Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:
O Brasil parece naufragar nas águas revoltas de um oceano mal-humorado. Esse cenário ambientado sob uma tempestade violenta é mesmo muito dramático, mas a verdade é que tal fenômeno tem muito pouco ou quase nada de natural em sua manifestação.
A crise econômica é evidente. As consequências sociais de sua propagação são impressionantes. O desemprego atinge níveis recordes, com a taxa de desocupação atingindo mais de 13,7% da população economicamente ativa. São mais de 14 milhões de trabalhadores que perderam seus postos no mercado formal de trabalho, com os inescapáveis reflexos sobre o nível de renda e bem-estar de suas respectivas famílias.
O nível da atividade econômica acumula queda sobre queda ao longo dos últimos dois anos, com a maior redução do PIB de nossa história tendo sido registrada no biênio 2015-2016. Foram dois exercícios consecutivos com retração de 3,8% e 3,6% em sequência. Assim, o nível de falências de empresas também explodiu ao longo do período e os diferentes itens das contas nacionais apresentam redução.
Ocorre que todo esse quadro não é fruto de mero acaso probabilístico ou da vontade divina de impor algum castigo aos habitantes destas terras. Por mais incrível que possa parecer, a opção pelo cardápio amargo é resultado de uma decisão de natureza eminentemente política que foi adotada pelos governantes do país. É importante reconhecer que não se trata de fenômeno genuinamente tupiniquim, uma vez que o mundo está recheado de nações que trilharam caminho semelhante. E estão todas afundando no pântano da crise e do retrocesso.
O modelo que dá fundamento a esse tipo de proposta para a economia atende por diversos nomes e endereços. Pode ser identificado como liberalismo hayekiano, interpretação neo-clássica, ortodoxia monetarista, neoliberalismo ou que-tais. O essencial a se reter é que todos mantêm uma crítica ácida a qualquer tipo de intervenção do Estado na economia e se vangloriam das virtudes absolutas das livres forças de mercado para se atingir o equilíbrio redentor. Tudo se resumeria à resultante da composição “harmônica” da ação dos agentes da oferta e da demanda. E o produto desse processo será necessariamente o ponto de maior eficiência da curva observada.
Assim, o austericídio que vivemos há um bom tempo não é obra do acaso. Trata-se de uma intenção deliberada de promover a recessão e o desemprego para que um novo ponto de ótimo seja atingido, como se estivessem os agentes políticos e os formuladores de políticas públicas diante de uma telinha de computador, jogando um “game” - como tão bem gostam de dar os nomes às coisas na língua dos norte-americanos.
De acordo com tal interpretação, a política monetária deve ser a mais restritiva possível, pois havia sérios riscos de retomada do processo inflacionário. De nada adiantaram as análises provando por “a” mais “b” que a subida dos preços não tinha nada a ver com aumento generalizado da demanda e sim a aspectos localizados na inflação de serviços e preços administrados. O fundamental é que o COPOM mantivesse a SELIC na estratosfera e os bancos continuassem liberados para jogar as taxas de juros praticadas nas estrelas.
Pelo lado das contas públicas, o conservadorismo seguia recomendando cortes e mais cortes nas despesas ditas primárias. Compressão de itens como saúde, assistência social, educação, previdência social, saneamento, pessoal, investimentos em infraestrutura e outros. A única rubrica que merecia ficar livre e solta em seus limites era o volume de recursos para pagamento de juros da dívida. Com isso, as despesas financeiras do orçamento não eram chamadas a contribuir para o esforço fiscal. Pelo contrário, a austeridade também era seletiva em sua mira de perversidade.
E aqui não se trata de lenda a respeito dos processos de tomada de decisão no interior do governo. Cansei de participar de reuniões em que os participantes tinham verdadeiros orgasmos com as notícias de se ter obtido um corte de um bilhão aqui, meio bilhão de redução acolá nos orçamentos das áreas sociais. Eram os chamados grupos da tesoura, cuja missão era exclusivamente angariar fundos para cumprir a meta de superávit primário. Em bom português: retirar do social com o objetivo de assegurar a existência do recurso para o financeiro.
A imprensa estampou outro dia uma entrevista com Marcos Lisboa, que atualmente preside uma das instituições mais umbilicalmente vinculada aos interesses do financismo por aqui – o INSPER. As opiniões do economista guardam uma espécie de frustração contida com a não realização das expectativas todas criadas com o golpeachment e a posse do governo ilegítimo do vice-presidente. Afinal, ele também parecia acreditar que bastava tirar a Dilma para que enfim o Brasil adentrasse as portas do paraíso.
Para não parecer injusto ou desleal com seus colegas que foram guindados a cargos estratégicos no comando da economia de Temer, ele inicia a conversa por isentá-los de qualquer reponsabilidade pelo fracasso evidente.
“Há uma equipe econômica muito competente que começou a tentar enfrentar os problemas, mas sempre houve medidas ambíguas.”
E Lisboa retoma a linha da austeridade e do discurso contra qualquer tentativa de se recuperar o protagonismo do Estado nas ações para buscar a saída para a profunda crise que essa mesma trilha ortodoxa nos enfiou. Assim, a única via que nos resta é assistirmos ao acirramento crescente das dificuldades e ficarmos aguardando o sinal alentador da fadinha das expectativas que viriam nos aportar a redenção salvadora. É quase uma questão de fé, do tipo “Tudo posso naquele que me fortalece - o mercado”.
“Imaginar que a retomada da economia virá com medidas de estímulo fiscal, com gastos, ampliando benefícios para setores produtivos, é não entender o que trouxe o Brasil à grave crise dos últimos anos.”
E para não perder a viagem, o financista já apresenta a conta dos juros. Como se estivesse se esquecendo do grau de dificuldades que a economia real das pessoas, das famílias, das empresas e dos governos atravessa, ele retoma o discurso do “cumprimento dos contratos”. Exige a volta ao compromisso com a geração de superávit primário para o pagamento dos juros. E ainda apresenta números nesse quadro geral de déficit fiscal. Pouco importa que o governo comandado pelos banqueiros trabalhe com um déficit de quase R$ 140 bi para o exercício fiscal desse ano. Afinal, todos nós deveríamos redobrar nossos esforços para engordar os lucros das instituições do sistema financeiro.
“Para estabilizar a dívida, precisa de um primário de R$ 250 bilhões.”
Esse tipo de prazer diante da crise vem de longe. Lembremo-nos que Palocci nomeou o mesmo Marcos Lisboa para chefiar a importante Secretaria de Política Econômica, quando foi nomeado por Lula para comandar o Ministério da Fazenda há 14 anos atrás. O atual Ministro Meirelles ocupou por oito longos anos a presidência do Banco Central entre 2003 e 2010, com direito a uma Medida Provisória especial para blindá-lo e impedir que fosse preso.
Ao longo desse tempo todo foram implementadas diversas formas de benesses ao grande capital privado com recursos públicos sem a mínima exigência de contrapartida de retorno social para esse investimento. Foram os casos de recursos do BNDES sem a garantia de que os empreendimentos tivessem o retorno justificado para a sociedade ou pelo menos a ingerência do banco na definição do rumo das empresas que receberam as gentilezas.
A lista das desonerações tributárias oferecidas ao capital também é imensa e o retorno observado foi mínimo. O exemplo mais cristalino talvez seja a desoneração da contribuição patronal para a previdência social, que aprofundou as dificuldades do quadro de receitas do sistema gerido pelo INSS. E que não gerou nenhum efeito positivo sobre a geração de empregos. A medida serviu apenas para reduzir a capacidade arrecadadora do Estado e aumentar a margem de lucro das empresas. E ainda reforça o discurso irresponsável e oportunista de suposto “desequilíbrio estrutural’ de nossa previdência social.
Mas talvez o deleite maior tenha sido mesmo proporcionado pela continuidade da política de geração de superávit primário ao longo de todo o período. Afinal, entre 2003 e o momento atual o governo transferiu o equivalente a R$ 3,5 trilhões do orçamento público para o cumprimento das despesas financeiras – ou seja, para o pagamento de juros da dívida pública.
Essa mesma sistemática de manutenção da perversidade e da desigualdade da qual Lisboa nem parece se envergonhar ao exigir dos dirigentes do setor público brasileiro. A busca incansável de satisfação e prazer com a crise parece mesmo não ter limites.
O Brasil parece naufragar nas águas revoltas de um oceano mal-humorado. Esse cenário ambientado sob uma tempestade violenta é mesmo muito dramático, mas a verdade é que tal fenômeno tem muito pouco ou quase nada de natural em sua manifestação.
A crise econômica é evidente. As consequências sociais de sua propagação são impressionantes. O desemprego atinge níveis recordes, com a taxa de desocupação atingindo mais de 13,7% da população economicamente ativa. São mais de 14 milhões de trabalhadores que perderam seus postos no mercado formal de trabalho, com os inescapáveis reflexos sobre o nível de renda e bem-estar de suas respectivas famílias.
O nível da atividade econômica acumula queda sobre queda ao longo dos últimos dois anos, com a maior redução do PIB de nossa história tendo sido registrada no biênio 2015-2016. Foram dois exercícios consecutivos com retração de 3,8% e 3,6% em sequência. Assim, o nível de falências de empresas também explodiu ao longo do período e os diferentes itens das contas nacionais apresentam redução.
Ocorre que todo esse quadro não é fruto de mero acaso probabilístico ou da vontade divina de impor algum castigo aos habitantes destas terras. Por mais incrível que possa parecer, a opção pelo cardápio amargo é resultado de uma decisão de natureza eminentemente política que foi adotada pelos governantes do país. É importante reconhecer que não se trata de fenômeno genuinamente tupiniquim, uma vez que o mundo está recheado de nações que trilharam caminho semelhante. E estão todas afundando no pântano da crise e do retrocesso.
O modelo que dá fundamento a esse tipo de proposta para a economia atende por diversos nomes e endereços. Pode ser identificado como liberalismo hayekiano, interpretação neo-clássica, ortodoxia monetarista, neoliberalismo ou que-tais. O essencial a se reter é que todos mantêm uma crítica ácida a qualquer tipo de intervenção do Estado na economia e se vangloriam das virtudes absolutas das livres forças de mercado para se atingir o equilíbrio redentor. Tudo se resumeria à resultante da composição “harmônica” da ação dos agentes da oferta e da demanda. E o produto desse processo será necessariamente o ponto de maior eficiência da curva observada.
Assim, o austericídio que vivemos há um bom tempo não é obra do acaso. Trata-se de uma intenção deliberada de promover a recessão e o desemprego para que um novo ponto de ótimo seja atingido, como se estivessem os agentes políticos e os formuladores de políticas públicas diante de uma telinha de computador, jogando um “game” - como tão bem gostam de dar os nomes às coisas na língua dos norte-americanos.
De acordo com tal interpretação, a política monetária deve ser a mais restritiva possível, pois havia sérios riscos de retomada do processo inflacionário. De nada adiantaram as análises provando por “a” mais “b” que a subida dos preços não tinha nada a ver com aumento generalizado da demanda e sim a aspectos localizados na inflação de serviços e preços administrados. O fundamental é que o COPOM mantivesse a SELIC na estratosfera e os bancos continuassem liberados para jogar as taxas de juros praticadas nas estrelas.
Pelo lado das contas públicas, o conservadorismo seguia recomendando cortes e mais cortes nas despesas ditas primárias. Compressão de itens como saúde, assistência social, educação, previdência social, saneamento, pessoal, investimentos em infraestrutura e outros. A única rubrica que merecia ficar livre e solta em seus limites era o volume de recursos para pagamento de juros da dívida. Com isso, as despesas financeiras do orçamento não eram chamadas a contribuir para o esforço fiscal. Pelo contrário, a austeridade também era seletiva em sua mira de perversidade.
E aqui não se trata de lenda a respeito dos processos de tomada de decisão no interior do governo. Cansei de participar de reuniões em que os participantes tinham verdadeiros orgasmos com as notícias de se ter obtido um corte de um bilhão aqui, meio bilhão de redução acolá nos orçamentos das áreas sociais. Eram os chamados grupos da tesoura, cuja missão era exclusivamente angariar fundos para cumprir a meta de superávit primário. Em bom português: retirar do social com o objetivo de assegurar a existência do recurso para o financeiro.
