Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Convém prestar atenção à luz que apareceu no segundo tempo da sessão do Senado que aprovou o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, num placar de 61 a 20.
Chamados a dar um segundo voto em separado, no qual tinham de decidir se Dilma deveria manter seus direitos políticos, com a possibilidade de candidatar-se a cargos eletivos sem cumprir uma suspensão prevista de oito anos, sem falar em cargos da administração pública, nada menos que 20 senadores mudaram de posição. Um total de 19 simplesmente votaram pela preservação dos direitos de Dilma. Outros quatro se abstiveram, o que na prática é um voto a favor dela. Com o placar de 42 votos a favor de Dilma, 39 contra, configurou-se uma primeira derrota de Michel Temer minutos depois de ele ganhar o direito de usar a faixa presidencial. Numa simples operação matemática, cabe observar que, se os aliados de Dilma tivessem obtido esses 39 votos na primeira decisão, o impeachment teria sido derrotado por larga margem e ela estaria de volta ao gabinete do Planalto.
Ainda que isso não tenha acontecido, num país onde a cultura do futebol se mantém em alta, a faixa de Temer foi carimbada - termo usado para definir o time que perde o primeiro jogo logo depois de receber um título de campeão.
Como as duas votações ocorreram no mesmo dia, em torno de um mesmo debate, é curioso perguntar o que aconteceu. Romero Jucá, um senador cuja capacidade de produzir diagnósticos cirúrgicos não costuma ser colocada em dúvida desde que pronunciou a frase "Michel é Cunha" no diálogo gravado pelo empresário Sérgio Machado, está convencido de que, na segunda vez, os brasileiros assistiram a um evento reconhecidamente raro. Os senadores que mudaram de posição votaram "com a consciência", disse.
Faz sentido. Arrebanhados pelo golpismo de coalização, sistema de cooptação do governo Temer com as mesmas doenças do presidencialismo que leva o mesmo nome, mas agravadas pela ausência de voto popular, esses 20 senadores deixaram clara a frouxidão dos laços que mantêm com o novo presidente.
Em função daqueles interesses que poucos gostam de confessar, foram capazes de votar a favor do impeachment. Quando foram chamados a degolar os direitos da presidente que haviam acabado de punir, preferiram preservar a presidente.
"É uma demonstração clara de que acreditam em sua inocência", afirma um antigo ministro de Dilma. "Pagaram a conta cobrada pelo governo para terem interesses atendidos mas não perderam a chance de mostrar sua opinião. Aproveitaram essa segunda votação para se distanciar do golpe."
Outra hipótese, menos otimista, é que ao menos uma parcela da turma de dois votos tentou valorizar o passe, demonstrando que a adesão a Temer não pode ser vista como liquída e certa.
Em qualquer caso, é uma notícia ruim para o presidente, pois questiona a ideia tão cara a seus aliados de que será capaz de pacificar o país e tranquilizar o ambiente político de Brasília. Não por acaso, ele não foi capaz de esconder a irritação quando referiu-se ao assunto, na primeira entrevista já como presidente efetivo.
O time de votos duplos inclui Raimundo Lira, que foi nada menos do que o presidente da Comissão Especial do impeachment. Ali se encontra Rose de Freitas, a senadora do PMDB que admitiu que o impeachment nada tinha de jurídico, mas "era política mesmo." O presidente do Senado Renan Calheiros vestiu duas camisas, abstendo-se na segunda votação. O mesmo fez Eunício Oliveira, em campanha para ocupar a presidência da instituição no ano que vem.
Acyr Gurcacz, um dos senadores do voto duplo, foi relator das contas de Dilma de 2014. Pediu sua aprovação, com um argumento cortante: a denuncia simplesmente não apresentava o suposto rombo que os decretos suplementares teriam provocado. "Onde está o prejuízo?", perguntava Gurcacz.
É sintomático que esse voto dividido tenha ocorrido depois que o Senado passou quatro dias debatendo as acusações contra Dilma. O confronto entre acusação e defesa, naqueles dias, demonstrou a baixa qualidade das denúncias contra a presidente. Uma de suas testemunhas foi rebaixado para a posição de simples informado, pois se julgou que tinha um comportamento tendencioso em demasia. O outro admitiu ter ajudado nos preparativos de uma denúncia que ele mesmo iria examinar, mais tarde. Enquanto isso, a defesa fez depoimentos consistentes e didáticos, cujo único defeito é não terem tido a oportunidade de apresentar os mesmos argumentos com mais antecedência.
Em qualquer caso, as duas votações convergem para escrever uma única mensagem política.Num país onde cresce a convicção de que o impeachment de Dilma não passou de um golpe mal disfarçado, ideia partilhada por um número cada vez maior de personalidades que costumam evitar um comportamento político abertamente engajado, uma parcela considerável de senadores fez questão de proteger a própria biografia da mancha de golpista puro e duro.
Em vez do alinhamento automático, preferiram contrariar a jurisprudência de Jarbas Passarinho, o ministro-coronel que argumentou a favor da treva do AI-5 com a visão de que era preciso " mandar às favas todos os escrúpulos de consciência."
Teria sido, evidentemente, muito melhor para o país que tivessem dado o voto de consciência, como diz Jucá, nas duas oportunidades, realidade que também deve ser lembrada aos votos-duplos.
Seria uma demonstração de coerência em seus princípios democráticos, aonde se encontra uma regra básica do Direito - aquela que diz que, em caso de dúvida, um caso deve ser resolvido a favor do réu. O sujeito que se mostrou favorável a preservação dos direitos políticos de Dilma revela, no mínimo, uma gigantesca dúvida sobre sua culpa pelas pedaladas fiscais e o Plano Safra, vamos combinar.
Com 42 votos, ou 51% dos votos, os adversários de Dilma estariam longe dos 54, ou 66%, necessários ao afastamento.
De qualquer maneira, um fato novo foi criado. Sempre que se falar no golpe que derrubou Dilma, será possível lembrar que 49% se recusaram a cassar os direitos políticos de uma presidente eleita por mais de 54 milhões de votos.
Didático, não?
Convém prestar atenção à luz que apareceu no segundo tempo da sessão do Senado que aprovou o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, num placar de 61 a 20.
Chamados a dar um segundo voto em separado, no qual tinham de decidir se Dilma deveria manter seus direitos políticos, com a possibilidade de candidatar-se a cargos eletivos sem cumprir uma suspensão prevista de oito anos, sem falar em cargos da administração pública, nada menos que 20 senadores mudaram de posição. Um total de 19 simplesmente votaram pela preservação dos direitos de Dilma. Outros quatro se abstiveram, o que na prática é um voto a favor dela. Com o placar de 42 votos a favor de Dilma, 39 contra, configurou-se uma primeira derrota de Michel Temer minutos depois de ele ganhar o direito de usar a faixa presidencial. Numa simples operação matemática, cabe observar que, se os aliados de Dilma tivessem obtido esses 39 votos na primeira decisão, o impeachment teria sido derrotado por larga margem e ela estaria de volta ao gabinete do Planalto.
Ainda que isso não tenha acontecido, num país onde a cultura do futebol se mantém em alta, a faixa de Temer foi carimbada - termo usado para definir o time que perde o primeiro jogo logo depois de receber um título de campeão.
Como as duas votações ocorreram no mesmo dia, em torno de um mesmo debate, é curioso perguntar o que aconteceu. Romero Jucá, um senador cuja capacidade de produzir diagnósticos cirúrgicos não costuma ser colocada em dúvida desde que pronunciou a frase "Michel é Cunha" no diálogo gravado pelo empresário Sérgio Machado, está convencido de que, na segunda vez, os brasileiros assistiram a um evento reconhecidamente raro. Os senadores que mudaram de posição votaram "com a consciência", disse.
Faz sentido. Arrebanhados pelo golpismo de coalização, sistema de cooptação do governo Temer com as mesmas doenças do presidencialismo que leva o mesmo nome, mas agravadas pela ausência de voto popular, esses 20 senadores deixaram clara a frouxidão dos laços que mantêm com o novo presidente.
Em função daqueles interesses que poucos gostam de confessar, foram capazes de votar a favor do impeachment. Quando foram chamados a degolar os direitos da presidente que haviam acabado de punir, preferiram preservar a presidente.
"É uma demonstração clara de que acreditam em sua inocência", afirma um antigo ministro de Dilma. "Pagaram a conta cobrada pelo governo para terem interesses atendidos mas não perderam a chance de mostrar sua opinião. Aproveitaram essa segunda votação para se distanciar do golpe."
Outra hipótese, menos otimista, é que ao menos uma parcela da turma de dois votos tentou valorizar o passe, demonstrando que a adesão a Temer não pode ser vista como liquída e certa.
Em qualquer caso, é uma notícia ruim para o presidente, pois questiona a ideia tão cara a seus aliados de que será capaz de pacificar o país e tranquilizar o ambiente político de Brasília. Não por acaso, ele não foi capaz de esconder a irritação quando referiu-se ao assunto, na primeira entrevista já como presidente efetivo.
O time de votos duplos inclui Raimundo Lira, que foi nada menos do que o presidente da Comissão Especial do impeachment. Ali se encontra Rose de Freitas, a senadora do PMDB que admitiu que o impeachment nada tinha de jurídico, mas "era política mesmo." O presidente do Senado Renan Calheiros vestiu duas camisas, abstendo-se na segunda votação. O mesmo fez Eunício Oliveira, em campanha para ocupar a presidência da instituição no ano que vem.
Acyr Gurcacz, um dos senadores do voto duplo, foi relator das contas de Dilma de 2014. Pediu sua aprovação, com um argumento cortante: a denuncia simplesmente não apresentava o suposto rombo que os decretos suplementares teriam provocado. "Onde está o prejuízo?", perguntava Gurcacz.
É sintomático que esse voto dividido tenha ocorrido depois que o Senado passou quatro dias debatendo as acusações contra Dilma. O confronto entre acusação e defesa, naqueles dias, demonstrou a baixa qualidade das denúncias contra a presidente. Uma de suas testemunhas foi rebaixado para a posição de simples informado, pois se julgou que tinha um comportamento tendencioso em demasia. O outro admitiu ter ajudado nos preparativos de uma denúncia que ele mesmo iria examinar, mais tarde. Enquanto isso, a defesa fez depoimentos consistentes e didáticos, cujo único defeito é não terem tido a oportunidade de apresentar os mesmos argumentos com mais antecedência.
Em qualquer caso, as duas votações convergem para escrever uma única mensagem política.Num país onde cresce a convicção de que o impeachment de Dilma não passou de um golpe mal disfarçado, ideia partilhada por um número cada vez maior de personalidades que costumam evitar um comportamento político abertamente engajado, uma parcela considerável de senadores fez questão de proteger a própria biografia da mancha de golpista puro e duro.
Em vez do alinhamento automático, preferiram contrariar a jurisprudência de Jarbas Passarinho, o ministro-coronel que argumentou a favor da treva do AI-5 com a visão de que era preciso " mandar às favas todos os escrúpulos de consciência."
Teria sido, evidentemente, muito melhor para o país que tivessem dado o voto de consciência, como diz Jucá, nas duas oportunidades, realidade que também deve ser lembrada aos votos-duplos.
Seria uma demonstração de coerência em seus princípios democráticos, aonde se encontra uma regra básica do Direito - aquela que diz que, em caso de dúvida, um caso deve ser resolvido a favor do réu. O sujeito que se mostrou favorável a preservação dos direitos políticos de Dilma revela, no mínimo, uma gigantesca dúvida sobre sua culpa pelas pedaladas fiscais e o Plano Safra, vamos combinar.
Com 42 votos, ou 51% dos votos, os adversários de Dilma estariam longe dos 54, ou 66%, necessários ao afastamento.
De qualquer maneira, um fato novo foi criado. Sempre que se falar no golpe que derrubou Dilma, será possível lembrar que 49% se recusaram a cassar os direitos políticos de uma presidente eleita por mais de 54 milhões de votos.
Didático, não?
Talvez isso seja uma das desculpas para não causar Eduardo Cunho do cinco milhões de dólares.
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