Por João Feres Júnior, no site Carta Maior:
Todo cidadão com um pouco de informação e uma pitada de senso crítico sabe que a grande mídia brasileira é motivo de vergonha nacional e uma constante ameaça à democracia. Todo ser humano que gastou um pouco de seu tempo lendo a produção acadêmica de estudos sobre mídia e política sabe que a grande mídia brasileira tem vocação de tentar intervir em resultados eleitorais, tornando-se altamente militante e tendenciosa durante os períodos de campanha, mais ainda do que já é de costume. Todo cientista social que se dedicou a estudar com seriedade o comportamento da mídia brasileira em períodos eleitorais na Nova República descobriu que o viés da cobertura foi consistentemente de direita, mormente contrário ao Partido dos Trabalhadores, agremiação mais competitiva da esquerda brasileira.
O comportamento adotado pela grande mídia após a eleição presidencial de 2014, contudo, excede em muito os padrões anteriores, tanto do ponto de vista qualitativo quanto quantitativo.
Se no período eleitoral a cobertura contrária à Dilma e ao PT foi muito superior àquela recebida por Aécio ou Marina, após a vitória nas eleições a negatividade aumentou ainda mais. Enquanto o PSDB decidia-se por não aceitar o resultado eleitoral, o que o levaria a tentativas de impugnar a diplomação de Dilma e depois às campanhas pelo impeachment, a mídia se dedicou ao diligente serviço de modular a cobertura de modo a manter um patamar altíssimo de negatividade para Dilma, PT e Lula, intensificando-a em momentos políticos cruciais para a agenda do golpe.
O gráfico acima contém a análise de valências da cobertura recebida por Dilma nas capas de O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, do início de 2014 até agosto de 2016. É notável como no mês seguinte ao segundo turno, ou seja, de outubro a novembro, o número de negativas recebidas por Dilma praticamente dobra, de 83 para 149 – são quase duas matérias negativas de capa por dia, em média, para cada jornal no mês de novembro. Mas eles não pararam por aí. Em janeiro, primeiro mês do segundo mandato, essa média sobe para 2,5 artigos negativos por periódico por dia, totalizando 222 no agregado do mês. No mês de março o total sobe para 293 negativas, ou seja, praticamente 3,5 matérias em cada capa, em média. Esse é o mês do debut das manifestações pró-impeachment, as quais foram “convocadas” e entusiasticamente cobertas pelos canais de TV das grandes empresas de mídia de nosso país.
É importante também notar que o padrão de variação conjunta entre negativas e neutras se mantém. Só que se antes da eleição a relação era de 1 para 1, depois dela passa a ser de 3 textos negativos em capas para 1 neutro. Em abril e maio de 2016 temos outro pico de negatividade, justamente quando ocorria a votação do Senado e Dilma era afastada definitivamente da presidência da república.
Os gráficos para o PT e Lula seguem padrões muito similares, de intensa cobertura negativa, inclusive com picos e vales similares, ao longo dos anos de 2015 e 2016, como já mostrei em outras ocasiões, algo fora do padrão dos anos recentes.
Essa análise quantitativa é somente a superfície mais externa da operação de orquestração do golpe desempenhada pela grande mídia brasileira. Sim, o golpe teve um maestro. A estratégia adotada para se encetar esse ataque violento ao PT, a seus políticos e aliados foi a de promover uma desvalorização profunda da política, reduzindo-a ao problema da corrupção. Essa prática midiática é velha, mas nos últimos anos ela tem se intensificado e ganhado foco. A narrativa é a seguinte: a política - suas instituições, forças e agentes - está profundamente, senão irremediavelmente, contaminada pela praga da corrupção, e o PT é o exemplo maior, o mais corrupto entre os partidos, a casa dos maiores vilões. Tal narrativa pode parecer um pouco irracional quando apreciada de maneira crítica, como fazemos aqui, pois as evidências produzidas até agora estão longe de comprová-la, mas ela é absorvida e replicada particularmente por uma classe média com várias predisposições para aceitá-la dessa maneira. Assim, atacaram a democracia representativa no seu âmago para se verem livres do PT.
O golpe se deu no âmbito da narrativa bem antes de ter sido formalizado por deputados e senadores, com o auxílio luxuoso de ministros do Supremo. Isso já vem da época do Mensalão, guindado à condição de maior escândalo de corrupção da história brasileira pela própria mídia. De lá para cá as coisas pioraram.
