Por Fernando Morais, no blog Nocaute:
Durante quarenta anos o editor de Nocaute esteve dezenas de vezes em Cuba, como jornalista, escritor e ativista político. Nesse período aproximou-se do principal líder da Revolução Cubana, Fidel Castro. Neste texto especial para o blog, Morais relembra alguns dos momentos de seu convívio com Fidel, falecido na última sexta-feira, aos noventa anos.
Durante quarenta anos o editor de Nocaute esteve dezenas de vezes em Cuba, como jornalista, escritor e ativista político. Nesse período aproximou-se do principal líder da Revolução Cubana, Fidel Castro. Neste texto especial para o blog, Morais relembra alguns dos momentos de seu convívio com Fidel, falecido na última sexta-feira, aos noventa anos.
Trancado num hotel por semanas sem fim, esperando Fidel
O tropel dos coturnos pretos sobre o chão de mármore do casarão silencioso me deu a certeza de que era ele quem chegava. Já passava da meia-noite, no final de março de 1975. Eu terminava minha entrevista com o vice-presidente cubano, Carlos Rafael Rodriguez e na manhã seguinte embarcaria de volta ao Brasil, depois de passar quase três meses esquadrinhando Cuba para a reportagem que redundaria no livro “A Ilha”.
Fidel apareceu com o frescor de quem acabara de sair do banho. Puxou uma cadeira, acendeu um charuto e pediu desculpas por não conceder a entrevista que eu pedira. “Ainda é cedo para falar para uma revista brasileira”, desculpou-se. “Mas prometo que a primeira entrevista para o Brasil será dada a você”. Com o gravador desligado, passou os quarenta minutos seguintes me entrevistando sobre as impressões que eu levava de Cuba. “Em muitos anos você é o primeiro brasileiro que aparece aqui que não seja para aprender a dar tiros”, gracejou “e agora quero saber o que achou da nossa ilhota”. Ao final levantou-se, pegou uma garrafa de rum em uma estante, encheu um cálice, tomou a bebida de uma só talagada e sumiu nos corredores semi-iluminados.
Eu só voltaria a vê-lo dois anos depois. Sob um calor infernal, centenas de milhares de pessoas se espremiam na praça da Revolução, em Havana, naquela manhã de 1º de maio de 1977. Um segurança me encaminhou pela arquibancada de madeira e indiciou que eu deveria sentar ao lado de um senhor discreto, de cabelos brancos, óculos de grau e, como a maioria dos presentes, com um chapéu de palha protegendo-o do sol. Era o argentino Ernesto Guevara Lynch, 77 anos, pai do guerrilheiro Ernesto Che Guevara, morto dez anos antes. A seu lado estava Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro e, em seguida, o Comandante Fidel Castro.
Aos cinquenta anos, Fidel ainda era um homem de aparência sólida e braços longos, de cujas pontas saíam duas mãos ossudas, que gesticulavam sem parar, dirigindo-se ora a Prestes ora a Michael Manley, o primeiro-ministro socialista da Jamaica, sentado à sua direita. Na ponta da barba negra começavam a aparecer os primeiros fios brancos.
Aproveitei um dos intervalos do interminável desfile militar e me aproximei dele, sempre sob o olhar vigilante de seus escoltas:
– Comandante, sou o jornalista brasileiro com quem o senhor esteve, na casa do Carlos Rafael, dois anos atrás, lembra?
Não acredito que lembrasse, mas aproveitei que ele acenou afirmativamente com a cabeça, sorridente, e contei que estava em Cuba como repórter de Veja, sublinhei que meu livro “A Ilha” estava na cabeça das listas de mais vendidos desde que havia sido lançado, sete meses antes, e que a revista me mandara a Cuba exclusivamente para fazer a prometida entrevista com ele. Fidel não disse sim nem não. Chamou seu secretario e médico pessoal Chommy Barruecos e apontou para mim:
– Parece que alguém prometeu uma entrevista minha para o brasileiro. Veja do que se trata.
Dei a Chommy o número do quarto e o nome do hotel em que eu estava hospedado, guardei os telefones dele, assisti a parada até o fim e fui embora.
Passados quase quarenta anos, é difícil lembrar de detalhes com precisão. Mas considerando que cheguei a Havana nos últimos dias de abril e que a capa de Veja com Fidel foi publicada em julho, acredito ter passado entre quarenta e sessenta dias esperando ser chamado por ele. Sem sair do hotel. Sim, dois meses, ou quase isso, sem poder sair do velho Hotel Nacional. Tomava café da manhã, almoçava, jantava, ia à piscina, via televisão e jogava sinuca todos os dias, mas sempre no hotel. Como os telefones celulares só seriam inventados dali a duas décadas, eu teria que estar o tempo todo de plantão, à espera de ser chamado para a entrevista.
A rotina da minha vida no Nacional era quebrada pelas visitas regulares de dois cubanos – um dia era Ricardo Santiago, da chancelaria, outro dia era Sérgio Cervantes, do Departamento de Américas do PC Cubano. E de novos amigos, anônimos ou célebres, como o escritor colombiano Gabriel García Márquez (que ainda não era Prêmio Nobel) ou a jovem hispano-soviética Katyusha Menéndez que muito tempo depois me diriam tratar-se de uma agente do KGB, a polícia secreta da URSS. Pareceu cinematográfico demais para acreditar.
Sempre achei que valia a pena esperar. Que eu me lembre, desde o golpe militar de 1964 apenas um jornalista brasileiro – Milton Coelho da Graça, da revista Realidade – tinha ido a Cuba como repórter, no final de 1968, publicando seu relato ao retornar ao país. Mas ninguém, até então, conseguira entrevistar Fidel para veículos brasileiros. Na redação da revista, pelo menos três pessoas pareciam compartilhar da minha expectativa: José Roberto Guzzo, diretor, Carmo Chagas, redator-chefe, e Judite Patarra, correspondente da Veja em Nova York e que se convertera em pombo-correio das minhas comunicações com o Brasil, já que era impossível fazer ligações telefônicas entre Havana e São Paulo. Devo estar esquecendo de mais gente que participou da operação, mas esses três foram determinantes. Já li em livros versões contraditórias sobre o que levou a revista a me mandar a Cuba e a esperar tanto tempo, mas o que eu sei é o que eu vi.
No final de junho o telefone do quarto me despertou quando já passava da meia-noite. Do outro lado da linha alguém, Cervantes, talvez, avisou que eu deveria estar na portaria em cinco minutos. Um velho jipe soviético me levaria ao Palácio da Revolução para a tão esperada entrevista. Cinco minutos foram mais que suficientes para vestir o terno, ajambrar a gravata e pegar gravador, fitas e máquina fotográfica. Atravessamos, o motorista e eu, uma Havana semideserta e antes da uma da manhã entrei na sala de despachos de Fidel no Palácio da Revolução. Saí de lá com dia claro, levando comigo uma capa da Veja – a foto não é de nenhuma agência internacional, mas da minha modesta Minolta – e uma reportagem de nove páginas.
Júri do Premio Casa, a promessa dos cães fila e uma breve passagem pelo DOPS
Meu retorno a Cuba se daria poucos meses depois, no começo de 1977, desta vez na companhia de três ilustres brasileiros: Chico Buarque, Antonio Callado e Ignácio de Loyola. Os quatro iríamos compor o júri do Premio Casa das Américas, o mais importante premio literário latino-americano. Salvo Loyola, que estava só, os demais viajávamos acompanhados de nossas respectivas mulheres, Rúbia Delorenzo, Marieta Severo e Ana Arruda. Fomos instalados com mais duas dezenas de jurados de todo o continente em um simpático hotel às margens da Baía de Pasacaballo, na província de Cienfuegos, duzentos quilômetro a leste de Havana.
Após três semanas de leituras de pilhas e pilhas de romances, peças de teatro, livros-reportagens e poesias, retornamos a Havana. Como costumava acontecer ao final do anúncio dos nomes dos premiados, os jurados foram recebidos em um jantar no Palácio da Revolução, com a presença, claro, do Comandante.
Com um cálice de rum numa das mãos e um charuto Cohiba Espléndidos na outra, Fidel circulava pelo salão, parando de quando em quando em torno de um e de outro grupo. Puxava assunto sobre detalhes do país de origem de cada convidado, ria, contava anedotas e parava de novo mais adiante. A certa altura, acompanhado de Roberto Retamar, dirigente da Casa das Américas, o Comandante juntou-se ao pequeno grupo em que estávamos Rúbia, eu e os poetas Hugo Achúgar, uruguaio, e Ernesto Cardenal, padre trapista que meses depois viria a ser o primeiro ministro da cultura da vitoriosa Revolução Sandinista. No meio da conversa perguntei ao presidente onde andava o pastor alemão que era sua companhia constante. “Morreu. Morreu de velho” respondeu com um ar de resignação. Começamos a falar de cachorros – como se disso eu entendesse – e contei a ele que o Brasil tinha uma única raça reconhecida internacionalmente, o fila, que chamava a atenção sobretudo pelas dimensões físicas. “Um macho grande dessa raça chega a pesar oitenta quilos”, disse eu, para surpresa de Fidel. “Caramba, oitenta quilos é o peso de um jaguar!”, espantou-se. “É quase um bezerro!”. Não se falou mais de outro assunto. Fidel só se separou da nossa roda quando prometi que lhe mandaria de presente um casal de filas brasileiros.
Quando o voo da Aeroméxico, de volta ao Brasil, pousou em Congonhas (o aeroporto de Cumbica ainda não existia), o delegado do DOPS Romeu Tuma esperava a mim e a Rubia na escada do avião. No Rio acontecia o mesmo com Chico, Marieta, Callado e Ana, presos no Galeão pelo Cenimar, centro de informações da Marinha. Loyola, que havia mudado a conexão aérea (não havia voos diretos de Cuba para o Brasil), acabou escapando da polícia. Os seis detidos, em São Paulo e no Rio, fomos interrogados e liberados no fim do dia.
Restava o problema dos cães fila – este, sim, de difícil solução, como eu logo descobriria. Para minha surpresa, o preço de um casal de filas com pedigree custava muito mais do que permitia meu orçamento. Tentei seduzir criadores a doar os dois animais, com a desculpa de que o destinatário famoso iria ajudar a divulgar a raça no exterior etc etc. Nenhum deles se sensibilizou com a ideia. Ao saber da sinuca em que eu me encontrava, Chico Buarque saiu em meu socorro e se dispôs a comprar os cachorros, que semanas depois embarcavam para Havana pelas mãos do primeiro portador de confiança, o advogado Luís Eduardo Greenhalgh.
Uma viagem a Manágua com Fidel, escoltados por caças-bombardeiros MiG
De lança em punho, qual um Quixote moderno, nos anos oitenta Fidel Castro passou a defender uma tese ousada e radical: a dívida externa dos países pobres com os ricos já tinha sido paga várias vezes pela espoliação das riquezas do Sul pelo Norte. “Não ao pagamento da Dívida” virou uma consigna que reunia em Havana caravanas de economistas, intelectuais, políticos e lideranças sociais de todo o planeta.
Foi como integrante de uma delegação de brasileiros a um desses encontros que aterrissei em Cuba em julho de 1980. Uma noite Fidel apareceu no hotel Riviera, onde estávamos hospedados, acompanhado do comandante Manuel Piñeiro Losada, o Barbarroja, chefe do Departamento de Américas do PC cubano. Conversou conosco até tarde da noite, e ao sair me chamou num canto e perguntou até quando eu ficaria em Cuba. Respondi que estava tentando arranjar um voo que me levasse a Manágua, onde seria celebrado, dali a três dias, o primeiro aniversário do triunfo da Revolução Sandinista. Expliquei que meu objetivo era entrevistar o líder palestino Yasser Arafat, que participaria das festividades na capital nicaraguense, mas a comemoração tinha entupido todos os voos comerciais disponíveis. Fidel abriu os braços:
– Venha comigo. Vou para lá depois de amanhã e te levo no avião oficial.
Embora tivesse capacidade para transportar duzentos passageiros, o soviético Ilyushin Il-62 levava apenas dez pessoas: Fidel, o Comandante Barbarroja, Chommy, seis homens da escolta presidencial e eu. E o trajeto entre Havana e Manágua, que num voo normal naquele tipo de aeronave seria realizado em pouco mais de uma hora acabou durando quase três, para que se evitasse voar no espaço aéreo de países hostis a Cuba. E ainda assim, por via das dúvidas nosso avião viajou todo o tempo escoltado por dois caças bombardeiros MiG 21 armados com mísseis, canhões e metralhadoras. No aeroporto de Manágua Fidel seria recebido pelo ministro das Relações Exteriores, padre Miguel D’Escoto, que naquele mesmo dia apresentaria ao Comandante dois ilustres brasileiros que já se encontravam na Nicarágua, o líder sindical Luís Inácio Lula da Silva e o dominicano Frei Betto. Separei-me em seguida da delegação cubana, encontrei Arafat em uma casa de protocolo e marquei com ele uma entrevista que só viria a acontecer dois anos depois, em Beirute, no Líbano.
A guerra de Fidel contra o pagamento da dívida externa dos países pobres me levaria de novo a Cuba em 1982, juntamente com um grupo de intelectuais e cientistas políticos brasileiros, entre os quais lembro de estarem o físico Mário Schemberg e o filósofo Leandro Konder. No encontro com o Comandante eu soube que o casal de filas brasileiros já estava na terceira ou quarta geração. Apresentei-lhe Marina, minha companheira – mais alta que eu -, o que levaria Fidel a brincar depois com o antropólogo Darcy Ribeiro: “Você viu, Darcy? O Morais casou-se com uma moça maior que o milagre brasileiro!”
Nos anos seguintes entrevistei Fidel pelo menos mais duas vezes, uma para a revista Playboy, brasileira, por encomenda de seu então diretor, Ricardo Setti, e outra para a norte-americana Penthouse. Voltei a vê-lo no Brasil, na inauguração do Memorial da América Latina, em São Paulo, e em algumas outras viagens curtas a Cuba.
No começo de 2005 o Brasil era o país homenageado pela Feira do Livro de Havana. Nossa delegação oficial era formada pelos ministros Gilberto Gil, da Cultura, Ciro Gomes, da Integração Nacional (acompanhado de sua namorada, a atriz Patrícia Pilar) e José Dirceu, chefe da Casa Civil do governo Lula. Eu viajei como convidado da Feira, já que seria lançada em Cuba a tradução do meu livro “Olga”. Num intervalo entre as atividades formais, Fidel convidou para almoçar seu velho amigo José Dirceu, que fizera treinamento guerrilheiro na Ilha, e sugeriu que eu fosse junto.
Dirceu presenteou Fidel com um engradado plástico com 48 latas de guaraná, bebida que o cubano apreciava muito, e como retribuição recebeu dele um litro de rum de uma tiragem especial, que havia passado meio século em uma pipa. Ao ver meu olho gordo para a garrafa, Fidel perguntou: O Comandante nos recebeu com o braço direito na tipoia e mancava um pouco da perna esquerda, consequências de um tombo que levara meses antes, em público, durante um ato de massas. Sua paixão, na ocasião, era a Revolução Bolivariana liderada na Venezuela pelo presidente Hugo Chávez. Entusiasmado, desenrolou enormes mapas da Venezuela sobre a mesa e passou a nos indicar os locais onde haviam descoberto jazidas de petróleo que anos depois atribuiriam ao país as maiores reservas petrolíferas do planeta.
– Você já tem netos, Morais?
Diante da resposta negativa, mandou buscar mais uma garrafa para mim e recomendou que a abrisse quando nascesse meu primeiro neto – o que só viria a acontecer quatro anos depois, com o nascimento de Helena.
No último encontro, duas horas de conversa sobre avanços tecnológicos e a milagrosa Moringa
Meu último encontro com Fidel aconteceu três anos atrás, em 2013, quando ele já não era mais presidente de Cuba. Viajei a Havana em companhia do ex-presidente Lula, que abriria a Conferência Internacional pelo Equilíbrio do Mundo. Lula e seus acompanhantes foram instalados em uma casa de protocolo e eu fui para o hotel preparar o lançamento da versão cubana do meu livro “Os últimos soldados da Guerra Fria”.
No dia seguinte, depois de uma visita às obras do porto de Mariel, parcialmente financiadas pelo BNDES, Lula e eu fomos convidados para almoçar na casa do presidente Raul Castro, para quem levei um exemplar autografado do meu livro. A certa altura o celular de Raul tocou, ele falou rapidamente e avisou que Fidel nos chamava para um café em sua casa, depois do almoço. Raul me lembrou de levar para o Comandante um exemplar autografado do “Últimos Soldados”. Ao saber que o único exemplar que eu tinha à mão era exatamente o que eu autografara para ele, Raul não hesitou. Arrancou cuidadosamente a página com a dedicatória e sugeriu: “Dê este para Fidel, ele não vai dar falta da página arrancada. Depois você autografa outro para mim”.
Fidel nos recebeu em companhia de sua mulher, Dália, do filho Alex, seu fotografo oficial, e de um intérprete. Vestia calça de brim, camisa xadrez e um agasalho de ginástica Reebok azul marinho. Eu nunca tinha estado ali antes, e me chamou a atenção a simplicidade do lugar, que me pareceu uma típica casa de classe média brasileira. Bastante envelhecido fisicamente, o Comandante estava absolutamente lúcido. Contou que a Internet era seu maior passatempo, mas consumiu as quase duas horas em que estivemos juntos interrogando Lula sobre o Brasil e política internacional.
Sabia detalhes da tragédia ocorrida na boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, quando um incêndio tirou a vida de mais de duzentos jovens e deixou outras centenas de feridos, e ofereceu o banco de pele humana do Ministério da Saúde cubano para socorrer as vítimas do fogo.
Discorreu longamente sobre sua mais recente descoberta, a moringa oleífera, uma planta medicinal oriunda da Índia e de algumas regiões da África, que segundo ele tinha propriedades vitamínicas muitas vezes maior que o leite, a carne bovina, a laranja, a cenoura e o espinafre. Esticou a mão e pegou em uma mesinha um frasco de pílulas concentradas da moringa que ele vinha tomando regularmente – e cujo consumo fez questão de recomendar a Lula e a mim.
Quando a conversa chegou ao fim Fidel levantou-se vagarosamente e caminhou conosco, sem o auxílio de bengala ou andador, até o portão da casa, onde se despediu com abraços e apertos de mão. Eu nunca mais voltaria a ver o Comandante.
O tropel dos coturnos pretos sobre o chão de mármore do casarão silencioso me deu a certeza de que era ele quem chegava. Já passava da meia-noite, no final de março de 1975. Eu terminava minha entrevista com o vice-presidente cubano, Carlos Rafael Rodriguez e na manhã seguinte embarcaria de volta ao Brasil, depois de passar quase três meses esquadrinhando Cuba para a reportagem que redundaria no livro “A Ilha”.
Fidel apareceu com o frescor de quem acabara de sair do banho. Puxou uma cadeira, acendeu um charuto e pediu desculpas por não conceder a entrevista que eu pedira. “Ainda é cedo para falar para uma revista brasileira”, desculpou-se. “Mas prometo que a primeira entrevista para o Brasil será dada a você”. Com o gravador desligado, passou os quarenta minutos seguintes me entrevistando sobre as impressões que eu levava de Cuba. “Em muitos anos você é o primeiro brasileiro que aparece aqui que não seja para aprender a dar tiros”, gracejou “e agora quero saber o que achou da nossa ilhota”. Ao final levantou-se, pegou uma garrafa de rum em uma estante, encheu um cálice, tomou a bebida de uma só talagada e sumiu nos corredores semi-iluminados.
Eu só voltaria a vê-lo dois anos depois. Sob um calor infernal, centenas de milhares de pessoas se espremiam na praça da Revolução, em Havana, naquela manhã de 1º de maio de 1977. Um segurança me encaminhou pela arquibancada de madeira e indiciou que eu deveria sentar ao lado de um senhor discreto, de cabelos brancos, óculos de grau e, como a maioria dos presentes, com um chapéu de palha protegendo-o do sol. Era o argentino Ernesto Guevara Lynch, 77 anos, pai do guerrilheiro Ernesto Che Guevara, morto dez anos antes. A seu lado estava Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro e, em seguida, o Comandante Fidel Castro.
Aos cinquenta anos, Fidel ainda era um homem de aparência sólida e braços longos, de cujas pontas saíam duas mãos ossudas, que gesticulavam sem parar, dirigindo-se ora a Prestes ora a Michael Manley, o primeiro-ministro socialista da Jamaica, sentado à sua direita. Na ponta da barba negra começavam a aparecer os primeiros fios brancos.
Aproveitei um dos intervalos do interminável desfile militar e me aproximei dele, sempre sob o olhar vigilante de seus escoltas:
– Comandante, sou o jornalista brasileiro com quem o senhor esteve, na casa do Carlos Rafael, dois anos atrás, lembra?
Não acredito que lembrasse, mas aproveitei que ele acenou afirmativamente com a cabeça, sorridente, e contei que estava em Cuba como repórter de Veja, sublinhei que meu livro “A Ilha” estava na cabeça das listas de mais vendidos desde que havia sido lançado, sete meses antes, e que a revista me mandara a Cuba exclusivamente para fazer a prometida entrevista com ele. Fidel não disse sim nem não. Chamou seu secretario e médico pessoal Chommy Barruecos e apontou para mim:
– Parece que alguém prometeu uma entrevista minha para o brasileiro. Veja do que se trata.
Dei a Chommy o número do quarto e o nome do hotel em que eu estava hospedado, guardei os telefones dele, assisti a parada até o fim e fui embora.
Passados quase quarenta anos, é difícil lembrar de detalhes com precisão. Mas considerando que cheguei a Havana nos últimos dias de abril e que a capa de Veja com Fidel foi publicada em julho, acredito ter passado entre quarenta e sessenta dias esperando ser chamado por ele. Sem sair do hotel. Sim, dois meses, ou quase isso, sem poder sair do velho Hotel Nacional. Tomava café da manhã, almoçava, jantava, ia à piscina, via televisão e jogava sinuca todos os dias, mas sempre no hotel. Como os telefones celulares só seriam inventados dali a duas décadas, eu teria que estar o tempo todo de plantão, à espera de ser chamado para a entrevista.
A rotina da minha vida no Nacional era quebrada pelas visitas regulares de dois cubanos – um dia era Ricardo Santiago, da chancelaria, outro dia era Sérgio Cervantes, do Departamento de Américas do PC Cubano. E de novos amigos, anônimos ou célebres, como o escritor colombiano Gabriel García Márquez (que ainda não era Prêmio Nobel) ou a jovem hispano-soviética Katyusha Menéndez que muito tempo depois me diriam tratar-se de uma agente do KGB, a polícia secreta da URSS. Pareceu cinematográfico demais para acreditar.
Sempre achei que valia a pena esperar. Que eu me lembre, desde o golpe militar de 1964 apenas um jornalista brasileiro – Milton Coelho da Graça, da revista Realidade – tinha ido a Cuba como repórter, no final de 1968, publicando seu relato ao retornar ao país. Mas ninguém, até então, conseguira entrevistar Fidel para veículos brasileiros. Na redação da revista, pelo menos três pessoas pareciam compartilhar da minha expectativa: José Roberto Guzzo, diretor, Carmo Chagas, redator-chefe, e Judite Patarra, correspondente da Veja em Nova York e que se convertera em pombo-correio das minhas comunicações com o Brasil, já que era impossível fazer ligações telefônicas entre Havana e São Paulo. Devo estar esquecendo de mais gente que participou da operação, mas esses três foram determinantes. Já li em livros versões contraditórias sobre o que levou a revista a me mandar a Cuba e a esperar tanto tempo, mas o que eu sei é o que eu vi.
No final de junho o telefone do quarto me despertou quando já passava da meia-noite. Do outro lado da linha alguém, Cervantes, talvez, avisou que eu deveria estar na portaria em cinco minutos. Um velho jipe soviético me levaria ao Palácio da Revolução para a tão esperada entrevista. Cinco minutos foram mais que suficientes para vestir o terno, ajambrar a gravata e pegar gravador, fitas e máquina fotográfica. Atravessamos, o motorista e eu, uma Havana semideserta e antes da uma da manhã entrei na sala de despachos de Fidel no Palácio da Revolução. Saí de lá com dia claro, levando comigo uma capa da Veja – a foto não é de nenhuma agência internacional, mas da minha modesta Minolta – e uma reportagem de nove páginas.
Júri do Premio Casa, a promessa dos cães fila e uma breve passagem pelo DOPS
Meu retorno a Cuba se daria poucos meses depois, no começo de 1977, desta vez na companhia de três ilustres brasileiros: Chico Buarque, Antonio Callado e Ignácio de Loyola. Os quatro iríamos compor o júri do Premio Casa das Américas, o mais importante premio literário latino-americano. Salvo Loyola, que estava só, os demais viajávamos acompanhados de nossas respectivas mulheres, Rúbia Delorenzo, Marieta Severo e Ana Arruda. Fomos instalados com mais duas dezenas de jurados de todo o continente em um simpático hotel às margens da Baía de Pasacaballo, na província de Cienfuegos, duzentos quilômetro a leste de Havana.
Após três semanas de leituras de pilhas e pilhas de romances, peças de teatro, livros-reportagens e poesias, retornamos a Havana. Como costumava acontecer ao final do anúncio dos nomes dos premiados, os jurados foram recebidos em um jantar no Palácio da Revolução, com a presença, claro, do Comandante.
Com um cálice de rum numa das mãos e um charuto Cohiba Espléndidos na outra, Fidel circulava pelo salão, parando de quando em quando em torno de um e de outro grupo. Puxava assunto sobre detalhes do país de origem de cada convidado, ria, contava anedotas e parava de novo mais adiante. A certa altura, acompanhado de Roberto Retamar, dirigente da Casa das Américas, o Comandante juntou-se ao pequeno grupo em que estávamos Rúbia, eu e os poetas Hugo Achúgar, uruguaio, e Ernesto Cardenal, padre trapista que meses depois viria a ser o primeiro ministro da cultura da vitoriosa Revolução Sandinista. No meio da conversa perguntei ao presidente onde andava o pastor alemão que era sua companhia constante. “Morreu. Morreu de velho” respondeu com um ar de resignação. Começamos a falar de cachorros – como se disso eu entendesse – e contei a ele que o Brasil tinha uma única raça reconhecida internacionalmente, o fila, que chamava a atenção sobretudo pelas dimensões físicas. “Um macho grande dessa raça chega a pesar oitenta quilos”, disse eu, para surpresa de Fidel. “Caramba, oitenta quilos é o peso de um jaguar!”, espantou-se. “É quase um bezerro!”. Não se falou mais de outro assunto. Fidel só se separou da nossa roda quando prometi que lhe mandaria de presente um casal de filas brasileiros.
Quando o voo da Aeroméxico, de volta ao Brasil, pousou em Congonhas (o aeroporto de Cumbica ainda não existia), o delegado do DOPS Romeu Tuma esperava a mim e a Rubia na escada do avião. No Rio acontecia o mesmo com Chico, Marieta, Callado e Ana, presos no Galeão pelo Cenimar, centro de informações da Marinha. Loyola, que havia mudado a conexão aérea (não havia voos diretos de Cuba para o Brasil), acabou escapando da polícia. Os seis detidos, em São Paulo e no Rio, fomos interrogados e liberados no fim do dia.
Restava o problema dos cães fila – este, sim, de difícil solução, como eu logo descobriria. Para minha surpresa, o preço de um casal de filas com pedigree custava muito mais do que permitia meu orçamento. Tentei seduzir criadores a doar os dois animais, com a desculpa de que o destinatário famoso iria ajudar a divulgar a raça no exterior etc etc. Nenhum deles se sensibilizou com a ideia. Ao saber da sinuca em que eu me encontrava, Chico Buarque saiu em meu socorro e se dispôs a comprar os cachorros, que semanas depois embarcavam para Havana pelas mãos do primeiro portador de confiança, o advogado Luís Eduardo Greenhalgh.
Uma viagem a Manágua com Fidel, escoltados por caças-bombardeiros MiG
De lança em punho, qual um Quixote moderno, nos anos oitenta Fidel Castro passou a defender uma tese ousada e radical: a dívida externa dos países pobres com os ricos já tinha sido paga várias vezes pela espoliação das riquezas do Sul pelo Norte. “Não ao pagamento da Dívida” virou uma consigna que reunia em Havana caravanas de economistas, intelectuais, políticos e lideranças sociais de todo o planeta.
Foi como integrante de uma delegação de brasileiros a um desses encontros que aterrissei em Cuba em julho de 1980. Uma noite Fidel apareceu no hotel Riviera, onde estávamos hospedados, acompanhado do comandante Manuel Piñeiro Losada, o Barbarroja, chefe do Departamento de Américas do PC cubano. Conversou conosco até tarde da noite, e ao sair me chamou num canto e perguntou até quando eu ficaria em Cuba. Respondi que estava tentando arranjar um voo que me levasse a Manágua, onde seria celebrado, dali a três dias, o primeiro aniversário do triunfo da Revolução Sandinista. Expliquei que meu objetivo era entrevistar o líder palestino Yasser Arafat, que participaria das festividades na capital nicaraguense, mas a comemoração tinha entupido todos os voos comerciais disponíveis. Fidel abriu os braços:
– Venha comigo. Vou para lá depois de amanhã e te levo no avião oficial.
Embora tivesse capacidade para transportar duzentos passageiros, o soviético Ilyushin Il-62 levava apenas dez pessoas: Fidel, o Comandante Barbarroja, Chommy, seis homens da escolta presidencial e eu. E o trajeto entre Havana e Manágua, que num voo normal naquele tipo de aeronave seria realizado em pouco mais de uma hora acabou durando quase três, para que se evitasse voar no espaço aéreo de países hostis a Cuba. E ainda assim, por via das dúvidas nosso avião viajou todo o tempo escoltado por dois caças bombardeiros MiG 21 armados com mísseis, canhões e metralhadoras. No aeroporto de Manágua Fidel seria recebido pelo ministro das Relações Exteriores, padre Miguel D’Escoto, que naquele mesmo dia apresentaria ao Comandante dois ilustres brasileiros que já se encontravam na Nicarágua, o líder sindical Luís Inácio Lula da Silva e o dominicano Frei Betto. Separei-me em seguida da delegação cubana, encontrei Arafat em uma casa de protocolo e marquei com ele uma entrevista que só viria a acontecer dois anos depois, em Beirute, no Líbano.
A guerra de Fidel contra o pagamento da dívida externa dos países pobres me levaria de novo a Cuba em 1982, juntamente com um grupo de intelectuais e cientistas políticos brasileiros, entre os quais lembro de estarem o físico Mário Schemberg e o filósofo Leandro Konder. No encontro com o Comandante eu soube que o casal de filas brasileiros já estava na terceira ou quarta geração. Apresentei-lhe Marina, minha companheira – mais alta que eu -, o que levaria Fidel a brincar depois com o antropólogo Darcy Ribeiro: “Você viu, Darcy? O Morais casou-se com uma moça maior que o milagre brasileiro!”
Nos anos seguintes entrevistei Fidel pelo menos mais duas vezes, uma para a revista Playboy, brasileira, por encomenda de seu então diretor, Ricardo Setti, e outra para a norte-americana Penthouse. Voltei a vê-lo no Brasil, na inauguração do Memorial da América Latina, em São Paulo, e em algumas outras viagens curtas a Cuba.
