Por Patrus Ananias, na revista Teoria e Debate:
Os mais duros críticos da obra de Karl Marx são os que melhor atestam na prática a procedência de algumas de suas afirmações. A que diz respeito ao primado do econômico, por exemplo. As questões políticas e sociais se submetem de forma abusivamente explícita às exigências cada vez mais impositivas de poderosos interesses econômicos e que muito bem se utilizam de uma estranha e ardilosa entidade: o mercado todo-poderoso, cada dia mais personificado, quando não divinizado. O mercado, oráculo incontrastável dos nossos tempos, envia sinais que se tornam ordens inquestionáveis independentemente de suas consequências sociais e humanas; o mercado age, reage, fica calmo ou fica nervoso segundo as circunstâncias; direciona a aplicação dos recursos; estabiliza ou desestabiliza, à luz de seus critérios e conveniências sempre enigmáticos, governos e sociedades, pelo menos por algum tempo – o tempo do ganho, do lucro dos que querem controlar pelo dinheiro os destinos dos povos e da humanidade.
O poder econômico apropriou-se dos principais meios de comunicação, que se tornaram grandes empresas associadas a outras que lhes asseguram os vultosos recursos decorrentes da publicidade e do controle da informação sobre atividades e eventos. O mercado assegura assim os canais para externar os seus desejos e impor as suas determinações. É um novo poder que se impõe acima dos poderes constitucionais.
O Brasil, não obstante as conquistas e realizações que tivemos a partir da Constituição de 5 de outubro de 1988, especialmente nos governos Lula e Dilma, continua sendo um país profundamente injusto e desigual, mais vulnerável, por conseguinte, às pressões e chantagens do mercado e de seus agentes. Mas vínhamos, aos trancos e barrancos como dizia o saudoso Darcy Ribeiro, caminhando, superando obstáculos e desafios e, assim, resistindo de alguma forma ao tremendo poder dos que querem submeter o Estado aos interesses do capital.
Os que vivemos os tempos inaugurais do Programa Bolsa Família, vinculado às políticas públicas da assistência social e da segurança alimentar e nutricional, temos viva na memória a vigorosa, duríssima oposição que enfrentamos dos setores mais poderosos da economia, inclusive das empresas de comunicação.
Reapresentavam, com a ênfase dogmática que caracteriza a fala empobrecida das elites brasileiras na defesa de seus privilégios, o velho argumento de que as injustiças e desigualdades sociais se resolvem unicamente pelo crescimento econômico e que, portanto, os recursos do Bolsa Família deviam ser direcionados para as atividades “produtivas”.
Voltavam ao chavão de que a solução para os problemas sociais era a criação de novos empregos, como se o capitalismo pudesse conviver por longo tempo com o pleno emprego e como se o desemprego não fosse estrutural à lógica do sistema capitalista. Desconsideravam também a situação das pessoas que não tinham garantidos, no passado, direitos que capacitam para o trabalho, como a educação.
Procuravam descaracterizar o programa com expressões pejorativas como “bolsa esmola” e “bolsa preguiça”. Tentaram criar falsas dicotomias: ensinar a pescar e não dar o peixe. E por aí afora.
A determinação do presidente Lula e a eficácia da operosa equipe do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, com apoio vigoroso de outros ministérios e órgãos públicos como a Caixa Econômica Federal, responsável pelo pagamento dos benefícios, impediram que o Bolsa Família e as políticas públicas que o complementam fossem destruídos logo no seu nascedouro. Acresce ainda o apoio de generosos setores da sociedade, incluídos os acadêmicos e até uma parcela de jornalistas, que vislumbraram o alcance social dos programas.
Consolidamos o Programa Bolsa Família e o Fome Zero, que se tornaram referências internacionais; garantimos a efetiva aplicação do Benefício da Prestação Continuada (BPC), previsto na Constituição da República, na Lei Orgânica da Assistência Social e no Estatuto do Idoso; efetivamos a construção do Sistema Único da Assistência Social (Suas); aprovamos a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) e a Emenda Constitucional nº 64/2010 que incluiu o direito à alimentação entre os direitos fundamentais assegurados na Carta Magna.
Os números e a realidade que se manifestam nas pesquisas e na vivência cotidiana das pessoas atentas e bem formadas atestam o êxito dessas políticas consubstanciadas no Bolsa Família, destinado, no contexto maior da rede de proteção social, a libertar as pessoas, famílias e comunidades da opressão da miséria e da extrema pobreza, e no Fome Zero, destinado a erradicar a fome e garantir a toda população brasileira o direito fundamental à alimentação e à segurança alimentar e nutricional. Em 2014, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) retirou o Brasil do Mapa da Fome, confirmando uma conquista histórica que ainda não foi devidamente celebrada entre nós.
É uma conquista que agora corre sérios riscos.
Os setores mais atrasados da elite econômica que jamais se desvencilharam da herança do colonialismo e da escravidão – elite, portanto, colonizada e colonizadora, dissociada de qualquer projeto de soberania e afirmação nacional – jamais aceitaram essas políticas públicas emancipatórias e possibilitadoras de melhores e mais dignas condições de vida para os pobres de nosso país. Sempre consideraram um desperdício de recursos.
O êxito das políticas sociais foi uma das causas do golpe contra o mandato legítimo, constitucional e democrático da presidenta Dilma Rousseff. Os integrantes dessa elite subserviente a interesses alienígenas, minoritária, mas poderosa do ponto de vista econômico e, como consequência, do ponto de vista político e das comunicações sociais, não aceitam a possibilidade, que tanto nos mobiliza, de uma pátria soberana e independente unificada sob a égide do desenvolvimento, da justiça social e de um patamar comum, acessível a toda a nacionalidade, de direitos e oportunidades. Jamais acolheram na prática o verso do Hino Nacional “dos filhos deste solo és mãe gentil”! Não querem partilhar o Brasil!
O golpe foi dado contra os nossos acertos
Cometemos erros. Alguns infringiram princípios da ética, do bem comum e do interesse público. Além disso, não disciplinamos ou não procuramos disciplinar, com maior empenho e o necessário vigor, o capitalismo predatório e selvagem que ainda prevalece no Brasil. Por isso não avançamos em reformas fundamentais, estruturantes e disciplinadoras do poder econômico e dos interesses particulares que se opõem ao bem público: as reformas agrária, urbana e tributária. Todos os países capitalistas que conseguiram equilibrar os interesses privados com as superiores exigências do interesse coletivo e nacional fizeram essas reformas, necessárias aqui para traduzirem na prática o princípio constitucional da função social da propriedade e das riquezas.
Não consolidamos e não ampliamos para os planos estaduais e nacional as experiências locais de orçamento participativo. Com isso desprezamos novas possibilidades para o planejamento e a democracia participativa.
Aos golpistas assustam essas possibilidades de expansão da democracia, da participação popular e do exercício efetivo, cotidiano, dos direitos e deveres da cidadania. Veem nas políticas sociais emancipatórias que implantamos a raiz e o anúncio do que, para eles, é o mal maior: a expansão dos direitos sociais, dos direitos dos pobres; a presença crescente e consciente dos pobres na vida política do país. Assim, vieram para matar o mal pela raiz!
Além das questões relativas à expansão da democracia participativa em detrimento do poder quase absoluto que os novos golpistas exercem no país há séculos, há uma outra questão que Marx levantou e que os arautos do neoliberalismo e do capitalismo selvagem explicitam com surpreendente e meridiana clareza e, uma vez mais, confirmam, pelo avesso, tese do pensador alemão: o acúmulo do capital. Reduzir, se possível extinguir os investimentos sociais, os direitos trabalhistas, os benefícios destinados aos trabalhadores e aos pobres para aumentar o ganho das grandes empresas capitalistas, dos bancos, dos interesses externos e estranhos aos interesses da pátria.
Não podiam ser mais claros e explícitos. E estão tentando, pela propaganda e a manipulação de informações, impor a ideia perversa de que é bom para todos aquilo que, na verdade, só é bom para interesses econômicos poderosos e minoritários.
Os golpistas começaram acabando com ministérios estratégicos na perspectiva da inclusão e da coesão social, componente fundante do projeto nacional. Extinguiram o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Com isso, excluem do debate e da formulação das políticas públicas os legados autoritários e discriminatórios do machismo, do patriarcado, da escravidão; excluem a afirmação dos direitos fundamentais que são os direitos humanos constitucionalizados e positivados onde se integram os direitos individuais, os direitos sociais, econômicos e culturais; os direitos coletivos, difusos, ambientais; direitos das minorias, das crianças e adolescentes, dos idosos, das pessoas com deficiência. Excluem e impedem a juventude de participar, pelas vias institucionais, da construção do presente e do futuro do país.
Extinguem o Ministério da Cultura, onde se debate, entre outros temas, a identidade nacional que se expressa através das manifestações culturais e artísticas diversificadas e regionalizadas, que respeitam e promovem as diferenças.
Foram adiante na sanha demolidora das conquistas sociais: extinguiram o Ministério do Desenvolvimento Agrário e, com ele, as reflexões e projetos sobre a reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura familiar associada ao cooperativismo, à agroecologia, ao desenvolvimento territorial e à economia solidária. Bateram de frente com políticas de grande alcance como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que assegura ao produtor o preço justo e garante às pessoas, famílias e comunidades empobrecidas, através dos alimentos adquiridos, o direito à alimentação saudável.
O fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário aponta claramente para o fim de programas como a compra direta, através do qual o Estado compra diretamente da agricultura familiar parte dos alimentos que consome com a merenda escolar, com os hospitais públicos e serviços de saúde, com os serviços militares e de segurança.
O governo ilegítimo adota medidas concretas contra o Programa Mais Gestão, de apoio ao cooperativismo; e contra programas de apoio à agroindústria, à comercialização, à implementação de políticas públicas referentes à educação, à saúde, à moradia, ao saneamento básico, ao lazer, à qualidade de vida e desenvolvimento nos assentamentos, territórios da agricultura familiar e das comunidades e populações tradicionais.
Ponto de encontro entre as ações do Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o programa Um Milhão de Cisternas, que já ultrapassou de muito a meta e tanto contribuiu ao lado de outras políticas e ações para virar a página da história relativa aos retirantes nordestinos da seca, é atingido mortalmente nos seus recursos, assim como as ações da Conab e da Embrapa voltadas para a agricultura familiar camponesa.
O processo de fragilização do Bolsa Família, para extingui-lo mais facilmente no futuro, começa por reduzir e eliminar as políticas públicas que lhe dão suporte – o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, os centros de referência em assistência social (Cras), as políticas de inclusão produtiva e de capacitação profissional.
Ainda no campo do Sistema Único de Assistência Social (Suas), não escondem os golpistas a intenção perversa de se voltarem contra o Benefício da Prestação Continuada (BPC). Se realizarem seus tristes objetivos, vão penalizar pessoas idosas e com deficiência – todas pobres, muito pobres. Pessoas que têm renda mensal inferior a ¼ do salário mínimo!
Os marxistas às avessas que só pensam no ganho, no lucro, no acúmulo do capital, na mais valia querem é, mais uma vez, realizar na prática a crítica marxista que considerava o Estado capitalista o comitê executivo da burguesia – o Estado só para eles e a serviço de seus interesses.
Nós, ao contrário, queremos o Estado do Bem-Estar Social. Queremos, por exemplo, que o Bolsa Família se torne uma política pública permanente, que garanta renda mínima de cidadania e dignidade para as pessoas e famílias em situação de maior vulnerabilidade – como existe na Áustria, nos países escandinavos, em países socialmente mais desenvolvidos. O Estado e a sociedade decidem, democraticamente, de acordo com as suas riquezas e prioridades, qual a renda mínima para que uma pessoa e/ou uma família possa viver bem e tenha atendidas suas necessidades básicas. Quando os ganhos pessoais ou familiares são inferiores a esse mínimo básico, o Estado aporta os recursos necessários para assegurar o mínimo vital básico. Foi isso que vi em países europeus quando estava no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no profícuo governo do presidente Lula.
Ouvi dos executores das políticas sociais dos países escandinavos que suas ações não decorriam apenas de sentimentos de altruísmo e compaixão. Decorriam, sobretudo, de uma compreensão com o bem-estar coletivo, em que interessa que as famílias, em qualquer circunstância, mantenham os seus vínculos afetivos para expandir a coesão social; e preservem seu poder de compra e consumo de bens e serviços básicos para manter viva e aquecida a economia do país.
Essa é uma compreensão de que ainda estão longe, muito longe, as elites econômicas e financeiras do Brasil e as facções políticas que lhes prestam serviço – como as reunidas no governo golpista de Temer. Recusam-se, todas elas, a um patamar minimamente civilizado, de construção do bem-estar para todos os que vivemos no Brasil. Não é a essa construção que se dedicam. Estão mobilizadas é pela desconstrução das políticas sociais.
* Patrus Ananias é deputado federal (PT-MG). Foi ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2004-2010) e ministro do Desenvolvimento Agrário (2015-2016).
Os mais duros críticos da obra de Karl Marx são os que melhor atestam na prática a procedência de algumas de suas afirmações. A que diz respeito ao primado do econômico, por exemplo. As questões políticas e sociais se submetem de forma abusivamente explícita às exigências cada vez mais impositivas de poderosos interesses econômicos e que muito bem se utilizam de uma estranha e ardilosa entidade: o mercado todo-poderoso, cada dia mais personificado, quando não divinizado. O mercado, oráculo incontrastável dos nossos tempos, envia sinais que se tornam ordens inquestionáveis independentemente de suas consequências sociais e humanas; o mercado age, reage, fica calmo ou fica nervoso segundo as circunstâncias; direciona a aplicação dos recursos; estabiliza ou desestabiliza, à luz de seus critérios e conveniências sempre enigmáticos, governos e sociedades, pelo menos por algum tempo – o tempo do ganho, do lucro dos que querem controlar pelo dinheiro os destinos dos povos e da humanidade.
O poder econômico apropriou-se dos principais meios de comunicação, que se tornaram grandes empresas associadas a outras que lhes asseguram os vultosos recursos decorrentes da publicidade e do controle da informação sobre atividades e eventos. O mercado assegura assim os canais para externar os seus desejos e impor as suas determinações. É um novo poder que se impõe acima dos poderes constitucionais.
O Brasil, não obstante as conquistas e realizações que tivemos a partir da Constituição de 5 de outubro de 1988, especialmente nos governos Lula e Dilma, continua sendo um país profundamente injusto e desigual, mais vulnerável, por conseguinte, às pressões e chantagens do mercado e de seus agentes. Mas vínhamos, aos trancos e barrancos como dizia o saudoso Darcy Ribeiro, caminhando, superando obstáculos e desafios e, assim, resistindo de alguma forma ao tremendo poder dos que querem submeter o Estado aos interesses do capital.
Os que vivemos os tempos inaugurais do Programa Bolsa Família, vinculado às políticas públicas da assistência social e da segurança alimentar e nutricional, temos viva na memória a vigorosa, duríssima oposição que enfrentamos dos setores mais poderosos da economia, inclusive das empresas de comunicação.
Reapresentavam, com a ênfase dogmática que caracteriza a fala empobrecida das elites brasileiras na defesa de seus privilégios, o velho argumento de que as injustiças e desigualdades sociais se resolvem unicamente pelo crescimento econômico e que, portanto, os recursos do Bolsa Família deviam ser direcionados para as atividades “produtivas”.
Voltavam ao chavão de que a solução para os problemas sociais era a criação de novos empregos, como se o capitalismo pudesse conviver por longo tempo com o pleno emprego e como se o desemprego não fosse estrutural à lógica do sistema capitalista. Desconsideravam também a situação das pessoas que não tinham garantidos, no passado, direitos que capacitam para o trabalho, como a educação.
Procuravam descaracterizar o programa com expressões pejorativas como “bolsa esmola” e “bolsa preguiça”. Tentaram criar falsas dicotomias: ensinar a pescar e não dar o peixe. E por aí afora.
A determinação do presidente Lula e a eficácia da operosa equipe do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, com apoio vigoroso de outros ministérios e órgãos públicos como a Caixa Econômica Federal, responsável pelo pagamento dos benefícios, impediram que o Bolsa Família e as políticas públicas que o complementam fossem destruídos logo no seu nascedouro. Acresce ainda o apoio de generosos setores da sociedade, incluídos os acadêmicos e até uma parcela de jornalistas, que vislumbraram o alcance social dos programas.
Consolidamos o Programa Bolsa Família e o Fome Zero, que se tornaram referências internacionais; garantimos a efetiva aplicação do Benefício da Prestação Continuada (BPC), previsto na Constituição da República, na Lei Orgânica da Assistência Social e no Estatuto do Idoso; efetivamos a construção do Sistema Único da Assistência Social (Suas); aprovamos a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) e a Emenda Constitucional nº 64/2010 que incluiu o direito à alimentação entre os direitos fundamentais assegurados na Carta Magna.
Os números e a realidade que se manifestam nas pesquisas e na vivência cotidiana das pessoas atentas e bem formadas atestam o êxito dessas políticas consubstanciadas no Bolsa Família, destinado, no contexto maior da rede de proteção social, a libertar as pessoas, famílias e comunidades da opressão da miséria e da extrema pobreza, e no Fome Zero, destinado a erradicar a fome e garantir a toda população brasileira o direito fundamental à alimentação e à segurança alimentar e nutricional. Em 2014, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) retirou o Brasil do Mapa da Fome, confirmando uma conquista histórica que ainda não foi devidamente celebrada entre nós.
É uma conquista que agora corre sérios riscos.
Os setores mais atrasados da elite econômica que jamais se desvencilharam da herança do colonialismo e da escravidão – elite, portanto, colonizada e colonizadora, dissociada de qualquer projeto de soberania e afirmação nacional – jamais aceitaram essas políticas públicas emancipatórias e possibilitadoras de melhores e mais dignas condições de vida para os pobres de nosso país. Sempre consideraram um desperdício de recursos.
O êxito das políticas sociais foi uma das causas do golpe contra o mandato legítimo, constitucional e democrático da presidenta Dilma Rousseff. Os integrantes dessa elite subserviente a interesses alienígenas, minoritária, mas poderosa do ponto de vista econômico e, como consequência, do ponto de vista político e das comunicações sociais, não aceitam a possibilidade, que tanto nos mobiliza, de uma pátria soberana e independente unificada sob a égide do desenvolvimento, da justiça social e de um patamar comum, acessível a toda a nacionalidade, de direitos e oportunidades. Jamais acolheram na prática o verso do Hino Nacional “dos filhos deste solo és mãe gentil”! Não querem partilhar o Brasil!
O golpe foi dado contra os nossos acertos
Cometemos erros. Alguns infringiram princípios da ética, do bem comum e do interesse público. Além disso, não disciplinamos ou não procuramos disciplinar, com maior empenho e o necessário vigor, o capitalismo predatório e selvagem que ainda prevalece no Brasil. Por isso não avançamos em reformas fundamentais, estruturantes e disciplinadoras do poder econômico e dos interesses particulares que se opõem ao bem público: as reformas agrária, urbana e tributária. Todos os países capitalistas que conseguiram equilibrar os interesses privados com as superiores exigências do interesse coletivo e nacional fizeram essas reformas, necessárias aqui para traduzirem na prática o princípio constitucional da função social da propriedade e das riquezas.
Não consolidamos e não ampliamos para os planos estaduais e nacional as experiências locais de orçamento participativo. Com isso desprezamos novas possibilidades para o planejamento e a democracia participativa.
Aos golpistas assustam essas possibilidades de expansão da democracia, da participação popular e do exercício efetivo, cotidiano, dos direitos e deveres da cidadania. Veem nas políticas sociais emancipatórias que implantamos a raiz e o anúncio do que, para eles, é o mal maior: a expansão dos direitos sociais, dos direitos dos pobres; a presença crescente e consciente dos pobres na vida política do país. Assim, vieram para matar o mal pela raiz!
Além das questões relativas à expansão da democracia participativa em detrimento do poder quase absoluto que os novos golpistas exercem no país há séculos, há uma outra questão que Marx levantou e que os arautos do neoliberalismo e do capitalismo selvagem explicitam com surpreendente e meridiana clareza e, uma vez mais, confirmam, pelo avesso, tese do pensador alemão: o acúmulo do capital. Reduzir, se possível extinguir os investimentos sociais, os direitos trabalhistas, os benefícios destinados aos trabalhadores e aos pobres para aumentar o ganho das grandes empresas capitalistas, dos bancos, dos interesses externos e estranhos aos interesses da pátria.
Não podiam ser mais claros e explícitos. E estão tentando, pela propaganda e a manipulação de informações, impor a ideia perversa de que é bom para todos aquilo que, na verdade, só é bom para interesses econômicos poderosos e minoritários.
Os golpistas começaram acabando com ministérios estratégicos na perspectiva da inclusão e da coesão social, componente fundante do projeto nacional. Extinguiram o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Com isso, excluem do debate e da formulação das políticas públicas os legados autoritários e discriminatórios do machismo, do patriarcado, da escravidão; excluem a afirmação dos direitos fundamentais que são os direitos humanos constitucionalizados e positivados onde se integram os direitos individuais, os direitos sociais, econômicos e culturais; os direitos coletivos, difusos, ambientais; direitos das minorias, das crianças e adolescentes, dos idosos, das pessoas com deficiência. Excluem e impedem a juventude de participar, pelas vias institucionais, da construção do presente e do futuro do país.
Extinguem o Ministério da Cultura, onde se debate, entre outros temas, a identidade nacional que se expressa através das manifestações culturais e artísticas diversificadas e regionalizadas, que respeitam e promovem as diferenças.
Foram adiante na sanha demolidora das conquistas sociais: extinguiram o Ministério do Desenvolvimento Agrário e, com ele, as reflexões e projetos sobre a reforma agrária e o desenvolvimento da agricultura familiar associada ao cooperativismo, à agroecologia, ao desenvolvimento territorial e à economia solidária. Bateram de frente com políticas de grande alcance como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que assegura ao produtor o preço justo e garante às pessoas, famílias e comunidades empobrecidas, através dos alimentos adquiridos, o direito à alimentação saudável.
O fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário aponta claramente para o fim de programas como a compra direta, através do qual o Estado compra diretamente da agricultura familiar parte dos alimentos que consome com a merenda escolar, com os hospitais públicos e serviços de saúde, com os serviços militares e de segurança.
O governo ilegítimo adota medidas concretas contra o Programa Mais Gestão, de apoio ao cooperativismo; e contra programas de apoio à agroindústria, à comercialização, à implementação de políticas públicas referentes à educação, à saúde, à moradia, ao saneamento básico, ao lazer, à qualidade de vida e desenvolvimento nos assentamentos, territórios da agricultura familiar e das comunidades e populações tradicionais.
Ponto de encontro entre as ações do Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o programa Um Milhão de Cisternas, que já ultrapassou de muito a meta e tanto contribuiu ao lado de outras políticas e ações para virar a página da história relativa aos retirantes nordestinos da seca, é atingido mortalmente nos seus recursos, assim como as ações da Conab e da Embrapa voltadas para a agricultura familiar camponesa.
O processo de fragilização do Bolsa Família, para extingui-lo mais facilmente no futuro, começa por reduzir e eliminar as políticas públicas que lhe dão suporte – o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, os centros de referência em assistência social (Cras), as políticas de inclusão produtiva e de capacitação profissional.
Ainda no campo do Sistema Único de Assistência Social (Suas), não escondem os golpistas a intenção perversa de se voltarem contra o Benefício da Prestação Continuada (BPC). Se realizarem seus tristes objetivos, vão penalizar pessoas idosas e com deficiência – todas pobres, muito pobres. Pessoas que têm renda mensal inferior a ¼ do salário mínimo!
Os marxistas às avessas que só pensam no ganho, no lucro, no acúmulo do capital, na mais valia querem é, mais uma vez, realizar na prática a crítica marxista que considerava o Estado capitalista o comitê executivo da burguesia – o Estado só para eles e a serviço de seus interesses.
Nós, ao contrário, queremos o Estado do Bem-Estar Social. Queremos, por exemplo, que o Bolsa Família se torne uma política pública permanente, que garanta renda mínima de cidadania e dignidade para as pessoas e famílias em situação de maior vulnerabilidade – como existe na Áustria, nos países escandinavos, em países socialmente mais desenvolvidos. O Estado e a sociedade decidem, democraticamente, de acordo com as suas riquezas e prioridades, qual a renda mínima para que uma pessoa e/ou uma família possa viver bem e tenha atendidas suas necessidades básicas. Quando os ganhos pessoais ou familiares são inferiores a esse mínimo básico, o Estado aporta os recursos necessários para assegurar o mínimo vital básico. Foi isso que vi em países europeus quando estava no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, no profícuo governo do presidente Lula.
Ouvi dos executores das políticas sociais dos países escandinavos que suas ações não decorriam apenas de sentimentos de altruísmo e compaixão. Decorriam, sobretudo, de uma compreensão com o bem-estar coletivo, em que interessa que as famílias, em qualquer circunstância, mantenham os seus vínculos afetivos para expandir a coesão social; e preservem seu poder de compra e consumo de bens e serviços básicos para manter viva e aquecida a economia do país.
Essa é uma compreensão de que ainda estão longe, muito longe, as elites econômicas e financeiras do Brasil e as facções políticas que lhes prestam serviço – como as reunidas no governo golpista de Temer. Recusam-se, todas elas, a um patamar minimamente civilizado, de construção do bem-estar para todos os que vivemos no Brasil. Não é a essa construção que se dedicam. Estão mobilizadas é pela desconstrução das políticas sociais.
* Patrus Ananias é deputado federal (PT-MG). Foi ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2004-2010) e ministro do Desenvolvimento Agrário (2015-2016).
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