Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:
Um dos pilares de toda a política econômica orientada pelo poder do sistema financeiro há várias décadas se assenta na geração continuada do chamado “superávit primário”. O discurso chega ao grande público baseado naquela conhecida lengalenga da comparação esdrúxula entre a dinâmica da economia de uma Nação e os problemas enfrentados pelo casal na organização da economia familiar doméstica.
Seja pelas falas que Lula afirmava manter com Dona Marisa, seja pelas conversas de Temer com a esposa Marcela, o fato é que a imprensa sempre repercute a ideia de que “não se pode gastar mais do que se recebe no mês”. Com isso, surge a tentativa de criminalização de qualquer inciativa de estabelecer políticas públicas que impliquem aumento dos gastos do Estado. É claro que a política econômica deve buscar algum tipo de equilíbrio e responsabilidade no longo prazo. No entanto, isso não significa que toda medida que envolva elevação de gasto orçamentário deva ser encarada do mesmo modo.
Afinal, uma Nação soberana tem o poder que nenhum de nós - pobres mortais cidadãos - possui. O governo pode gerar recursos por meio de impostos, emissão de moeda, crédito externo ou endividamento público. Essa autonomia por si só já estabelece uma diferença abissal entre as alternativas de conduzir a política econômica de um país e a responsabilidade por gerenciar as entradas e saídas de dinheiro na conta bancária de quem mantém um lar. Isso significa que lançar mão de títulos públicos para implementar políticas de Estado é prática rotineira na absoluta maioria dos países no mundo. O problema todo fica por conta dos “comos”, dos “quantos”, dos “quandos” e dos “por quês”.
Superávit primário: o golpe.
A malandragem do superávit primário remonta à década de 1980, quando grande parte dos países do chamado Terceiro Mundo estava envolvida com sérios problemas em seus Balanços de Pagamentos – as contas externas. Suas respectivas dívidas eram denominadas em dólar e todos foram obrigados a passar por complexo processo de renegociação do volume devido junto à banca internacional. Para tanto, o aval do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial era necessário para obter apoio do establishment. Com isso, os espertos agentes do financismo global lançaram o golpe de mestre. Para renegociar os papéis, os governos deveriam se comprometer com políticas e metas de geração do novo conceito - superávit primário.
A partir de então, a pressão passaria a ser realizada em termos de austeridade fiscal apenas sobre as contas não-financeiras de seus orçamentos públicos. Dessa forma, sobrariam os recursos livres e seguros para honrar o serviço da dívida pública que vinha de ser renegociada. Por meio dessa armadilha recheada de perversidade, estava sendo promovida uma das maiores enganações de todos os tempos. Os cidadãos passaram a achar que seus governos estariam sendo mais eficientes e competentes na gestão dos recursos púbicos, quando na verdade estavam tão somente reservando o pote premiado para os rentistas do parasitismo financeiro.
No caso brasileiro, houve nova rodada de negociação durante a década de 1990 e os (ir)responsáveis pela política econômica de FHC acertaram com o FMI a incorporação da obrigação de cumprir metas de superávit primário na própria legislação. Uma loucura de submissão descabida! E assim foi feito: no ano de 2000 foi aprovada a Lei de Responsabilidade Fiscal, com tal previsão draconiana. Sob o manto de um falso discurso a respeito de equilíbrio no trato das contas públicas, abria-se a brecha para drenar recursos, sem nenhum tipo de questionamento, do orçamento diretamente para os cofres dos bancos.
A lógica de tal imposição deriva de um modelo bastante conservador e polêmico a respeito do funcionamento da economia capitalista. A base de interpretação assenta-se na crença de que os males todos de nossa economia residem no excesso de Estado e na dimensão exagerada de nosso nível de endividamento público. Assim o caminho passaria pela privatização e pela desregulamentação generalizadas, com o intuito de tornar nossa economia mais eficiente e menor o peso da máquina estatal. A consequência - óbvia, no entender dos espetos proponentes - seria a diminuição da dívida pública. Aparentemente, em uma abordagem rasteira, tal raciocínio até que poderia fazer algum sentido. Só que não. A relação dívida/PIB cresceu de forma acentuada justamente no período posterior às privatizações da era tucana.
Juros crescem e dívida também.
Mas todas essas considerações aqui eram para contextualizar as informações que acabaram de ser divulgadas no Relatório Mensal da Dívida Pública, como é feito mensalmente pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN), ligada ao Ministério da Fazenda. De acordo com os dados oficiais, o estoque total da Dívida Pública Federal teria atingido o valor de R$ 3.253 bilhões no final de maio passado. Desse total, mais de 96% são compostos de papéis de dívida pública interna e pouco menos de 4% são ainda remanescentes da dívida em moeda estrangeira. Aliás, esse processo de internalização da dívida externa não é recente e vem desde o período posterior ao Plano Real em 1994.
O que interessa reter no momento é a comparação da variável de endividamento exatamente um ano atrás. Assim, a mesma STN nos informava, em maio de 2016, que o estoque total da dívida pública era de R$ 2.878 bilhões. A composição dos títulos (interno/externo) pouco variou e se mantinha em 95% a 5%. O aspecto que mais surpreende, porém, foi a elevação do estoque total ocorrida no período. Houve um crescimento de R$ 375 bilhões ao longo de 12 meses. Ou seja, um aumento de 13% no valor da dívida de lá para cá.
Esse número já pode ser considerado fora de propósito apenas se considerada a inflação do período, uma vez que o IPCA registra crescimento de 3,6% nos preços. Ou então se considerarmos o verificado na própria dinâmica da economia, que aponta recessão da ordem de 3% anual. Ou seja, a dívida do Estado cresceu em momento em que o governo pregava a diminuição do Estado e a redução dos investimentos públicos.
No entanto, o que mais choca o analista é a observação do ocorrido com o pagamento de juros pelo governo federal ao longo desses mesmos 12 meses. Afinal, o argumento a favor do esforço necessário para gerar o superávit primário se ancora no pressuposto de que a responsabilidade fiscal afasta o risco do chamado populismo no trato das contas públicas e impede o crescimento da dívida. As informações do Banco Central em seu acompanhamento da Política Fiscal demonstram a falácia de tal narrativa.
Sob o pomposo nome de “Necessidades de Financiamento do Setor Público” encontram-se no Relatório do BC os valores dos juros pagos relativamente à dívida pública. E ali se percebe que o Brasil transferiu ao sistema financeiro o montante de R$ 437 bi a título de honrar os compromissos do endividamento do Estado no mesmo período. Isso significa que ficamos com o pior dos dois mundos. Abrimos mão de qualquer protagonismo do Estado na busca de uma saída para a crise. E continuamos a sangrar o orçamento público em direção do financismo, sob a amarra da armadilha do superávit primário. O pagamento de juros é imenso e a dívida pública continua a crescer.
Seja pelas falas que Lula afirmava manter com Dona Marisa, seja pelas conversas de Temer com a esposa Marcela, o fato é que a imprensa sempre repercute a ideia de que “não se pode gastar mais do que se recebe no mês”. Com isso, surge a tentativa de criminalização de qualquer inciativa de estabelecer políticas públicas que impliquem aumento dos gastos do Estado. É claro que a política econômica deve buscar algum tipo de equilíbrio e responsabilidade no longo prazo. No entanto, isso não significa que toda medida que envolva elevação de gasto orçamentário deva ser encarada do mesmo modo.
Afinal, uma Nação soberana tem o poder que nenhum de nós - pobres mortais cidadãos - possui. O governo pode gerar recursos por meio de impostos, emissão de moeda, crédito externo ou endividamento público. Essa autonomia por si só já estabelece uma diferença abissal entre as alternativas de conduzir a política econômica de um país e a responsabilidade por gerenciar as entradas e saídas de dinheiro na conta bancária de quem mantém um lar. Isso significa que lançar mão de títulos públicos para implementar políticas de Estado é prática rotineira na absoluta maioria dos países no mundo. O problema todo fica por conta dos “comos”, dos “quantos”, dos “quandos” e dos “por quês”.
Superávit primário: o golpe.
A malandragem do superávit primário remonta à década de 1980, quando grande parte dos países do chamado Terceiro Mundo estava envolvida com sérios problemas em seus Balanços de Pagamentos – as contas externas. Suas respectivas dívidas eram denominadas em dólar e todos foram obrigados a passar por complexo processo de renegociação do volume devido junto à banca internacional. Para tanto, o aval do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial era necessário para obter apoio do establishment. Com isso, os espertos agentes do financismo global lançaram o golpe de mestre. Para renegociar os papéis, os governos deveriam se comprometer com políticas e metas de geração do novo conceito - superávit primário.
A partir de então, a pressão passaria a ser realizada em termos de austeridade fiscal apenas sobre as contas não-financeiras de seus orçamentos públicos. Dessa forma, sobrariam os recursos livres e seguros para honrar o serviço da dívida pública que vinha de ser renegociada. Por meio dessa armadilha recheada de perversidade, estava sendo promovida uma das maiores enganações de todos os tempos. Os cidadãos passaram a achar que seus governos estariam sendo mais eficientes e competentes na gestão dos recursos púbicos, quando na verdade estavam tão somente reservando o pote premiado para os rentistas do parasitismo financeiro.
No caso brasileiro, houve nova rodada de negociação durante a década de 1990 e os (ir)responsáveis pela política econômica de FHC acertaram com o FMI a incorporação da obrigação de cumprir metas de superávit primário na própria legislação. Uma loucura de submissão descabida! E assim foi feito: no ano de 2000 foi aprovada a Lei de Responsabilidade Fiscal, com tal previsão draconiana. Sob o manto de um falso discurso a respeito de equilíbrio no trato das contas públicas, abria-se a brecha para drenar recursos, sem nenhum tipo de questionamento, do orçamento diretamente para os cofres dos bancos.
A lógica de tal imposição deriva de um modelo bastante conservador e polêmico a respeito do funcionamento da economia capitalista. A base de interpretação assenta-se na crença de que os males todos de nossa economia residem no excesso de Estado e na dimensão exagerada de nosso nível de endividamento público. Assim o caminho passaria pela privatização e pela desregulamentação generalizadas, com o intuito de tornar nossa economia mais eficiente e menor o peso da máquina estatal. A consequência - óbvia, no entender dos espetos proponentes - seria a diminuição da dívida pública. Aparentemente, em uma abordagem rasteira, tal raciocínio até que poderia fazer algum sentido. Só que não. A relação dívida/PIB cresceu de forma acentuada justamente no período posterior às privatizações da era tucana.
Juros crescem e dívida também.
Mas todas essas considerações aqui eram para contextualizar as informações que acabaram de ser divulgadas no Relatório Mensal da Dívida Pública, como é feito mensalmente pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN), ligada ao Ministério da Fazenda. De acordo com os dados oficiais, o estoque total da Dívida Pública Federal teria atingido o valor de R$ 3.253 bilhões no final de maio passado. Desse total, mais de 96% são compostos de papéis de dívida pública interna e pouco menos de 4% são ainda remanescentes da dívida em moeda estrangeira. Aliás, esse processo de internalização da dívida externa não é recente e vem desde o período posterior ao Plano Real em 1994.
O que interessa reter no momento é a comparação da variável de endividamento exatamente um ano atrás. Assim, a mesma STN nos informava, em maio de 2016, que o estoque total da dívida pública era de R$ 2.878 bilhões. A composição dos títulos (interno/externo) pouco variou e se mantinha em 95% a 5%. O aspecto que mais surpreende, porém, foi a elevação do estoque total ocorrida no período. Houve um crescimento de R$ 375 bilhões ao longo de 12 meses. Ou seja, um aumento de 13% no valor da dívida de lá para cá.
Esse número já pode ser considerado fora de propósito apenas se considerada a inflação do período, uma vez que o IPCA registra crescimento de 3,6% nos preços. Ou então se considerarmos o verificado na própria dinâmica da economia, que aponta recessão da ordem de 3% anual. Ou seja, a dívida do Estado cresceu em momento em que o governo pregava a diminuição do Estado e a redução dos investimentos públicos.
No entanto, o que mais choca o analista é a observação do ocorrido com o pagamento de juros pelo governo federal ao longo desses mesmos 12 meses. Afinal, o argumento a favor do esforço necessário para gerar o superávit primário se ancora no pressuposto de que a responsabilidade fiscal afasta o risco do chamado populismo no trato das contas públicas e impede o crescimento da dívida. As informações do Banco Central em seu acompanhamento da Política Fiscal demonstram a falácia de tal narrativa.
Sob o pomposo nome de “Necessidades de Financiamento do Setor Público” encontram-se no Relatório do BC os valores dos juros pagos relativamente à dívida pública. E ali se percebe que o Brasil transferiu ao sistema financeiro o montante de R$ 437 bi a título de honrar os compromissos do endividamento do Estado no mesmo período. Isso significa que ficamos com o pior dos dois mundos. Abrimos mão de qualquer protagonismo do Estado na busca de uma saída para a crise. E continuamos a sangrar o orçamento público em direção do financismo, sob a amarra da armadilha do superávit primário. O pagamento de juros é imenso e a dívida pública continua a crescer.
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