No começo de 2005 o Brasil era o país homenageado pela Feira do Livro de Havana. Nossa delegação oficial era formada pelos ministros Gilberto Gil, da Cultura, Ciro Gomes, da Integração Nacional (acompanhado de sua namorada, a atriz Patrícia Pilar) e José Dirceu, chefe da Casa Civil do governo Lula. Eu viajei como convidado da Feira, já que seria lançada em Cuba a tradução do meu livro “Olga”. Num intervalo entre as atividades formais, Fidel convidou para almoçar seu velho amigo José Dirceu, que fizera treinamento guerrilheiro na Ilha, e sugeriu que eu fosse junto.
Dirceu presenteou Fidel com um engradado plástico com 48 latas de guaraná, bebida que o cubano apreciava muito, e como retribuição recebeu dele um litro de rum de uma tiragem especial, que havia passado meio século em uma pipa. Ao ver meu olho gordo para a garrafa, Fidel perguntou: O Comandante nos recebeu com o braço direito na tipoia e mancava um pouco da perna esquerda, consequências de um tombo que levara meses antes, em público, durante um ato de massas. Sua paixão, na ocasião, era a Revolução Bolivariana liderada na Venezuela pelo presidente Hugo Chávez. Entusiasmado, desenrolou enormes mapas da Venezuela sobre a mesa e passou a nos indicar os locais onde haviam descoberto jazidas de petróleo que anos depois atribuiriam ao país as maiores reservas petrolíferas do planeta.
– Você já tem netos, Morais?
Diante da resposta negativa, mandou buscar mais uma garrafa para mim e recomendou que a abrisse quando nascesse meu primeiro neto – o que só viria a acontecer quatro anos depois, com o nascimento de Helena.
No último encontro, duas horas de conversa sobre avanços tecnológicos e a milagrosa Moringa
Meu último encontro com Fidel aconteceu três anos atrás, em 2013, quando ele já não era mais presidente de Cuba. Viajei a Havana em companhia do ex-presidente Lula, que abriria a Conferência Internacional pelo Equilíbrio do Mundo. Lula e seus acompanhantes foram instalados em uma casa de protocolo e eu fui para o hotel preparar o lançamento da versão cubana do meu livro “Os últimos soldados da Guerra Fria”.
No dia seguinte, depois de uma visita às obras do porto de Mariel, parcialmente financiadas pelo BNDES, Lula e eu fomos convidados para almoçar na casa do presidente Raul Castro, para quem levei um exemplar autografado do meu livro. A certa altura o celular de Raul tocou, ele falou rapidamente e avisou que Fidel nos chamava para um café em sua casa, depois do almoço. Raul me lembrou de levar para o Comandante um exemplar autografado do “Últimos Soldados”. Ao saber que o único exemplar que eu tinha à mão era exatamente o que eu autografara para ele, Raul não hesitou. Arrancou cuidadosamente a página com a dedicatória e sugeriu: “Dê este para Fidel, ele não vai dar falta da página arrancada. Depois você autografa outro para mim”.
Fidel nos recebeu em companhia de sua mulher, Dália, do filho Alex, seu fotografo oficial, e de um intérprete. Vestia calça de brim, camisa xadrez e um agasalho de ginástica Reebok azul marinho. Eu nunca tinha estado ali antes, e me chamou a atenção a simplicidade do lugar, que me pareceu uma típica casa de classe média brasileira. Bastante envelhecido fisicamente, o Comandante estava absolutamente lúcido. Contou que a Internet era seu maior passatempo, mas consumiu as quase duas horas em que estivemos juntos interrogando Lula sobre o Brasil e política internacional.
Sabia detalhes da tragédia ocorrida na boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, quando um incêndio tirou a vida de mais de duzentos jovens e deixou outras centenas de feridos, e ofereceu o banco de pele humana do Ministério da Saúde cubano para socorrer as vítimas do fogo.
Discorreu longamente sobre sua mais recente descoberta, a moringa oleífera, uma planta medicinal oriunda da Índia e de algumas regiões da África, que segundo ele tinha propriedades vitamínicas muitas vezes maior que o leite, a carne bovina, a laranja, a cenoura e o espinafre. Esticou a mão e pegou em uma mesinha um frasco de pílulas concentradas da moringa que ele vinha tomando regularmente – e cujo consumo fez questão de recomendar a Lula e a mim.
Quando a conversa chegou ao fim Fidel levantou-se vagarosamente e caminhou conosco, sem o auxílio de bengala ou andador, até o portão da casa, onde se despediu com abraços e apertos de mão. Eu nunca mais voltaria a ver o Comandante.
Dois gigantes.
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