Enquanto a mídia desconstruía a democracia brasileira, a cúpula petista, autoconfiante depois de seguidas vitórias em pleitos presidenciais, se embalava com a tese de que “eles (as grandes empresas de comunicação) não ganham mais eleições neste país”. Dilma chegou a dizer que o único controle da mídia que conhecia era o controle remoto – interpretação tacanha que toma como premissa a falsidade de que o mercado de mídia é do tipo livre-concorrencial, ignorando, assim, o fato escandaloso do oligopólio neste setor. Estamos acostumados a ouvir tal absurdo papagaiado pelos ideólogos a serviço das grandes empresas de comunicação, mas causa perplexidade vê-lo repetido pela presidenta campeã do desenvolvimentismo. De fato, o excesso de autoconfiança é caminho certeiro para o autoengano.
O ataque à legitimidade da democracia representativa é estratégia similar àquela do caçador que ateia fogo à mata para poder mais facilmente abater sua presa em fuga. O Mensalão serviu como balão de ensaio para testarem a divinização seletiva do judiciário frente à depravação da corrupção política. Joaquim Barbosa virou herói pátrio.
Ainda que não tenha servido para ganhar a eleição em 2006 ou em 2010, a narrativa havia penetrado nas mentes de um público ao qual é oferecido somente um ponto de vista, aquele que interessa ao Partido da Imprensa. Não tardou para junho de 2013 dar a confirmação de que tantos anos de trabalho estavam rendendo frutos. Após uma breve onda de manifestações em prol da melhoria do transporte, a esquerda assistiu atônita à invasão das ruas por milhões de pessoas agendadas pelo discurso da antipolítica. Basta conferir os candidatos a presidente que os participantes escolheram em uma pesquisa de opinião do Datafolha feita no dia mais massivo das manifestações em São Paulo: Joaquim Barbosa e Marina Silva – dois campeões da negação da política.
O ano seguinte, 2014, era de eleição, e como de costume a grande imprensa se voltou para a velha tática de tentar produzir resultados eleitorais, atacando continuamente Dilma e o PT, promovendo e depois desconstruindo Marina Silva e ajudando Aécio a ir para o segundo turno. Perderam a batalha, mas não desistiram. Surgira naquele ano uma chance de ouro, um novo escândalo de corrupção, esse sim capaz de ser explorado de modo a atingir todo o sistema político, com preferência, é claro, pelo PT. Melhor ainda: a divinização do judiciário passou a contar com um herói branco, jovem e com credenciais políticas conservadoras irretocáveis: Sérgio Moro.
A imprensa tinha finalmente em suas mãos elementos para organizar uma campanha com grande potencial para produzir resultados políticos bem mais concretos do que colocar na rua turbas de manifestantes zumbis. A agenda da antipolítica havia conquistado as ruas em 2013, mas agora, com a Lava Jato, ela poderia ser profundamente explorada. Ao tornar-se hegemônico na opinião pública, o discurso da antipolítica autoriza o arbítrio de juízes e procuradores, constrange políticos, desqualifica movimentos sociais e forças progressistas e abre um rombo no sistema de representação política.
A grande mídia continuou a por em prática o conhecimento acumulado em 2013, insuflando em 2015 e 2016 uma série de protestos de rua que pediam a remoção da presidenta eleita. Claro que isso não foi feito sem a colaboração de partidos interessados no golpe, de movimentos de direita e de ações com timing calculado do judiciário e do Ministério Público.
O maior feito, contudo, foi ter conseguido que o sistema político parisse o impeachment de Dilma. Logo os partidos e políticos, tão vilipendiados pelo discurso da política como corrupção, foram os que ofereceram a presidenta em holocausto. Vista por essa perspectiva, a votação do impeachment na Câmara mais parece uma cena daqueles filmes em que pessoas são presas em uma sala por um vilão homicida, que exige o sacrifício de um para que os outros sobrevivam. Os políticos golpistas imaginaram que oferecendo a cabeça do executivo iriam aplacar a sede de sangue de seu algoz. Ledo engano. A única saída possível para a situação em que se meteram seria fortalecer o executivo legitimamente eleito, mantendo assim em razoável ordem os poderes da república. Mas não. Substituíram Dilma por um vice ilegítimo, impopular e suspeitíssimo de corrupção.
Uma vez feito presidente, Michel Temer se lançou como líder da concertação golpista, e para isso contou no começo com a indulgência da grande imprensa, que a ele sim concedeu uma Lua de Mel com direito a Veuve Clicquot e canapés com caviar de esturjão. Temer rapidamente organizou um governo de direita, com uma larga coalizão parlamentar e programa neoliberal em consonância com as agendas do PSDB e da grande mídia. Mas isso não foi suficiente para lhe garantir estabilidade.
Como o maestro, que conduz a orquestra, mas não toca os instrumentos, a grande mídia não tem poder institucional. Ela depende que Moros e Dallagnoles, Fachins, Teoris, Lewandowskis e Janots da vida, que Temers, Renans, Cunhas e Cristovans, exerçam seus poderes constituídos para que o concerto dê certo. Na verdade, o maior capital que a grande mídia tem frente aos poderes constituídos é simbólico: é o próprio discurso moralista da antipolítica. Disso ela não vai abrir mão.
Assim, ao mesmo tempo em que deram a Temer uma luxuosa Lua de Mel, continuaram a girar a máquina de moer carne da Lava Jato, que aos poucos vai comendo o novo governo. E à medida que Temer vai perdendo a condição de liderar o golpe, seja pelo envolvimento das cabeças de seu governo no escândalo, seja pela extrema fragmentação de sua base política ou mesmo por incapacidade, a orquestra começa a soar dissonante e os naipes parecem tocar, cada um, sua própria música.
Deputados e senadores provaram do gosto de destituir a chefe do Executivo, mas fragmentados em uma miríade de partidos, sem grandes lideranças e com um presidente fraco, já começam a mostrar tendências centrífugas. Os procuradores da Lava Jato, incensados pela mídia como heróis coadjuvantes de Moro, se sentem no direito de desafiar o legislativo em entrevista coletiva. O Supremo, animado pelo enorme poder acumulado por um juiz de província agrícola, agora se arroga poder soberano, interrompendo votações no Congresso e destituindo presidentes do poder legislativo com decisões monocráticas sob a justificativa de que estão defendendo os anseios da população. Enquanto isso, as casas legislativas começam a acordar para o fato de que se não forem refreados, o judiciário e o MP, teleguiados pelo discurso da antipolítica, vão praticamente reduzi-los a um poder acessório. Mas a reação do legislativo parece ser tardia demais, pois o desgaste da política institucional já está muito avançado. Renan foi o principal vilão da primeira manifestação da direita após o golpe, quem serão os próximos? Com um executivo fraco e profundamente desgastado pelo discurso da antipolítica, os líderes do legislativo não têm a quem apelar frente ao ataque do poder judiciário.
Não foram poucos os que imaginavam que o golpe iria tudo resolver, para bem ou para mal. Mas o resultado está sendo bem pior do que qualquer um poderia prever. O conflito entre os poderes foi estimulado por aqueles que queriam o golpe: jogaram os poderes “morais” da república contra seus poderes políticos. Mas agora esses mesmos agentes não têm poder para parar a destruição. Com esse nível de conflito, não há democracia que sobreviva. Enquanto isso, a grande mídia, fortalecida pela vitória sobre o PT e sobre o sistema político como um todo, continua a apostar no seu maior capital, o discurso da antipolítica, do qual a Lava Jato é a joia da coroa.
É legítimo perguntar: mas afinal de contas, quais são os interesses substantivos da grande mídia? Em um plano mais imediato, são a manutenção e crescimento do poder e riqueza das famílias proprietárias dos meios. Dito isso, há uma série de afinidades eletivas entre os interesses desse grupo e os do capital financeiro, do agronegócio, do privilégio dos brancos, da geopolítica norte-americana, do lobby pró-Israel, etc.
Se um dia Lula e outros dirigentes do PT acreditaram poder fazer avançar a democracia no Brasil a despeito dos impérios privados da imprensa, os quais deixaram intocados, hoje espero que tenham se dado conta do grande engano. Tal aprendizado, contudo, é insignificante frente ao estrago feito à Nova República e sua Constituição cidadã. Se algum dia nós, brasileiros, sairmos desse poço no qual nos metemos, essa saída terá necessariamente que passar por uma revisão radical do sistema de comunicação em nosso país.
Todo cidadão com um pouco de informação e uma pitada de senso crítico sabe que a grande mídia brasileira é motivo de vergonha nacional e uma constante ameaça à democracia. Todo ser humano que gastou um pouco de seu tempo lendo a produção acadêmica de estudos sobre mídia e política sabe que a grande mídia brasileira tem vocação de tentar intervir em resultados eleitorais, tornando-se altamente militante e tendenciosa durante os períodos de campanha, mais ainda do que já é de costume. Todo cientista social que se dedicou a estudar com seriedade o comportamento da mídia brasileira em períodos eleitorais na Nova República descobriu que o viés da cobertura foi consistentemente de direita, mormente contrário ao Partido dos Trabalhadores, agremiação mais competitiva da esquerda brasileira.
O comportamento adotado pela grande mídia após a eleição presidencial de 2014, contudo, excede em muito os padrões anteriores, tanto do ponto de vista qualitativo quanto quantitativo.
Se no período eleitoral a cobertura contrária à Dilma e ao PT foi muito superior àquela recebida por Aécio ou Marina, após a vitória nas eleições a negatividade aumentou ainda mais. Enquanto o PSDB decidia-se por não aceitar o resultado eleitoral, o que o levaria a tentativas de impugnar a diplomação de Dilma e depois às campanhas pelo impeachment, a mídia se dedicou ao diligente serviço de modular a cobertura de modo a manter um patamar altíssimo de negatividade para Dilma, PT e Lula, intensificando-a em momentos políticos cruciais para a agenda do golpe.
O gráfico acima contém a análise de valências da cobertura recebida por Dilma nas capas de O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, do início de 2014 até agosto de 2016. É notável como no mês seguinte ao segundo turno, ou seja, de outubro a novembro, o número de negativas recebidas por Dilma praticamente dobra, de 83 para 149 – são quase duas matérias negativas de capa por dia, em média, para cada jornal no mês de novembro. Mas eles não pararam por aí. Em janeiro, primeiro mês do segundo mandato, essa média sobe para 2,5 artigos negativos por periódico por dia, totalizando 222 no agregado do mês. No mês de março o total sobe para 293 negativas, ou seja, praticamente 3,5 matérias em cada capa, em média. Esse é o mês do debut das manifestações pró-impeachment, as quais foram “convocadas” e entusiasticamente cobertas pelos canais de TV das grandes empresas de mídia de nosso país.
É importante também notar que o padrão de variação conjunta entre negativas e neutras se mantém. Só que se antes da eleição a relação era de 1 para 1, depois dela passa a ser de 3 textos negativos em capas para 1 neutro. Em abril e maio de 2016 temos outro pico de negatividade, justamente quando ocorria a votação do Senado e Dilma era afastada definitivamente da presidência da república.
Os gráficos para o PT e Lula seguem padrões muito similares, de intensa cobertura negativa, inclusive com picos e vales similares, ao longo dos anos de 2015 e 2016, como já mostrei em outras ocasiões, algo fora do padrão dos anos recentes.
Essa análise quantitativa é somente a superfície mais externa da operação de orquestração do golpe desempenhada pela grande mídia brasileira. Sim, o golpe teve um maestro. A estratégia adotada para se encetar esse ataque violento ao PT, a seus políticos e aliados foi a de promover uma desvalorização profunda da política, reduzindo-a ao problema da corrupção. Essa prática midiática é velha, mas nos últimos anos ela tem se intensificado e ganhado foco. A narrativa é a seguinte: a política - suas instituições, forças e agentes - está profundamente, senão irremediavelmente, contaminada pela praga da corrupção, e o PT é o exemplo maior, o mais corrupto entre os partidos, a casa dos maiores vilões. Tal narrativa pode parecer um pouco irracional quando apreciada de maneira crítica, como fazemos aqui, pois as evidências produzidas até agora estão longe de comprová-la, mas ela é absorvida e replicada particularmente por uma classe média com várias predisposições para aceitá-la dessa maneira. Assim, atacaram a democracia representativa no seu âmago para se verem livres do PT.
O golpe se deu no âmbito da narrativa bem antes de ter sido formalizado por deputados e senadores, com o auxílio luxuoso de ministros do Supremo. Isso já vem da época do Mensalão, guindado à condição de maior escândalo de corrupção da história brasileira pela própria mídia. De lá para cá as coisas pioraram.
Enquanto a mídia desconstruía a democracia brasileira, a cúpula petista, autoconfiante depois de seguidas vitórias em pleitos presidenciais, se embalava com a tese de que “eles (as grandes empresas de comunicação) não ganham mais eleições neste país”. Dilma chegou a dizer que o único controle da mídia que conhecia era o controle remoto – interpretação tacanha que toma como premissa a falsidade de que o mercado de mídia é do tipo livre-concorrencial, ignorando, assim, o fato escandaloso do oligopólio neste setor. Estamos acostumados a ouvir tal absurdo papagaiado pelos ideólogos a serviço das grandes empresas de comunicação, mas causa perplexidade vê-lo repetido pela presidenta campeã do desenvolvimentismo. De fato, o excesso de autoconfiança é caminho certeiro para o autoengano.
O ataque à legitimidade da democracia representativa é estratégia similar àquela do caçador que ateia fogo à mata para poder mais facilmente abater sua presa em fuga. O Mensalão serviu como balão de ensaio para testarem a divinização seletiva do judiciário frente à depravação da corrupção política. Joaquim Barbosa virou herói pátrio.
Ainda que não tenha servido para ganhar a eleição em 2006 ou em 2010, a narrativa havia penetrado nas mentes de um público ao qual é oferecido somente um ponto de vista, aquele que interessa ao Partido da Imprensa. Não tardou para junho de 2013 dar a confirmação de que tantos anos de trabalho estavam rendendo frutos. Após uma breve onda de manifestações em prol da melhoria do transporte, a esquerda assistiu atônita à invasão das ruas por milhões de pessoas agendadas pelo discurso da antipolítica. Basta conferir os candidatos a presidente que os participantes escolheram em uma pesquisa de opinião do Datafolha feita no dia mais massivo das manifestações em São Paulo: Joaquim Barbosa e Marina Silva – dois campeões da negação da política.
O ano seguinte, 2014, era de eleição, e como de costume a grande imprensa se voltou para a velha tática de tentar produzir resultados eleitorais, atacando continuamente Dilma e o PT, promovendo e depois desconstruindo Marina Silva e ajudando Aécio a ir para o segundo turno. Perderam a batalha, mas não desistiram. Surgira naquele ano uma chance de ouro, um novo escândalo de corrupção, esse sim capaz de ser explorado de modo a atingir todo o sistema político, com preferência, é claro, pelo PT. Melhor ainda: a divinização do judiciário passou a contar com um herói branco, jovem e com credenciais políticas conservadoras irretocáveis: Sérgio Moro.
A imprensa tinha finalmente em suas mãos elementos para organizar uma campanha com grande potencial para produzir resultados políticos bem mais concretos do que colocar na rua turbas de manifestantes zumbis. A agenda da antipolítica havia conquistado as ruas em 2013, mas agora, com a Lava Jato, ela poderia ser profundamente explorada. Ao tornar-se hegemônico na opinião pública, o discurso da antipolítica autoriza o arbítrio de juízes e procuradores, constrange políticos, desqualifica movimentos sociais e forças progressistas e abre um rombo no sistema de representação política.
A grande mídia continuou a por em prática o conhecimento acumulado em 2013, insuflando em 2015 e 2016 uma série de protestos de rua que pediam a remoção da presidenta eleita. Claro que isso não foi feito sem a colaboração de partidos interessados no golpe, de movimentos de direita e de ações com timing calculado do judiciário e do Ministério Público.
O maior feito, contudo, foi ter conseguido que o sistema político parisse o impeachment de Dilma. Logo os partidos e políticos, tão vilipendiados pelo discurso da política como corrupção, foram os que ofereceram a presidenta em holocausto. Vista por essa perspectiva, a votação do impeachment na Câmara mais parece uma cena daqueles filmes em que pessoas são presas em uma sala por um vilão homicida, que exige o sacrifício de um para que os outros sobrevivam. Os políticos golpistas imaginaram que oferecendo a cabeça do executivo iriam aplacar a sede de sangue de seu algoz. Ledo engano. A única saída possível para a situação em que se meteram seria fortalecer o executivo legitimamente eleito, mantendo assim em razoável ordem os poderes da república. Mas não. Substituíram Dilma por um vice ilegítimo, impopular e suspeitíssimo de corrupção.
Uma vez feito presidente, Michel Temer se lançou como líder da concertação golpista, e para isso contou no começo com a indulgência da grande imprensa, que a ele sim concedeu uma Lua de Mel com direito a Veuve Clicquot e canapés com caviar de esturjão. Temer rapidamente organizou um governo de direita, com uma larga coalizão parlamentar e programa neoliberal em consonância com as agendas do PSDB e da grande mídia. Mas isso não foi suficiente para lhe garantir estabilidade.
Como o maestro, que conduz a orquestra, mas não toca os instrumentos, a grande mídia não tem poder institucional. Ela depende que Moros e Dallagnoles, Fachins, Teoris, Lewandowskis e Janots da vida, que Temers, Renans, Cunhas e Cristovans, exerçam seus poderes constituídos para que o concerto dê certo. Na verdade, o maior capital que a grande mídia tem frente aos poderes constituídos é simbólico: é o próprio discurso moralista da antipolítica. Disso ela não vai abrir mão.
Assim, ao mesmo tempo em que deram a Temer uma luxuosa Lua de Mel, continuaram a girar a máquina de moer carne da Lava Jato, que aos poucos vai comendo o novo governo. E à medida que Temer vai perdendo a condição de liderar o golpe, seja pelo envolvimento das cabeças de seu governo no escândalo, seja pela extrema fragmentação de sua base política ou mesmo por incapacidade, a orquestra começa a soar dissonante e os naipes parecem tocar, cada um, sua própria música.
Deputados e senadores provaram do gosto de destituir a chefe do Executivo, mas fragmentados em uma miríade de partidos, sem grandes lideranças e com um presidente fraco, já começam a mostrar tendências centrífugas. Os procuradores da Lava Jato, incensados pela mídia como heróis coadjuvantes de Moro, se sentem no direito de desafiar o legislativo em entrevista coletiva. O Supremo, animado pelo enorme poder acumulado por um juiz de província agrícola, agora se arroga poder soberano, interrompendo votações no Congresso e destituindo presidentes do poder legislativo com decisões monocráticas sob a justificativa de que estão defendendo os anseios da população. Enquanto isso, as casas legislativas começam a acordar para o fato de que se não forem refreados, o judiciário e o MP, teleguiados pelo discurso da antipolítica, vão praticamente reduzi-los a um poder acessório. Mas a reação do legislativo parece ser tardia demais, pois o desgaste da política institucional já está muito avançado. Renan foi o principal vilão da primeira manifestação da direita após o golpe, quem serão os próximos? Com um executivo fraco e profundamente desgastado pelo discurso da antipolítica, os líderes do legislativo não têm a quem apelar frente ao ataque do poder judiciário.
Não foram poucos os que imaginavam que o golpe iria tudo resolver, para bem ou para mal. Mas o resultado está sendo bem pior do que qualquer um poderia prever. O conflito entre os poderes foi estimulado por aqueles que queriam o golpe: jogaram os poderes “morais” da república contra seus poderes políticos. Mas agora esses mesmos agentes não têm poder para parar a destruição. Com esse nível de conflito, não há democracia que sobreviva. Enquanto isso, a grande mídia, fortalecida pela vitória sobre o PT e sobre o sistema político como um todo, continua a apostar no seu maior capital, o discurso da antipolítica, do qual a Lava Jato é a joia da coroa.
É legítimo perguntar: mas afinal de contas, quais são os interesses substantivos da grande mídia? Em um plano mais imediato, são a manutenção e crescimento do poder e riqueza das famílias proprietárias dos meios. Dito isso, há uma série de afinidades eletivas entre os interesses desse grupo e os do capital financeiro, do agronegócio, do privilégio dos brancos, da geopolítica norte-americana, do lobby pró-Israel, etc.
Se um dia Lula e outros dirigentes do PT acreditaram poder fazer avançar a democracia no Brasil a despeito dos impérios privados da imprensa, os quais deixaram intocados, hoje espero que tenham se dado conta do grande engano. Tal aprendizado, contudo, é insignificante frente ao estrago feito à Nova República e sua Constituição cidadã. Se algum dia nós, brasileiros, sairmos desse poço no qual nos metemos, essa saída terá necessariamente que passar por uma revisão radical do sistema de comunicação em nosso país.
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