Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
Há menos de cinco meses (23/06), os ingleses decidiram virar as costas à religião dos livres mercados globais.
Escolheram o protecionismo, recheado de uma mal disfarçada xenofobia contra imigrantes, como defesa contra o desemprego e as sombrias perspectivas de futuro na ilha de Thatcher.
Nesta terça-feira (08/11), foi a vez dos norte-americanos.
Alguns decibéis acima, eles elegeram o fascismo protecionista e xenófobo, em resposta à frustrada espera de quarenta anos pela redenção neoliberal, que nunca veio.
Assim será por toda a parte, até que uma alternativa melhor se credencie nas ruas, nas urnas e nas lutas sociais.
Brexit e Trump são faces de um mesmo e assustador acerto de contas dos povos com a desordem capitalista mundial, agravada desde 2008.
Assustador porque, para usar o adágio de Gramsci, compõem manifestações mórbidas de um tempo em que o velho já não consegue mais se manter.
Mas o novo ainda não encontra forças para se impor.
Nesse intermezzo da história reina a treva.
A viagem até ela não foi obra do acaso.
Durante quatro décadas, a política - aqui e em todos os lugares - teve sua garganta garroteada em favor do jogral da supremacia dos livres mercados.
O rechaço que emerge agora das urnas reflete a desintegração silenciosa dos contrapesos ao fascismo nesse meio tempo.
Nos EUA, a classe que mantinha o pêndulo político próximo ao centro do espectro ideológico foi debulhada.
Com ela, o centro político esfarelou-se.
A renda real da outrora afluente classe média norte-americana encontra-se estagnada desde 1977, mesmo com um PIB 50% maior.
No país das oportunidades, nunca a desigualdade foi tão onipresente.
O desequilíbrio social passou a ocupar a centralidade que a classe média antes exercia na vida da nação.
Com ele ascenderam a incerteza, o medo, o ressentimento e o ódio branco contra o pobre de outra cor, outra língua, outra religião.
A nação capitalista mais poderosa da terra vive uma ruptura de padrão social.
Suas vísceras se contorcem.
Desde a depressão dos anos 30, a clientela predominante das políticas sociais era formada de crianças e idosos.
Desde os anos 80, o segmento que mais cresce dentro dela é a dos os trabalhadores com alguma formação universitária.
Hoje o food stamps atende um em cada sete norte-americanos.
Pessoas em idade ativa compõem a maioria dos contingentes que dependem do vale-refeição para sobreviver.
Salários baixos e desigualdade em alta foram responsáveis por 13% da expansão recente do programa – contra 3,5% entre 1980 e 2000.
Não é a narrativa pontual de um momento de crise.
O ovo já chocava no fastígio do ciclo: de 1997 à crise de 2008, 90% dos lares norte-americanos viram sua renda cair.
O neoliberalismo semeava perdedores em massa, enquanto a mídia incensava as virtudes da terceirização da economia e da sociedade aos livres mercados.
No período de fastígio neoliberal, apenas 1% das famílias norte-americanas ascendeu à faixa de renda superior a meio milhão de dólares.
Como assim?
Assim: ao longo de dois mandatos, Obama não conseguiu, por exemplo, reajustar o salário mínimo norte-americano, batendo de frente com a barragem da direita republicana no Congresso.
Lula e Dilma, nesse período, elevaram o valor real do mínimo aqui em 70%.
Nos EUA, congelado há 17 anos, ele vale atualmente 20% menos em termos reais do que o valor/hora trabalho vigente sob o governo Reagan.
O conjunto diz algo sobre a natureza excludente de um sistema que já não controlava mais a criatura com jeito de ‘anos 30’, que saltou agora do seu ventre para o poder.
Distribuir riqueza nunca foi o forte do capitalismo.
Mas nas últimas décadas a supremacia da desregulação econômica e financeira conseguiu dar envergadura inédita à palavra desigualdade.
Quarenta anos de arrocho sobre o rendimento do trabalho nas principais economias ricas, associado a mimos tributários que promoveram o fastígio dos endinheirados sem a necessidade de produzir e sem ter a quem mais vender, premiaram o capital especulativo que se autorreplicou, sem agregar riqueza real à sociedade.
O conjunto enlouqueceu a engrenagem sistêmica, trincada adicionalmente pela ruptura das interações entre produção e consumo, graças à transferência das plantas fabris ao éden do baixo custo asiático.
Portanto, não foi a crise que gerou Trump.
Foi o esfarelamento anterior –deliberado e estrutural-- que gerou chocou o ovo da estagnação ‘secular’ e seus antídotos de xenofobia e totalitarismo.
A ordem dos fatores lança um alerta ao futuro brasileiro.
