Por Antonio Martins, no site Outras Palavras:
Uma sondagem eleitoral divulgada esta manhã (6/6), em Londres, voltou a sobressaltar os conservadores – e a mostrar que continua aberta, em meio à crise global, a porta para uma alternativa de esquerda renovada. O Partido Trabalhista ampliou seu avanço notável, e está agora apenas 1,1 ponto percentual atrás dos Conservadores, na disputa das eleições parlamentares marcadas para esta quinta (8/6). O movimento é surpreendente por três motivos. Uma vitória trabalhista era considerada sonho lunático há apenas seis semanas, quando a primeira-ministra Theresa May convocou o pleito antecipado. A campanha trabalhista, liderada por Jeremy Corbyn, propõe uma reviravolta completa nas políticas de “austeridade” praticadas na Europa e em quase todo o Ocidente. Além disso, inclui um forte aspecto de nova cultura política: é fruto de uma rebelião das bases trabalhistas contra a política de conciliação e de alinhamento com os EUA, adotada pelo partido há pelo menos quatro décadas.
Com 68 anos, Corbyn percorreu uma trajetória semelhante à do norte-americano Bernie Sanders, que quase chegou a ser indicado candidato do Partido Democrata à Casa Branca, em 2016. Militante do Partido Trabalhista desde os 16 anos, foi um jornalista e organizador sindical ligado às alas à esquerda do partido por muitos anos. Em 1983, elegeu-se membro do Parlamento. Mas manteve-se em oposição à maioria trabalhista acomodada – em especial durante o governo de Tony Blair, que consolidou a adesão do partido às políticas neoliberais. Corbyn votou contra a orientação das direções 428 vezes. Defendeu, em especial, a garantia dos serviços públicos e uma política de paz – nos tempos em que, sob Blair, a Inglaterra era aliada principal de Washington nas guerras contra o Afeganistão e Iraque.
Em maio de 2015, uma derrota eleitoral devastadora provocou a renúncia da liderança trabalhista – que, segundo as regras do partido, é escolhida pelo voto direto dos militantes. Corbyn lançou-se à disputa como um azarão completo, quase sem conseguir o número de assinaturas de parlamentares necessárias para o registro. Mas deixou claro que era o único a concorrer “com uma plataforma anti-austeridade clara” e que seu gesto destinava-se a “dar voz à militância calada”.
Em apenas três meses, sua campanha sacudiu o partido e revelou que havia espaço para desafiar uma orientação imposta de cima e considerada inabalável. Corbyn foi eleito em primeiro turno, com 59,5% dos votos. Conseguiu-o graças à imensa adesão dos eleitores jovens – muitos dos quais aderiram aos trabalhistas especialmente para apoiá-lo. Parecia surgir uma outra via para reconstituir uma esquerda autêntica. Se em países como a Espanha o caminho eram partidos-movimento, como o Podemos, na Inglaterra a renovação surgia virando do avesso o próprio partido tradicional.
A velha estrutura partidária jamais aceitou Corbyn – os parlamentares do partido e a mídia, menos ainda. Sua liderança foi constantemente desafiada por deputados. Sua orientação era vista pelos jornais – tanto, The Economist, abertamente neoliberal, quanto The Guardian, que dialoga com a esquerda – como fadada a provocar o fracasso dos trabalhistas. Em junho de 2016, menos de um ano depois de eleito, Corbyn sofreu voto de desconfiança dos parlamentares do partido. Perdeu por arrasadores 172 x 40. Mas apelou de novo às bases e foi reconduzido ao posto com votação ainda maior: 61,8% de uma militância que se recusava a obedecer a burocracia partidária.
No último 19 de abril, quando Theresa May convocou eleições gerais, a expectativa era de que os trabalhistas sofressem uma derrota esmagadora, e de que o incômodo Corbyn fosse forçado à renúncia. Ele mais uma vez apostou no debate e na relação direta com o eleitorado. Ao contrário de May, encastelada em Londres, lançou-se pelo país, num ônibus estampado com o slogan de sua campanha: “Para muito, não para poucos” [“For the main, not for the few”]. Propõe a revitalização dos serviços públicos, cuja excelência marcou o Estado de Bem-Estar Social inglês no pós-guerra, mas que foram depredados ao longo de sucessivos governos conservadores e trabalhistas, nas últimas décadas. Afirma, sem medo de desafiar dogmas, que os recursos virão de mais impostos sobre os ricos, as grandes empresas e as transações financeiras. Quer reestatizar as ferrovias, o abastecimento de agua e os correios – cujos serviços deterioraram gravemente, após a privatização. Compromete-se a nomear um cabinete em que metade dos ministros sejam mulheres. Propõe abolir as (caríssimas) mensalidades universitárias, instituídas e elevadas nos últimos anos. Para simbolizar a defesa do trabalho, frente ao capital, sugere criar quatro novos feriados nacionais. Defende a revisão da política externa, com o fim do alinhamento automático a Washignton.
Um sinal simbólico de seu crescimento, nas últimas semanas, pode ser a notável mudança de orientação do Guardian. Ainda em março, o diário londrino escrevia em editorial que o partido estava ameaçado de reduzir-se à irrelevância – e que a única forma de evitá-la era a remoção de Corbyn da liderança. Em maio, a atitude começava a mudar. Na última sexta-feira, sinais de rendição: “O líder trabalhista fez uma boa campanha. Foi enérgico e efetivo. Sente-se confortável em sua pele e na presença de outros. Ele claramente gosta das pessoas e está interessado nelas. Gerou um senso incomum de que é possível; mais uma vez, as pessoas interessam-se pela política (…) Em 8 de Junho, ele merece nosso voto”.
*****
O avanço de Corbyn rumo ao governo de um país crucial, geopolítica e simbolicamente, parecia inevitável até os atentatos em Londres, no último sábado. Diante de uma ameaça concreta, os eleitores tendem ao conservadorismo. Mas tudo permanece incerto, porque também em relação a estes fatos o velho trabalhista foi feliz. Lembrou que os cortes de Theresa May nos serviços públicos, feitos para agradar a aristocracia financeira, resultaram também (ao contrário do que ocorre no Brasil…) em redução do efetivo policial. E ressaltou que a política externa de May prioriza (inclusive com venda maciça de armas) países como a Arábia Saudita – claramente, a inspiração maior do terror fundamentalista islâmico.
Tudo é incerto agora, nas eleições do Reino Unido. Mas a campanha admirável de Corbyn revela: por diferentes caminhos está surgindo, em todo o mundo, espaço para uma nova esquerda. Seria diferente, no Brasil.
Uma sondagem eleitoral divulgada esta manhã (6/6), em Londres, voltou a sobressaltar os conservadores – e a mostrar que continua aberta, em meio à crise global, a porta para uma alternativa de esquerda renovada. O Partido Trabalhista ampliou seu avanço notável, e está agora apenas 1,1 ponto percentual atrás dos Conservadores, na disputa das eleições parlamentares marcadas para esta quinta (8/6). O movimento é surpreendente por três motivos. Uma vitória trabalhista era considerada sonho lunático há apenas seis semanas, quando a primeira-ministra Theresa May convocou o pleito antecipado. A campanha trabalhista, liderada por Jeremy Corbyn, propõe uma reviravolta completa nas políticas de “austeridade” praticadas na Europa e em quase todo o Ocidente. Além disso, inclui um forte aspecto de nova cultura política: é fruto de uma rebelião das bases trabalhistas contra a política de conciliação e de alinhamento com os EUA, adotada pelo partido há pelo menos quatro décadas.
Com 68 anos, Corbyn percorreu uma trajetória semelhante à do norte-americano Bernie Sanders, que quase chegou a ser indicado candidato do Partido Democrata à Casa Branca, em 2016. Militante do Partido Trabalhista desde os 16 anos, foi um jornalista e organizador sindical ligado às alas à esquerda do partido por muitos anos. Em 1983, elegeu-se membro do Parlamento. Mas manteve-se em oposição à maioria trabalhista acomodada – em especial durante o governo de Tony Blair, que consolidou a adesão do partido às políticas neoliberais. Corbyn votou contra a orientação das direções 428 vezes. Defendeu, em especial, a garantia dos serviços públicos e uma política de paz – nos tempos em que, sob Blair, a Inglaterra era aliada principal de Washington nas guerras contra o Afeganistão e Iraque.
Em maio de 2015, uma derrota eleitoral devastadora provocou a renúncia da liderança trabalhista – que, segundo as regras do partido, é escolhida pelo voto direto dos militantes. Corbyn lançou-se à disputa como um azarão completo, quase sem conseguir o número de assinaturas de parlamentares necessárias para o registro. Mas deixou claro que era o único a concorrer “com uma plataforma anti-austeridade clara” e que seu gesto destinava-se a “dar voz à militância calada”.
Em apenas três meses, sua campanha sacudiu o partido e revelou que havia espaço para desafiar uma orientação imposta de cima e considerada inabalável. Corbyn foi eleito em primeiro turno, com 59,5% dos votos. Conseguiu-o graças à imensa adesão dos eleitores jovens – muitos dos quais aderiram aos trabalhistas especialmente para apoiá-lo. Parecia surgir uma outra via para reconstituir uma esquerda autêntica. Se em países como a Espanha o caminho eram partidos-movimento, como o Podemos, na Inglaterra a renovação surgia virando do avesso o próprio partido tradicional.
A velha estrutura partidária jamais aceitou Corbyn – os parlamentares do partido e a mídia, menos ainda. Sua liderança foi constantemente desafiada por deputados. Sua orientação era vista pelos jornais – tanto, The Economist, abertamente neoliberal, quanto The Guardian, que dialoga com a esquerda – como fadada a provocar o fracasso dos trabalhistas. Em junho de 2016, menos de um ano depois de eleito, Corbyn sofreu voto de desconfiança dos parlamentares do partido. Perdeu por arrasadores 172 x 40. Mas apelou de novo às bases e foi reconduzido ao posto com votação ainda maior: 61,8% de uma militância que se recusava a obedecer a burocracia partidária.
No último 19 de abril, quando Theresa May convocou eleições gerais, a expectativa era de que os trabalhistas sofressem uma derrota esmagadora, e de que o incômodo Corbyn fosse forçado à renúncia. Ele mais uma vez apostou no debate e na relação direta com o eleitorado. Ao contrário de May, encastelada em Londres, lançou-se pelo país, num ônibus estampado com o slogan de sua campanha: “Para muito, não para poucos” [“For the main, not for the few”]. Propõe a revitalização dos serviços públicos, cuja excelência marcou o Estado de Bem-Estar Social inglês no pós-guerra, mas que foram depredados ao longo de sucessivos governos conservadores e trabalhistas, nas últimas décadas. Afirma, sem medo de desafiar dogmas, que os recursos virão de mais impostos sobre os ricos, as grandes empresas e as transações financeiras. Quer reestatizar as ferrovias, o abastecimento de agua e os correios – cujos serviços deterioraram gravemente, após a privatização. Compromete-se a nomear um cabinete em que metade dos ministros sejam mulheres. Propõe abolir as (caríssimas) mensalidades universitárias, instituídas e elevadas nos últimos anos. Para simbolizar a defesa do trabalho, frente ao capital, sugere criar quatro novos feriados nacionais. Defende a revisão da política externa, com o fim do alinhamento automático a Washignton.
Um sinal simbólico de seu crescimento, nas últimas semanas, pode ser a notável mudança de orientação do Guardian. Ainda em março, o diário londrino escrevia em editorial que o partido estava ameaçado de reduzir-se à irrelevância – e que a única forma de evitá-la era a remoção de Corbyn da liderança. Em maio, a atitude começava a mudar. Na última sexta-feira, sinais de rendição: “O líder trabalhista fez uma boa campanha. Foi enérgico e efetivo. Sente-se confortável em sua pele e na presença de outros. Ele claramente gosta das pessoas e está interessado nelas. Gerou um senso incomum de que é possível; mais uma vez, as pessoas interessam-se pela política (…) Em 8 de Junho, ele merece nosso voto”.
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O avanço de Corbyn rumo ao governo de um país crucial, geopolítica e simbolicamente, parecia inevitável até os atentatos em Londres, no último sábado. Diante de uma ameaça concreta, os eleitores tendem ao conservadorismo. Mas tudo permanece incerto, porque também em relação a estes fatos o velho trabalhista foi feliz. Lembrou que os cortes de Theresa May nos serviços públicos, feitos para agradar a aristocracia financeira, resultaram também (ao contrário do que ocorre no Brasil…) em redução do efetivo policial. E ressaltou que a política externa de May prioriza (inclusive com venda maciça de armas) países como a Arábia Saudita – claramente, a inspiração maior do terror fundamentalista islâmico.
Tudo é incerto agora, nas eleições do Reino Unido. Mas a campanha admirável de Corbyn revela: por diferentes caminhos está surgindo, em todo o mundo, espaço para uma nova esquerda. Seria diferente, no Brasil.
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