A imprensa estampou outro dia uma entrevista com Marcos Lisboa, que atualmente preside uma das instituições mais umbilicalmente vinculada aos interesses do financismo por aqui – o INSPER. As opiniões do economista guardam uma espécie de frustração contida com a não realização das expectativas todas criadas com o golpeachment e a posse do governo ilegítimo do vice-presidente. Afinal, ele também parecia acreditar que bastava tirar a Dilma para que enfim o Brasil adentrasse as portas do paraíso.
Para não parecer injusto ou desleal com seus colegas que foram guindados a cargos estratégicos no comando da economia de Temer, ele inicia a conversa por isentá-los de qualquer reponsabilidade pelo fracasso evidente.
“Há uma equipe econômica muito competente que começou a tentar enfrentar os problemas, mas sempre houve medidas ambíguas.”
E Lisboa retoma a linha da austeridade e do discurso contra qualquer tentativa de se recuperar o protagonismo do Estado nas ações para buscar a saída para a profunda crise que essa mesma trilha ortodoxa nos enfiou. Assim, a única via que nos resta é assistirmos ao acirramento crescente das dificuldades e ficarmos aguardando o sinal alentador da fadinha das expectativas que viriam nos aportar a redenção salvadora. É quase uma questão de fé, do tipo “Tudo posso naquele que me fortalece - o mercado”.
“Imaginar que a retomada da economia virá com medidas de estímulo fiscal, com gastos, ampliando benefícios para setores produtivos, é não entender o que trouxe o Brasil à grave crise dos últimos anos.”
E para não perder a viagem, o financista já apresenta a conta dos juros. Como se estivesse se esquecendo do grau de dificuldades que a economia real das pessoas, das famílias, das empresas e dos governos atravessa, ele retoma o discurso do “cumprimento dos contratos”. Exige a volta ao compromisso com a geração de superávit primário para o pagamento dos juros. E ainda apresenta números nesse quadro geral de déficit fiscal. Pouco importa que o governo comandado pelos banqueiros trabalhe com um déficit de quase R$ 140 bi para o exercício fiscal desse ano. Afinal, todos nós deveríamos redobrar nossos esforços para engordar os lucros das instituições do sistema financeiro.
“Para estabilizar a dívida, precisa de um primário de R$ 250 bilhões.”
Esse tipo de prazer diante da crise vem de longe. Lembremo-nos que Palocci nomeou o mesmo Marcos Lisboa para chefiar a importante Secretaria de Política Econômica, quando foi nomeado por Lula para comandar o Ministério da Fazenda há 14 anos atrás. O atual Ministro Meirelles ocupou por oito longos anos a presidência do Banco Central entre 2003 e 2010, com direito a uma Medida Provisória especial para blindá-lo e impedir que fosse preso.
Ao longo desse tempo todo foram implementadas diversas formas de benesses ao grande capital privado com recursos públicos sem a mínima exigência de contrapartida de retorno social para esse investimento. Foram os casos de recursos do BNDES sem a garantia de que os empreendimentos tivessem o retorno justificado para a sociedade ou pelo menos a ingerência do banco na definição do rumo das empresas que receberam as gentilezas.
A lista das desonerações tributárias oferecidas ao capital também é imensa e o retorno observado foi mínimo. O exemplo mais cristalino talvez seja a desoneração da contribuição patronal para a previdência social, que aprofundou as dificuldades do quadro de receitas do sistema gerido pelo INSS. E que não gerou nenhum efeito positivo sobre a geração de empregos. A medida serviu apenas para reduzir a capacidade arrecadadora do Estado e aumentar a margem de lucro das empresas. E ainda reforça o discurso irresponsável e oportunista de suposto “desequilíbrio estrutural’ de nossa previdência social.
Mas talvez o deleite maior tenha sido mesmo proporcionado pela continuidade da política de geração de superávit primário ao longo de todo o período. Afinal, entre 2003 e o momento atual o governo transferiu o equivalente a R$ 3,5 trilhões do orçamento público para o cumprimento das despesas financeiras – ou seja, para o pagamento de juros da dívida pública.
Essa mesma sistemática de manutenção da perversidade e da desigualdade da qual Lisboa nem parece se envergonhar ao exigir dos dirigentes do setor público brasileiro. A busca incansável de satisfação e prazer com a crise parece mesmo não ter limites.
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