quinta-feira, 23 de março de 2017

Onde está o povo soberano?

Por Fábio Konder Comparato, no site Carta Maior:

Quando Tomé de Souza desembarcou na Bahia, em 1549, munido do seu famoso Regimento do Governo, e flanqueado de um ouvidor-mor, um provedor-mor, clero e soldados, a organização político-administrativa do Brasil, como país unitário, principiou a existir. Tudo fora minuciosamente preparado e assentado, em oposição à autonomia descentralizadora das capitanias hereditárias. Notava-se apenas, como disse um historiador, uma ligeira ausência: não havia povo. A população indígena, estimada na época em um milhão e meio de almas, não constituía, obviamente, o povo do novel Estado; tampouco o formavam os 1.200 funcionários – civis, religiosos e militares – que acompanharam o Governador Geral. Ou seja, tivemos Estado antes de ter povo.

Em vão procuramos o povo, nos principais acontecimentos de nossa História. Ele teima em permanecer em silêncio, como se fosse privado de palavra. É assim mesmo que o Padre Antônio Vieira, nosso maior orador sacro, o descreve no sermão da visitação de Nossa Senhora, pregado por ocasião da chegada à Bahia do Marquês de Montalvão, Vice-Rei do Brasil, em junho de 1640: “Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra, infans, infante, quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste permaneceu o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a medicina. (...) O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão”.

Dessa advertência, porém, pouco cuidaram os governantes. Um século após, um outro Vice-Rei, o Marquês do Lavradio, no relatório deixado a seu sucessor, aconselhava-o, tranquilamente, a “não fazer caso algum das murmurações do povo”.

Nossa independência, que paradoxalmente não foi o resultado de uma revolta do povo brasileiro contra o rei de Portugal, mas, ao contrário, do povo português contra o rei no Brasil, não suscitou o menor entusiasmo popular. Um observador judicioso, como Saint-Hilaire, que passou vários anos viajando pelo Brasil, pôde testemunhar: “A massa do povo ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: - Não terei a vida toda de carregar a sela de montagem?”

A mesma cena, com personagens diferentes, é repetida 67 anos depois, na Proclamação da República. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava“, lê-se na carta, tantas vezes citada, de Aristides Lobo a um amigo. “Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada. Era um fenômeno digno de ver-se”.

Seria ousado pretender ter havido posteriormente alguma alteração de monta nesse quadro tradicional. A única mudança, talvez, foi o temor de que o povo, algum dia, embora carregando a sela de montagem, venha a tomar o freio nos dentes. A própria Revolução de 1930, por muitos reconhecida como data marcante de nossa evolução político-social, foi desencadeado sob o slogan do então Presidente de Minas, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”.

A tradição do patronato político – “quem pode manda; obedece quem tem juízo” – continua a existir com todo o vigor. Contra ela, de pouco vale proclamar enfaticamente, em todas as Constituições que se sucederam a partir de 1934, que “todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”.

Para entender a causa dessa permanente alienação do povo em nossa organização política, é preciso se dar conta de que esta última sempre foi dúplice, nos dois sentidos da palavra: dobrada e dissimulada.

Tal duplicidade surgiu no Brasil desde o início da colonização portuguesa. O direito oficial, as Ordenações do Reino de Portugal, provinha da metrópole. Tratava-se, portanto, de regras importadas, totalmente estranhas ao meio brasileiro. A tais regras devia-se apenas respeito, mas não necessariamente obediência, à semelhança da máxima difundida em toda a América Espanhola: “as Ordenações del-Rei, Nosso Senhor, devem ser acatadas, mas não precisam ser cumpridas”.

Na verdade, se ninguém contestava durante o Brasil Colônia que o poder oficial pertencia a Sua Majestade, o rei de Portugal, ninguém tampouco ignorava que o poder efetivo não era por ele exercido, mas sim por dois grupos estreitamente associados entre si: o dos senhores de engenho e grandes fazendeiros, de um lado, e o dos principais administradores públicos vindos de Portugal, de outro lado. Sem dúvida, os componentes dessa associação, ou melhor, dessa sociedade mercantil, foram mudando no correr dos séculos. Na atual fase de capitalismo financeiro, os potentados econômicos privados não se localizam mais no setor industrial, como no século passado. São os bancos transnacionais.

Mas a sociedade lucrativa permaneceu inalterada até hoje. Seu patrimônio é constituído pelos recursos públicos arrecadados do povo e pelas propinas tradicionalmente recebidas pelos agentes de governo. Eis por que a corrupção é uma doença que vigora endemicamente em nosso país há 5 séculos.

Mas qual a razão da crise política que estamos agora sofrendo? Houve alguma mudança no esquema oligárquico tradicional? Mudança propriamente não houve, mas sim um início abortado de transformação política, que encheu de temor os dois componentes da nossa oligarquia. Pela primeira vez, desde a Independência, um Chefe de Estado, eleito pelo povo (e não escolhido em nome dele pelos oligarcas), um homem de origem proletária e operário de profissão, encerrou dois mandatos presidenciais com 80% da aprovação popular.

Em consequência, a partir daí, a nossa oligarquia não pensou em outra coisa, senão em montar e pôr em execução, com apoio de fiéis amigos de Tio Sam (políticos, magistrados, membros do Ministério Público e agentes policiais), um esquema completo para impedir a eleição de Lula em 2018.

O desfecho final não tarda. Seu anúncio não virá de Brasília, mas de Curitiba.

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