor-se aos governos, eles geralmente não se mostraram fortes o suficiente para substituí-los.
Muito fracos para vencer, muito fortes para perder
Embora haja, claramente, muitas razões para a desintegração atual dos estados, e elas sejam de alguma forma diferentes de lugar para lugar, uma coisa é certa: o fenômeno está se tornando uma regra em vastas regiões do planeta.
Se você está procurando as causas da falência do estado nos dias que correm, deve sem dúvida começar pelo fim da Guerra Fria, um quarto de século atrás. Uma vez encerrada, nem os EUA, nem a nova Rússia que emergiu da implosão da União Soviética tinham interesse significativo em continuar apoiando “estados fracassados”, como fizeram durante tanto tempo, por medo de que o superpoder rival e seus aliados locais pudessem, então, tomar o poder. Antes, líderes nacionais de regiões como o Oriente Médio eram capazes de manter seus países com certa independência, equilibrando-se entre Moscou e Washington. Com a dissolução da União Soviética, isso não foi mais possível.
Além disso, na esteira do colapso da União Soviética, o triunfo da economia neoliberal de livre mercado somou a esse mix um elemento crítico. O neoliberalismo iria se mostrar muito mais desestabilizador do que parecia à época.
Veja a Síria, de novo. A expansão do livre mercado, num país onde não havia nem legitimidade democrática, nem o domínio da lei, significou acima de tudo uma coisa: plutocratas ligados às famílias que governavam as nações tomaram para si tudo o que parecia potencialmente lucrativo. No processo, tornaram-se assustadoramente ricos, enquanto os habitantes empobrecidos das vilas, das cidades e das favelas urbanas, que antes contavam com o estado para conseguir emprego e comida barata, sofreram. Ninguém deveria surpreender-se pelo fato de que esses lugares tenham se tornado redutos das rebeliões sírias, depois de 2011. Na capital, Damasco, à medida em que se expandia o reino do neoliberalismo, até mesmo os membros menos importantes do mukhabarat, a polícia secreta, passaram a viver com apenas 200 a 300 dólares mensais, enquanto o estado tornava-se uma máquina de ladrões.
Esse tipo de saque e leilão do patrimônio nacional espalhou-se por toda a região nestes anos. O novo governo egípcio, comandado pelo general Abdel Fattah al-Sisi, impiedoso em relação a qualquer sinal de dissidência interna, foi emblemático. Em um país que tinha sido referência para regimes nacionalistas em todo mundo, ele não hesitou, em abril deste ano, em abrir mão de duas ilhas no Mar Vermelho para Arábia Saudita, de cujo financiamento e “ajuda” seu regime é dependente. (Para a surpresa de todos, o Tribunal Superior do Egito suspendeu recentemente a decisão de Sisi).
Esse gesto, profundamente impopular entre egípcios cada vez mais pobres, foi o símbolo de uma mudança mais vasta no equilíbrio do poder no Oriente Médio. Os estados mais poderosos da região – Egito, Síria e Iraque – eram regimes seculares nacionalistas, e foram um contrapeso genuino às monarquias da Arábia Saudita e do Golfo Pérsico. No momento em que o poder destas ditaduras seculares enfraqueceu, a influência das monarquias fundamentalistas sunitas só aumentou. Se em 2011 vimos a rebelião e revolução espalharem-se por todo Oriente Médio, com o breve florescimento da Primavera Árabe, também vimos a contrarrevolução ressurgir, financiada pelas milionárias petromonarquias do Golfo, que nunca tolerariam uma mudança para um regime democrático secular na Síria ou Líbia.
Adiciona-se a isso novos processos em curso que fragilizaram estes estados: a produção e venda de recursos naturais – petróleo, gás e minério – e a cleptomania que o acompanha. Esses países sofrem frequentemente com algo que se tornou conhecido como “a maldição dos recursos”: estados cada vez mais dependentes das receitas advindas da venda dos recursos naturais – o suficiente para fornecer para toda população, teoricamente, um patamar razoável de vida digna – tornando-se ditaduras grotescamente corruptas. Nelas, iates dos bilionários locais, com conexões cruciais para os regimes, vivem cercados por favelas com esgoto a céu aberto. Nesses países, a política tende a concentrar-se entre as elites, batalhando e manobrando para roubar as receitas do Estado e desviá-la o mais rápido possível para fora do país.
Este tem sido o padrão da vida econômica e política em grande parte da África subsariana, de Angola à Nigéria. No Oriente Médio e África do Norte, no entanto, existe um sistema diferente, em geral mal entendido mundo afora. Há similarmente grandes desigualdades no Iraque ou na Arábia Saudita, com elites cleptocráticas semelhantes. Entretanto, eles governam seus estados com parte significativa da população, patrocinando oferta de trabalhos no setor público em troca da passividade política ou apoio a seus regimes cleptocráticos.
O Iraque tem uma população de 33 milhões de pessoas. No momento, nada menos que 7 milhões estão na folha de pagamento do governo, graças a salários e pensões que custam US$ 4 bilhões por mês. Esta forma rude de distribuir as receitas do petróleo à população sempre foi denunciada como corrupta pelos comentaristas e economistas ocidentais. Eles, por sua vez, geralmente recomendam o corte desses trabalhos, mas isso significaria que toda a receita advinda dos recursos naturais, em vez de uma parte, seria roubada pela elite. Isso, de fato, é cada vez mais o caso nessas terras, onde o preço do petróleo despenca e até mesmo a realeza saudita começa a cortar o suporte estatal para a população.
Por algum tempo, acreditou-se que o neoliberalismo seria o caminho para democracias seculares e economias de livre mercado. Na prática, tem sido tudo, menos isso. Ao contrário: junto com a maldição dos recursos naturais, e as repetidas intervenções militares de Washington e seus aliados, as economias do “livre” mercado desestabilizaram profundamente o Oriente Médio. Encorajado por Washington e Bruxelas [sede da União Europeia], o neoliberalismo do século 21 tem feito sociedade desiguais ainda mais desiguais e ajudado transformar regimes já corruptos em máquinas de saques. Esta é também, obviamente, a fórmula para o sucesso do Estado Islâmico ou qualquer alternativa radical para o status quo. Tais movimentos encontram facilmente apoio em regiões empobrecidas e negligenciadas, como o leste da Síria ou o leste da Líbia.
Note, contudo, que este processo de desestabilização não é uma peculiaridade do Oriente Médio e Norte da África. Estamos certamente na era da desestabilização, um fenômeno que está crescendo globalmente, espalhando-se para os Bálcãs e Leste Europeu (com a União Europeia cada vez menos capaz de influenciar os acontecimentos na região). Não se fala mais de integração europeia, mas de como prevenir a completa dissolução da União Europeia na esteira do supetão dado pelo Brexit na Inglaterra.
As razões pelas quais uma estreita maioria dos britânicos votou no Brexit tem paralelos com o Oriente Médio. As politicas econômicas de livre mercado perseguidas pelos governos, desde que Margaret Thatcher foi primeira-ministra, aprofundaram o fosso entre ricos e pobres e entre cidades ricas e boa parte do resto do país. A Grã-Bretanha pode estar indo bem, mas milhões de britânicos não compartilham da mesma prosperidade. O referendo sobre permanecer como membro da União Europeia, opção quase universalmente defendida pelo establishment britânico, tornou-se o catalisador para o protesto contra o status quo. A fúria dos que votaram a favor da saída tem muito em comum com a dos apoiadores do Donald Trump nos Estados Unidos.
Os EUA continuam a ser uma superpotência, mas já não são tão forte como antes. Eles, também, estão sentindo a tensão deste momento global, em que eles e seus aliados locais são suficientemente poderosos para imaginar que podem se livrar dos regimes de que não gostam - mesmo sem ter sucesso, como na Síria, ou tendo sucesso, mas sem poder substituir o que eles destruíram, como na Líbia. Um político iraquiano disse uma vez que o problema em seu país é que os partidos e movimentos eram “muito fracos para ganhar, mas muitos fortes para perder”. Este é cada vez mais o padrão de toda a região e está se espalhando para outros lugares. Isto traz consigo uma possibilidade de um ciclo interminável de guerras indecisas e uma era de instabilidade que já começou.
* Tradução de Cauê Seignemartin Ameni e Inês Castilho.
Vivemos numa era de desintegração. Em nenhum lugar isso é mais evidente do que no Oriente Médio e na África. De lado a lado da vasta faixa de território entre o Paquistão e a Nigéria, há pelo menos sete guerras acontecendo – no Afeganistão, Iraque, Síria, Iêmen, Líbia, Somália e Sudão do Sul. Esses conflitos são extraordinariamente destrutivos. Despedaçam os países onde estão ocorrendo, a ponto que é de se duvidar se algum dia poderão recuperar-se. Cidades como Aleppo, na Síria; Ramadi, no Iraque; Taiz, no Iêmen; e Benghazi, na Líbia, foram reduzidas a ruínas, em parte ou totalmente. Há também pelo menos três outras sérias conflagrações: no sudeste da Turquia, onde as guerrilhas curdas estão combatendo o exército turco; na península do Sinai, no Egito, onde atua uma guerrilha pouco divulgada, porém feroz; e no nordeste da Nigéria e países vizinhos, onde o Boko Haram continua a fazer ataques assassinos.
Todos têm algumas coisas em comum: são intermináveis, e parecem nunca produzir vencedores ou perdedores definitivos. (O Afeganistão está em guerra desde 1979 e a Somália, desde 1991). Envolvem a destruição ou o desmembramento de nações unificadas, sua divisão de facto entre movimentos de massa da população e insurreições – bemdivulgados no caso da Síria e do Iraque, e menos em lugares como o Sudão do Sul, onde mais de 2,4 milhões de pessoas foram deslocadas nos últimos anos.
Some-se a isso mais uma semelhança, não menos crucial, embora óbvia: na maioria desses países, nos quais o Islã é a religião dominante, movimentos salafistas extremistas, entre eles o Estado Islâmico (ISIS), a Al-Qaeda e o Talibã, são essencialmente os únicos canais disponíveis para protestos e rebeliões. No momento, substituíram inteiramente os movimentos socialistas e nacionalistas que predominaram no século 20. Os últimos anos viram um significativo retorno à identidade religiosa, étnica e tribal, por movimentos que buscam estabelecer seu próprio território exclusivo pela perseguição e expulsão de minorias.
No processo, e sob pressão de intervenção militar externa, uma vasta região do planeta parece estar sendo cindida. Há muito pouco entendimento desses processos em Washington. Um bom exemplo disso foi o recente protesto de 51 diplomatas do departamento de Estado, contrários à política do presidente Barack Obama para a Síria e a sugestão de que sejam lançados ataques aéreos contra as forças do regime sírio, acreditando que o presidente Bashar al-Assad iria assim cooperar com um cessar fogo. A abordagem dos diplomatas mantém-se tipicamente simplória, num conflito extremamente complexo, ao acreditar que o bombardeio de áreas civis e outros atos impiedosos do governo sírio são a “causa raiz da instabilidade que continua a sufocar a Síria e a região mais ampla”.
É como se a mente desses diplomatas estivesse ainda na era da Guera Fria, como se eles ainda estivessem lutando contra a União Soviética e seus aliados. Contra todas as evidências dos últimos cinco anos, assume-se que uma oposição síria moderada, que mal sobrevive, seria beneficiada pela queda de Assad. Falta entender que a oposição armada na Síria é inteiramente dominada pelos clones do Estado Islâmico e da al-Qaeda.
Embora admita-se amplamente, hoje, que a invasão do Iraque em 2003 foi um erro (mesmo por aqueles que a apoiaram à época), não se aprenderam as verdadeiras lições. Por que todas as intervenções militares, diretas ou indiretas, dos EUA e seus aliados no Oriente Médio, no último quarto de século, apenas exacerbaram a violência e aceleraram a falência do Estado?
Extinção em massa de estados independentes
O Estado Islâmico (ISIS), que acaba de comemorar seu segundo aniversário, é o resultado grotesco desta era de caos e conflitos. A simples existência dessa seita hedionda é um sintoma do profundo deslocamento sofrido pelas sociedades de toda a região, governada por elites corruptas e desacreditadas. O crescimento do ISIS – e o de vários clones do estilo Talibã e Al-Qaeda – é uma medida da fraqueza de seus opositores.
O exército e forças de segurança do Iraque, por exemplo, tinham 350 mil soldados e 660 mil policiais, segundo os registros, em junho de 2014, quando alguns poucos milhares de combatentes do Estado Islâmico capturaram Mossul, segunda maior cidade do país, que ainda dominam. Hoje, o exército iraquiano, os serviços de segurança e cerca de 20 mil paramilitares xiitas, apoiados pelo poder de fogo maciço dos Estados Unidos e forças aéreas aliadas, abriram caminho a bala até a cidade de Faluja, cerca de 60 quilômetros a oeste de Bagdá, contra a resistência de não mais que 900 combatentes do ISIS. No Afeganistão, o ressurgimento do Talibã, supostamente derrotado em definitivo em 2001, aconteceu menos em razão da popularidade do movimento do que pelo descaso com que os afegãos viam o governo corrupto de Cabul.
Os estados-nação estão depauperados ou desmoronando em todos os lugares, enquanto líderes autoritários lutam pela sobrevivência frente a crescentes pressões, externas e internas. Esse não é, de modo algum, o modo como se esperava que se desse o desenvolvimento da região. Os países que escaparam do domínio colonial na segunda metade do século 20, com o passar do tempo, deveriam tornar-se mais e não menos unificados.
Entre 1950 e 1975, líderes nacionalistas assumiram o poder em grande parte do mundo anteriormente colonizado. Prometeram alcançar autodeterminação nacional criando estados independentes poderosos, por meio da concentração de todos os recursos políticos, militares e econômicos disponíveis. Em vez disso, no decorrer das décadas muitos desses regimes transformaram-se em estados policiais controlados por um pequeno número de famílias surpreendentemente ricas, e uma camarilha de empresários dependentes de suas conexões com líderes como Hosni Mubarak, no Egito, ou Bashar al-Assad, na Síria.
Nos últimos anos, esses países foram também abertos ao furacão do neoliberalismo, que destruiu qualquer contrato social rudimentar que existia entre os governantes e os governados. Veja a Síria. Lá, vilas e cidades rurais que em algum momento apoiaram o regime do partido Baath da família al-Assad, porque proporcionou empregos e manteve baixos os preços dos produtos básicos, foram depois de 2000 abandonados às forças do mercado, distorcidas em favor daqueles que estão no poder. Esses lugares foram a espinha dorsal da rebelião pós 2011. Ao mesmo tempo, instituições como a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), que tanto fez para aumentar a riqueza e o poder dos produtores de petróleo da região nos anos 1970, perderam a capacidade de agir unificadamente.
A questão do momento é: por que uma “extinção em massa” de estados independentes está acontecendo no Oriente Médio, no Norte da África e região? Os políticos e a mídia ocidentais referem-se frequentemente a esses países como “estados fracassados”. O sentido que esse termo implica é que o processo é autodestrutivo. Mas vários estados agora rotulados de fracassados, como a Líbia, reduziram-se a isso somente depois que movimentos de oposição, apoiados pelo Ocidente, tomaram o poder com o apoio e a intervenção militar de Washington e da OTAN, e mostraram-se muito fracos para impor seus próprios governos centrais e o monopólio da violência no território nacional.
O processo começou, em vários sentidos, com a intervenção no Iraque pela coalizão liderada pelos EUA, em 2003, que levou à queda de Saddam Hussein, ao fechamento do Partido Baath e à dissolução de seu exército. Qualquer que sejam seus erros, Saddam e o autocrático governante da Líbia, Muammar Gaddafi, foram claramente demonizados e acusados pelas diferenças étnicas, sectárias e regionais dos países que governavam — forças estas que foram, na verdade, liberadas de modo cruel depois de suas mortes.
Há, contudo, uma pergunta que não quer calar: por que a oposição à autocracia e à intervenção do Ocidente assumiu a forma islâmica, e por que os movimentos islâmicos que acabaram por dominar a resistência armada no Iraque e na Síria, em particular, toram tão violentos, regressivos e sectários? Colocado de outra forma, como poderiam esses grupos encontrar tantas pessoas querendo morrer por suas causas, enquanto seus opositores encontraram tão poucas? Quando os grupos de combate do ISIS estavam varrendo o norte do Iraque, no verão de 2014, soldados que haviam jogado fora suas armas e uniformes, e desertaram daquelas cidades do norte do país, justificaram sua revoada dizendo com desdém: “Morrer pelo [então primeiro ministro Nouri] al-Maliki? Jamais!”
Uma explicação usual para o crescimento dos movimentos de resistência islâmica é que a oposição socialista, secular e nacionalista foi esmagada pelas forças de segurança dos velhos regimes, ao contrário dos islâmicos. Em países como a Líbia e a Síria, contudo, os islâmicos também foram perseguidos com selvageria, e apesar disso dominaram a oposição. Mesmo assim, embora esses movimentos religiosos tenham sido suficientemente fortes para opor-se aos governos, eles geralmente não se mostraram fortes o suficiente para substituí-los.
Muito fracos para vencer, muito fortes para perder
Embora haja, claramente, muitas razões para a desintegração atual dos estados, e elas sejam de alguma forma diferentes de lugar para lugar, uma coisa é certa: o fenômeno está se tornando uma regra em vastas regiões do planeta.
Se você está procurando as causas da falência do estado nos dias que correm, deve sem dúvida começar pelo fim da Guerra Fria, um quarto de século atrás. Uma vez encerrada, nem os EUA, nem a nova Rússia que emergiu da implosão da União Soviética tinham interesse significativo em continuar apoiando “estados fracassados”, como fizeram durante tanto tempo, por medo de que o superpoder rival e seus aliados locais pudessem, então, tomar o poder. Antes, líderes nacionais de regiões como o Oriente Médio eram capazes de manter seus países com certa independência, equilibrando-se entre Moscou e Washington. Com a dissolução da União Soviética, isso não foi mais possível.
Além disso, na esteira do colapso da União Soviética, o triunfo da economia neoliberal de livre mercado somou a esse mix um elemento crítico. O neoliberalismo iria se mostrar muito mais desestabilizador do que parecia à época.
Veja a Síria, de novo. A expansão do livre mercado, num país onde não havia nem legitimidade democrática, nem o domínio da lei, significou acima de tudo uma coisa: plutocratas ligados às famílias que governavam as nações tomaram para si tudo o que parecia potencialmente lucrativo. No processo, tornaram-se assustadoramente ricos, enquanto os habitantes empobrecidos das vilas, das cidades e das favelas urbanas, que antes contavam com o estado para conseguir emprego e comida barata, sofreram. Ninguém deveria surpreender-se pelo fato de que esses lugares tenham se tornado redutos das rebeliões sírias, depois de 2011. Na capital, Damasco, à medida em que se expandia o reino do neoliberalismo, até mesmo os membros menos importantes do mukhabarat, a polícia secreta, passaram a viver com apenas 200 a 300 dólares mensais, enquanto o estado tornava-se uma máquina de ladrões.
Esse tipo de saque e leilão do patrimônio nacional espalhou-se por toda a região nestes anos. O novo governo egípcio, comandado pelo general Abdel Fattah al-Sisi, impiedoso em relação a qualquer sinal de dissidência interna, foi emblemático. Em um país que tinha sido referência para regimes nacionalistas em todo mundo, ele não hesitou, em abril deste ano, em abrir mão de duas ilhas no Mar Vermelho para Arábia Saudita, de cujo financiamento e “ajuda” seu regime é dependente. (Para a surpresa de todos, o Tribunal Superior do Egito suspendeu recentemente a decisão de Sisi).
Esse gesto, profundamente impopular entre egípcios cada vez mais pobres, foi o símbolo de uma mudança mais vasta no equilíbrio do poder no Oriente Médio. Os estados mais poderosos da região – Egito, Síria e Iraque – eram regimes seculares nacionalistas, e foram um contrapeso genuino às monarquias da Arábia Saudita e do Golfo Pérsico. No momento em que o poder destas ditaduras seculares enfraqueceu, a influência das monarquias fundamentalistas sunitas só aumentou. Se em 2011 vimos a rebelião e revolução espalharem-se por todo Oriente Médio, com o breve florescimento da Primavera Árabe, também vimos a contrarrevolução ressurgir, financiada pelas milionárias petromonarquias do Golfo, que nunca tolerariam uma mudança para um regime democrático secular na Síria ou Líbia.
Adiciona-se a isso novos processos em curso que fragilizaram estes estados: a produção e venda de recursos naturais – petróleo, gás e minério – e a cleptomania que o acompanha. Esses países sofrem frequentemente com algo que se tornou conhecido como “a maldição dos recursos”: estados cada vez mais dependentes das receitas advindas da venda dos recursos naturais – o suficiente para fornecer para toda população, teoricamente, um patamar razoável de vida digna – tornando-se ditaduras grotescamente corruptas. Nelas, iates dos bilionários locais, com conexões cruciais para os regimes, vivem cercados por favelas com esgoto a céu aberto. Nesses países, a política tende a concentrar-se entre as elites, batalhando e manobrando para roubar as receitas do Estado e desviá-la o mais rápido possível para fora do país.
Este tem sido o padrão da vida econômica e política em grande parte da África subsariana, de Angola à Nigéria. No Oriente Médio e África do Norte, no entanto, existe um sistema diferente, em geral mal entendido mundo afora. Há similarmente grandes desigualdades no Iraque ou na Arábia Saudita, com elites cleptocráticas semelhantes. Entretanto, eles governam seus estados com parte significativa da população, patrocinando oferta de trabalhos no setor público em troca da passividade política ou apoio a seus regimes cleptocráticos.
O Iraque tem uma população de 33 milhões de pessoas. No momento, nada menos que 7 milhões estão na folha de pagamento do governo, graças a salários e pensões que custam US$ 4 bilhões por mês. Esta forma rude de distribuir as receitas do petróleo à população sempre foi denunciada como corrupta pelos comentaristas e economistas ocidentais. Eles, por sua vez, geralmente recomendam o corte desses trabalhos, mas isso significaria que toda a receita advinda dos recursos naturais, em vez de uma parte, seria roubada pela elite. Isso, de fato, é cada vez mais o caso nessas terras, onde o preço do petróleo despenca e até mesmo a realeza saudita começa a cortar o suporte estatal para a população.
Por algum tempo, acreditou-se que o neoliberalismo seria o caminho para democracias seculares e economias de livre mercado. Na prática, tem sido tudo, menos isso. Ao contrário: junto com a maldição dos recursos naturais, e as repetidas intervenções militares de Washington e seus aliados, as economias do “livre” mercado desestabilizaram profundamente o Oriente Médio. Encorajado por Washington e Bruxelas [sede da União Europeia], o neoliberalismo do século 21 tem feito sociedade desiguais ainda mais desiguais e ajudado transformar regimes já corruptos em máquinas de saques. Esta é também, obviamente, a fórmula para o sucesso do Estado Islâmico ou qualquer alternativa radical para o status quo. Tais movimentos encontram facilmente apoio em regiões empobrecidas e negligenciadas, como o leste da Síria ou o leste da Líbia.
Note, contudo, que este processo de desestabilização não é uma peculiaridade do Oriente Médio e Norte da África. Estamos certamente na era da desestabilização, um fenômeno que está crescendo globalmente, espalhando-se para os Bálcãs e Leste Europeu (com a União Europeia cada vez menos capaz de influenciar os acontecimentos na região). Não se fala mais de integração europeia, mas de como prevenir a completa dissolução da União Europeia na esteira do supetão dado pelo Brexit na Inglaterra.
As razões pelas quais uma estreita maioria dos britânicos votou no Brexit tem paralelos com o Oriente Médio. As politicas econômicas de livre mercado perseguidas pelos governos, desde que Margaret Thatcher foi primeira-ministra, aprofundaram o fosso entre ricos e pobres e entre cidades ricas e boa parte do resto do país. A Grã-Bretanha pode estar indo bem, mas milhões de britânicos não compartilham da mesma prosperidade. O referendo sobre permanecer como membro da União Europeia, opção quase universalmente defendida pelo establishment britânico, tornou-se o catalisador para o protesto contra o status quo. A fúria dos que votaram a favor da saída tem muito em comum com a dos apoiadores do Donald Trump nos Estados Unidos.
Os EUA continuam a ser uma superpotência, mas já não são tão forte como antes. Eles, também, estão sentindo a tensão deste momento global, em que eles e seus aliados locais são suficientemente poderosos para imaginar que podem se livrar dos regimes de que não gostam - mesmo sem ter sucesso, como na Síria, ou tendo sucesso, mas sem poder substituir o que eles destruíram, como na Líbia. Um político iraquiano disse uma vez que o problema em seu país é que os partidos e movimentos eram “muito fracos para ganhar, mas muitos fortes para perder”. Este é cada vez mais o padrão de toda a região e está se espalhando para outros lugares. Isto traz consigo uma possibilidade de um ciclo interminável de guerras indecisas e uma era de instabilidade que já começou.
* Tradução de Cauê Seignemartin Ameni e Inês Castilho.
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