As rédeas do desenvolvimento nunca foram tão fugidias como na era do neoliberalismo, mas o que se pretende desde 31 de agosto no país é elevar essa adversidade à condição de virtude.
E generaliza-la.
A aliança do dinheiro grosso com a escória parlamentar, a mídia e o judiciário lapida a eutanásia da nação brasileira
Ceder o destino aos mercados destrambelhados é a bússola que empresta racionalidade à lambança dos apetites graúdos, da indecência dos patrocínios e da ganância despudorada.
A infecção se espalha da PEC 55 para todos os setores e atividades.
Inclui a precarização do mundo do trabalho.
A renúncia a uma política industrial que gere empregos de qualidade e produtividade para sustentar a disseminação da cidadania.
A aceitação passiva da redistribuição supranacional da produção fabril.
A destruição das organizações trabalhistas.
A sôfrega alienação das riquezas nacionais.
O encolhimento da seguridade social com a mutação de direitos em serviços pagos.
A renúncia do Estado em coordenar a taxa de investimento.
As isenções tributárias aos ricos e o definhamento fiscal que enseja o Estado mínimo para os pobres...
Tudo aquilo, enfim, que explica a mais lenta e anêmica convalescença de uma crise capitalista desde 1929, compõe agora a agenda oficial do país.
Os acontecimentos das últimas horas nos EUA evidenciam o fracasso das elites e do bumbo midiático em convencer os eleitores de que a liberdade absoluta para os mercados e para a circulação de capital é boa para todos
Seu fracasso sublinha a incompetência das vacas sagradas da desregulação para ordenar uma sociedade próspera, convergente e razoavelmente inclusiva.
Os abismos sociais no núcleo central do capitalismo mundial atingiram o ponto com o qual os norte-americanos jamais imaginaram.
A ascensão de um fascista à Casa Branca soava incompatível com os valores dos Estados Unidos.
Não é mais.
O terremoto deve sacudir o sonambulismo mundial a partir de agora.
A demanda por recheios distintos da rendição aos mercados vai crescer e acabará produzindo a sua oferta.
Uma heroica reorganização das forças progressistas, ou a sua não menos trágica extinção diante de manifestações totalitárias ascendentes, é o que pulsa no monitor da história.
O antídoto no Brasil tem nome: chama-se frente ampla.
O fator Trump sugere que o tempo para organizá-la se estreitou.
Há menos de cinco meses (23/06), os ingleses decidiram virar as costas à religião dos livres mercados globais.
Escolheram o protecionismo, recheado de uma mal disfarçada xenofobia contra imigrantes, como defesa contra o desemprego e as sombrias perspectivas de futuro na ilha de Thatcher.
Nesta terça-feira (08/11), foi a vez dos norte-americanos.
Alguns decibéis acima, eles elegeram o fascismo protecionista e xenófobo, em resposta à frustrada espera de quarenta anos pela redenção neoliberal, que nunca veio.
Assim será por toda a parte, até que uma alternativa melhor se credencie nas ruas, nas urnas e nas lutas sociais.
Brexit e Trump são faces de um mesmo e assustador acerto de contas dos povos com a desordem capitalista mundial, agravada desde 2008.
Assustador porque, para usar o adágio de Gramsci, compõem manifestações mórbidas de um tempo em que o velho já não consegue mais se manter.
Mas o novo ainda não encontra forças para se impor.
Nesse intermezzo da história reina a treva.
A viagem até ela não foi obra do acaso.
Durante quatro décadas, a política - aqui e em todos os lugares - teve sua garganta garroteada em favor do jogral da supremacia dos livres mercados.
O rechaço que emerge agora das urnas reflete a desintegração silenciosa dos contrapesos ao fascismo nesse meio tempo.
Nos EUA, a classe que mantinha o pêndulo político próximo ao centro do espectro ideológico foi debulhada.
Com ela, o centro político esfarelou-se.
A renda real da outrora afluente classe média norte-americana encontra-se estagnada desde 1977, mesmo com um PIB 50% maior.
No país das oportunidades, nunca a desigualdade foi tão onipresente.
O desequilíbrio social passou a ocupar a centralidade que a classe média antes exercia na vida da nação.
Com ele ascenderam a incerteza, o medo, o ressentimento e o ódio branco contra o pobre de outra cor, outra língua, outra religião.
A nação capitalista mais poderosa da terra vive uma ruptura de padrão social.
Suas vísceras se contorcem.
Desde a depressão dos anos 30, a clientela predominante das políticas sociais era formada de crianças e idosos.
Desde os anos 80, o segmento que mais cresce dentro dela é a dos os trabalhadores com alguma formação universitária.
Hoje o food stamps atende um em cada sete norte-americanos.
Pessoas em idade ativa compõem a maioria dos contingentes que dependem do vale-refeição para sobreviver.
Salários baixos e desigualdade em alta foram responsáveis por 13% da expansão recente do programa – contra 3,5% entre 1980 e 2000.
Não é a narrativa pontual de um momento de crise.
O ovo já chocava no fastígio do ciclo: de 1997 à crise de 2008, 90% dos lares norte-americanos viram sua renda cair.
O neoliberalismo semeava perdedores em massa, enquanto a mídia incensava as virtudes da terceirização da economia e da sociedade aos livres mercados.
No período de fastígio neoliberal, apenas 1% das famílias norte-americanas ascendeu à faixa de renda superior a meio milhão de dólares.
Como assim?
Assim: ao longo de dois mandatos, Obama não conseguiu, por exemplo, reajustar o salário mínimo norte-americano, batendo de frente com a barragem da direita republicana no Congresso.
Lula e Dilma, nesse período, elevaram o valor real do mínimo aqui em 70%.
Nos EUA, congelado há 17 anos, ele vale atualmente 20% menos em termos reais do que o valor/hora trabalho vigente sob o governo Reagan.
O conjunto diz algo sobre a natureza excludente de um sistema que já não controlava mais a criatura com jeito de ‘anos 30’, que saltou agora do seu ventre para o poder.
Distribuir riqueza nunca foi o forte do capitalismo.
Mas nas últimas décadas a supremacia da desregulação econômica e financeira conseguiu dar envergadura inédita à palavra desigualdade.
Quarenta anos de arrocho sobre o rendimento do trabalho nas principais economias ricas, associado a mimos tributários que promoveram o fastígio dos endinheirados sem a necessidade de produzir e sem ter a quem mais vender, premiaram o capital especulativo que se autorreplicou, sem agregar riqueza real à sociedade.
O conjunto enlouqueceu a engrenagem sistêmica, trincada adicionalmente pela ruptura das interações entre produção e consumo, graças à transferência das plantas fabris ao éden do baixo custo asiático.
Portanto, não foi a crise que gerou Trump.
Foi o esfarelamento anterior –deliberado e estrutural-- que gerou chocou o ovo da estagnação ‘secular’ e seus antídotos de xenofobia e totalitarismo.
A ordem dos fatores lança um alerta ao futuro brasileiro.
As rédeas do desenvolvimento nunca foram tão fugidias como na era do neoliberalismo, mas o que se pretende desde 31 de agosto no país é elevar essa adversidade à condição de virtude.
E generaliza-la.
A aliança do dinheiro grosso com a escória parlamentar, a mídia e o judiciário lapida a eutanásia da nação brasileira
Ceder o destino aos mercados destrambelhados é a bússola que empresta racionalidade à lambança dos apetites graúdos, da indecência dos patrocínios e da ganância despudorada.
A infecção se espalha da PEC 55 para todos os setores e atividades.
Inclui a precarização do mundo do trabalho.
A renúncia a uma política industrial que gere empregos de qualidade e produtividade para sustentar a disseminação da cidadania.
A aceitação passiva da redistribuição supranacional da produção fabril.
A destruição das organizações trabalhistas.
A sôfrega alienação das riquezas nacionais.
O encolhimento da seguridade social com a mutação de direitos em serviços pagos.
A renúncia do Estado em coordenar a taxa de investimento.
As isenções tributárias aos ricos e o definhamento fiscal que enseja o Estado mínimo para os pobres...
Tudo aquilo, enfim, que explica a mais lenta e anêmica convalescença de uma crise capitalista desde 1929, compõe agora a agenda oficial do país.
Os acontecimentos das últimas horas nos EUA evidenciam o fracasso das elites e do bumbo midiático em convencer os eleitores de que a liberdade absoluta para os mercados e para a circulação de capital é boa para todos
Seu fracasso sublinha a incompetência das vacas sagradas da desregulação para ordenar uma sociedade próspera, convergente e razoavelmente inclusiva.
Os abismos sociais no núcleo central do capitalismo mundial atingiram o ponto com o qual os norte-americanos jamais imaginaram.
A ascensão de um fascista à Casa Branca soava incompatível com os valores dos Estados Unidos.
Não é mais.
O terremoto deve sacudir o sonambulismo mundial a partir de agora.
A demanda por recheios distintos da rendição aos mercados vai crescer e acabará produzindo a sua oferta.
Uma heroica reorganização das forças progressistas, ou a sua não menos trágica extinção diante de manifestações totalitárias ascendentes, é o que pulsa no monitor da história.
O antídoto no Brasil tem nome: chama-se frente ampla.
O fator Trump sugere que o tempo para organizá-la se estreitou.
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