Um bom começo para quem deseja compreender o debate sobre o destino de Aécio Neves, afastado de suas funções parlamentares e punido com recolhimento domiciliar noturno em decisão por 3 votos a 2 da Primeira Turma do STF, é ouvir os argumentos dos deputados Paulo Pimenta (PT-RS) e Wadih Damous, (PT-RJ).
Como o leitor destas linhas deve estar informado, os dois são parlamentares de atuação combativa e exemplar, que honram uma Câmara tantas vezes comprometida pelo oportunismo e pela falta de escrúpulos. Reconhecem a importância crucial das denúncias contra Aécio, em grande parte apoiadas em diálogos gravados por telefone. Defendem que o senador seja investigado e julgado por cada de seus crimes - mas dentro do respeito absoluto à legislação em vigor, a começar pelos artigos 53 e 55 da Constituição Federal, que definem regras para punição e perda de mandato de parlamentares, reservando a palavra final ao próprio Legislativo.
Mesmo afirmando seu “desprezo moral” por Aécio, a quem chama de “essa criatura”, Paulo Pimenta recorda que não é possível “perder a coerência política em nome de uma lógica utilitária" nem defende o uso seletivo da lei, que dessa forma iria variar de uma pessoa para outra. “É justamente isso que estão fazendo ao perseguir Lula e o José Dirceu”, diz Pimenta.
“Com que autoridade podemos defender nossos pontos de vista, inclusive em organismos internacionais? ” pergunta o parlamentar gaúcho. Lembrando um princípio básico do Estado Democrático de Direito - a reciprocidade - Wadih Damous recorda que a lei deve ser aplicada a todos, “inclusive a nossos piores inimigos”.
Sabemos que os momentos de tormenta da história costumam produzir vertigem em pessoas lúcidas e dificultam uma tomada serena de decisões.
Não há dúvida de que, neste final de setembro de 2017 o Brasil encontra-se num dos momentos mais graves de sua história.
Ameaças diretas à uma democracia conquistada após uma luta de dificuldades e sacrifícios embaralham o debate político, alimentando fantasias inconvenientes e perigosas. Recentemente, intelectuais como o professor Muniz Bandeira, historiador de valor incomparável, abençoaram um hipotético golpe de Estado promovido por imaginários generais nacionalistas como um atalho possível para proteger as riquezas nacionais ameaçadas pelo entreguismo de Temer-Meirelles.
Como sempre ocorre nessas horas, o risco consiste em confundir sonho e realidade, postura típica de quem não consegue distinguir a prioridade de cada conjuntura.
O risco maior que o país enfrenta hoje – e esta é a questão principal – reside na transformação do governo Temer no embrião de um novo regime. Menos importante do que o nome de quem pode vir a ocupar a cadeira presidencial, o essencial reside em três características básicas: o que se quer é um regime excludente do ponto de vista social; dependente e submisso a Washington, do ponto de vista diplomático e econômico; discricionário, conservador e repressivo, do ponto de vista político.
A partir de um vídeo distribuído pelo deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), já é possível conhecer o ponto de vista do general Antônio Mourão, o mais falante dos oficiais fardados que já marcaram presença na cena política. Como política econômica, Mourão faz a defesa – num plano próximo da caricatura -- do programa da coalização golpista: abertura ampla e irrestrita do país a investimentos externos, inclusive na Amazônia. Sua visão do futuro do Brasil como nação é uma herança ideológica anacrônica, típica dos aristocratas do café que foram expulsos da história na revolução 1930 e que enxergavam o país como sua fazenda, alimentando um desprezo insuperável pela herança cultural portuguesa, indígena e negra, encarada como obstáculo eterno ao nosso desenvolvimento.
Não há dúvida de que a liberdade absoluta de movimentos para a Lava Jato e o STF consiste um elemento essencial desta nova ordem em gestação. Aqui surgem as lideranças falantes e assertivas das Forças Armadas, agindo como a outra face da mesma moeda. São indispensáveis para sustentar um sistema de poder e um conjunto de ideias sem condições de sair vitorioso em eleições livres e limpas.
Confirmando tanto sua capacidade para enxergar movimentos da conjuntura como a opção de não assumir qualquer responsabilidade relativa a preservação da democracia, na mais recente visita a Washington Fernando Henrique Cardoso registrou que, no país de hoje, cabe aos ministros do Supremo um papel que, no passado, já coube aos generais de quatro estrelas. Falando com naturalidade espantosa, o ex-presidente, um dos paraninfos da Nova República, observou:
"Hoje, a maioria de nós nem sabe o nome deles (dos generais). Enquanto que os nomes dos 11 ministros da Suprema Corte fazem parte do cotidiano das pessoas. Inclusive quando vamos criticar algum deles, nós sabemos os nomes. Isso foi uma transformação", disse. "E a Suprema Corte, como guardiã da Constituição, tem a decisão final. Ela decide e é isso".
Vivemos as semanas, quem sabe meses, do período que antecede a grande encruzilhada política do atual momento histórico – a decisão da Justiça sobre a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência.
Numa etapa da vida nacional em que o cerco – jurídico e político -- à candidatura Lula se estreita, num esforço que se destina a asfixiar não apenas um projeto político, mas o conjunto de direitos e liberdades estabelecidos à saída do regime militar, a pergunta mudou.
Já não consiste em saber como entramos nesse sufoco – todos sabemos a História em detalhes e o papel de chefe da quadrilha anti-democrática desempenhado por Aécio – mas como podemos sair dele. Numa conjuntura que se desenvolve na velocidade sem limite das delações premiadas, o protagonista do golpe de maio-agosto corre o risco de ser aprisionado pelo mesmo regime exceção que ajudou a construir.
Para quem ainda não baixou os braços porque acha necessário encontrar uma saída, mesmo que seja num esforço para minimizar os danos, o ponto é este: como será possível ampliar uma resistência urgente e necessária contra vultos medonhos cada vez mais visíveis no horizonte?
As questões são duas: teremos eleições em 2018? Ninguém sabe.
Lula será candidato? Ninguém sabe mas é fácil reconhecer que os debaixo dão a impressão de saber alguma coisa que escapou aos de cima.
Vive-se uma condição real na qual a busca de coerência em nome da preservação de direitos democráticos é a missão prioritária para a ação política. Neste ambiente, justifica-se que o Partido dos Trabalhadores tenha assumido, em nota, a postura de que Aécio Neves deve ser julgado pelo Senado, dentro da legislação em vigor, sem atropelos nem alterações de ocasião, de forma a garantir uma ampla defesa, coerente com sua condição de senador eleito.
Não é só uma questão correta, de princípio. Pela força popular que representa, a defesa de Lula, líder em todas as pesquisas eleitorais, confunde-se, milímetro a milímetro, com a defesa da ordem constitucional democrática.
Toda e qualquer alteração, neste terreno, terá repercussão negativa no processo já duríssimo contra Lula.
Qualquer ferida na imunidade parlamentar de Aécio é conveniente para quem sonha com uma medida de exceção contra Lula – que não possui imunidade jurídica mas é protegido por um reconhecimento popular único, que transforma uma medida drástica contra sua candidatura num risco de proporções imprevisíveis.
Aos concorrentes que mal conseguem exibir oxigênio nas pesquisas, a exclusão de Lula é o favor nem um pouco secreto que a Lava Jato pode lhes oferecer. Sabem que um ambiente de instabilidade favorece medidas arbitrárias – que esperam, desesperadamente, que sejam disparadas contra Lula.
Também contam com sua eterna aliada – a mídia grande – para manter o PT sob pressão a todo custo e em qualquer opção. Caso o partido tivesse feito silêncio sobre “cassação branca” de Aécio, seria acusado de oportunismo, por negar ao senador o tratamento que defende a Lula. O ator Zé de Abreu, um lutador do twitter, foi promovido para o caderno político da Folha porque disse "desisto".
Como o partido optou por uma postura coerente, tenta-se colocar a mancha de aliado de Aécio e do próprio Temer, fingindo não enxergar a diferença entre as coisas.
(Essas diferenças existem e convém ter a honestidade de reconhecer quando um debate é mais complexo do que parece. Na dúvida, cabe consultar a sempre oportuna Hanna Arendt. Autora fundamental para a compreensão das ditaduras do século XX que ameaçam ressurgir neste início de XXI, Arendt não teve medo de enfrentar o ódio de uma parcela de seu próprio povo ao defender que o carrasco nazista Adolf Eichmann tivesse direito a um julgamento justo. Estava se referindo, não custa lembrar, ao responsável pelas câmaras de gás de Auschwitz).
Ao votar, por 3 votos a 2, pelo “afastamento” de Aécio Neves do Senado, a primeira turma do Supremo promoveu uma “cassação branca” de mandato, medida improvisada, que não encontra respaldo em nenhum dos 250 artigos da Constituição de 1988.
Embora o “afastamento” já tenha sido empregado uma vez, no caso de Delcídio Amaral, a questão é um fio desencapado de alta voltagem. Quando o STF decidiu afastar Renan Calheiros da presidência do Senado, no início do ano. o petista Jorge Vianna, vice presidente, organizou a uma resistência que recolou o titular de volta em seu posto, até que a própria instituição indicasse um novo ocupante do cargo. Desde maio do ano passado o plenário do STF tem refugado o debate necessário sobre sua legalidade, o que dá uma pista preocupante sobre seu caráter nebuloso e devastador, pois envolve, acima de todas outras considerações, a soberania do voto popular, simplesmente o artigo 1 da Constituição. Esta é a questão que importa hoje e irá importar, cada vez mais, nos próximos meses.
Alguma dúvida?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: