Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Numa França onde a indiferença do eleitorado diante da eleição para presidente da República atingiu um patamar recorde, o comício de Jean-Luc Mélenchon, na tarde deste sábado, em Paris, foi um benvindo apelo à razão.
Apenas o quinto candidato em levantamentos eleitorais liderados por Marine Le Pen, do Front National, Mélenchon reuniu uma plateia estimada em 130 000 pessoas na praça da Republica, endereço tradicional para manifestações políticas da capital francesa. Pela presença surpreendente, o dobro do esperado, e pelo conteúdo de seu discurso, Mélenchon deu um novo perfil à eleição, que chegará a um segundo momento dramático nesta segunda-feira, no primeiro debate entre candidatos pela TV.
O futuro definirá o alcance de seu pronunciamento e a capacidade do candidato transformar ideias e força militante em votos. Candidato com apoio de várias fatias da esquerda francesa, em particular da combalida máquina do velho Partido Comunista, em eleições passadas, Mélenchon já exibiu bom apetite eleitoral mas acabou morrendo na praia e na reta final não possuía a estatura de concorrente capaz de atrair grandes maiorias.
Para quem imaginava que a disputa presidencial está condenada a ser um jogo de cartas marcadas, no qual dois candidatos de matriz conservadora se revezam para abrir caminho para enfrentar Marine Le Pen no segundo turno – seja Emmanuel Macron, ex-ministro da ala mais à direita do governo de François Hollande, seja François Fillon, de linhagem gaulista – Mélenchon cumpriu a função didática de lembrar que, antes da decisão final, será preciso cumprir a regra elementar de toda eleição, que consiste em disputar ideias e apresentar propostas.
Arruinados pela decepcionante gestão de Hollande, seguramente uma dos piores da história da França, até agora os candidatos ligados ao movimento operário e popular esequer conseguiram ser levados a sério pelos adversários e pelos eleitores.
Na campanha atual, uma aliança cada vez menos discreta entre o poder econômico, a grande mídia e uma parcela do judiciário ameaça transformar a eleição num espetáculo deprimente – aquela situação em que sociedades humanas são conduzidas para um destino desconhecido, como gado para o matadouro.
A esperança dos adversários é manter essa situação até o dia da votação, fazendo o possível para convencer eleitores – em particular aqueles que não acreditam nos concorrentes agora nos dois primeiros lugares nas pesquisas – que os demais candidatos não tem a menor chance de mudar o jogo.
Se o grosso desse eleitorado ficar em casa, com base no desânimo, as chances de uma alteração no cenário são nulas.
Esta foi a lição básica do comício, o mérito principal: colocar o pé na porta para forçar um debate indispensável.
Numa sociedade que enfrenta a mais grave crise de sua história, com desemprego em alta, salários estagnados, o desmanche de uma força industrial que já foi orgulho da Europa e um ambiente de ataques crescentes as liberdades públicas justamente no país que se considera a pátria dos Direitos Humanos, está em jogo um dado político estrutural e grave: a possibilidade do movimento operário e popular francês conservar uma expressão política independente. O ex-ministro Macron deu uma grande contribuição nesse sentido, lançando-se por um movimento pessoal, que ele próprio já definiu de uma relação entre um indivíduo (ele), um programa (o dele) e o povo.
Mélenchon teve competência para colocar questões pertinentes, destinadas, acima de tudo, a mobilizar uma fatia dos 34% que sequer têm certeza de que em abril irão sair de casa para votar.
Referindo-se aos principais adversários, fez uma boa síntese. Disse que a França corre o risco de um “golpe de Estado étnico, ou golpe de Estado financeiro, ou os dois.”
Definiu a postura subordinada de François Hollande às aventuras imperiais do governo norte-americano, um traço permanente do governo do PS, como uma “formula calamitosa.”
Retomando uma crítica que no passado era considerado radicalismo esquerdista, de quem não compreendia as vantagens da globalização, condenou a subordinação dos Estados Nacionais a União Europeia. Deixou claro que o princípio fundamental da democracia consiste na defesa da soberania popular, que pode incluir a “rebelião contra tratados europeus.” Denunciou o Banco Central Europeu, que impõe uma criminosa política de austeridade, que sacrifica povos e países.
O pronunciamento incluiu questões ecológicas e direitos dos animais, que não devem “ser tratados como coisa”, disse. Mélenchon ainda mostrou coragem para entrar num debate delicado, sobre eutanásia, defendendo o “direito ao suicídio assistido.”
Engrossando um coro que toma corpo no debate político francês, o eixo do discurso foi além das partes para debater todo. O candidato defendeu a realização de uma Constituinte para elaborar uma nova Constituição, daquela que seria a VI República da história francesa. Sem citar o nome do general Charles De Gaulle, lembrou que a V República, que possui artigos que assegura poderes “ monárquicos” ao presidente, foi feita sob circunstâncias excepcionais, sob medida para homem excepcional – mas não guarda relação sem com a realidade de hoje.
Será preciso aguardar novos lances da campanha presidencial para avaliar o alcance do comício de Mélenchon. Estamos falando de uma mudança dificílima, quando as lideranças e partidos operários enfrentam uma situação de fraqueza poucas vezes vista. Não há dúvida, de qualquer maneira, que a presença de uma multidão numa praça histórica de Paris ajudou a diminuir o sufoco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: