E lá estamos nós, repentinamente, a assistir a tentativa de proibição judicial da livre manifestação do pensamento no interior das universidades públicas. É preciso notar que mesmo a ditadura militar de 1964 mostrou-se tímida na tentativa de interferir nos ambientes acadêmicos.
Tudo começou às vésperas do impeachment, com uma recomendação do Ministério Público Federal de Goiás para que a universidade federal daquele estado se abstivesse de sediar manifestações favoráveis à presidenta Dilma Rousseff. No despacho, o MPF fazia referência a um ato em defesa da democracia convocado por entidades acadêmicas e movimentos sociais, e que contou com a participação do reitor da UFG, Orlando Amaral.
O MP concluiu que demonstrações daquele tipo seriam “incompatíveis com a Administração Pública, se realizados no âmbito do espaço físico de órgãos e de autarquias federais, ou [...] se utilizando de equipamentos e insumos públicos”.
Esqueceram-se, porém, os egrégios procuradores do fato de que as universidades federais não são meras “autarquias” ou repartições públicas. Elas possuem personalidade jurídica própria, garantida pelo artigo 207 da Constituição Federal. Nele lê-se que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”.
O conteúdo do preceito constitucional relaciona-se à especificidade do ambiente universitário, cujo papel é o de realizar – sozinho ou em parceria com Estado, empresas, partidos políticos, movimentos sociais, ONGs e demais instituições da sociedade – o debate sobre todos os temas de interesse nacional.
Como mostra a história da luta pela autonomia universitária, é preciso garantir a livre discussão nos ambientes acadêmicos. Não pode haver “temas proibidos” ou atores sociais impedidos de pautar discussões junto à universidade. Foi o que entendeu o Conselho Universitário da UFG ao afirmar, em nota, que “a dinâmica acadêmica demanda [...] o diálogo aberto com a sociedade em sua totalidade”.
O Conselho reforçou ainda “a autonomia e a liberdade para aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber [...] conforme garante a Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e o Estatuto da UFG”.
Mais recentemente, situações semelhantes mostraram que o entendimento do MP de Goiás é mais disseminado nos meios jurídicos do que se pensa. Merece destaque a peculiar decisão da Justiça Federal da Bahia, proferida no último dia 17 de agosto, que suspendia a entrega do título de doutor honoris causa ao ex-presidente Lula pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano, atropelando decisão de responsabilidade exclusiva do conselho superior daquela instituição.
Mas a sanha política do poder judiciário esteve longe de restringir-se, no último período, à interferência indevida nas instituições acadêmicas.
Para citar um exemplo dos mais bizarros, lembremos a decisão do juiz Felipe Albertini Nani Viaro, da 26ª vara cível de São Paulo. Ele determinou a execução de dívida contraída pela empresária Roberta Luchsinger, comumente definida na grande imprensa como “neta do ex-acionista do Credit Suisse Peter Arnold Luchsinger”.
Roberta ganhou os holofotes após anunciar a doação de meio milhão de reais ao presidente Lula, cujos bens haviam sido bloqueados pelo juiz Sérgio Moro. Pois bem. Não é que o juiz Felipe Albertini entendeu que ela só poderia fazer a doação após quitar uma dívida de R$ 62 mil que lhe vinha sendo cobrada por uma loja de decoração?
É certo que um juiz tem o poder de ordenar a execução de dívidas, isso ninguém discute. Mas determinar a forma como devo dispor de meu dinheiro até o pagamento de uma dívida, sem que esse dinheiro esteja bloqueado judicialmente... Isso pode, Arnaldo?
Diante de tão frenético ativismo judicante, talvez fique mais fácil entender o polêmico general Mourão e seu desejo de “derrubar tudo”, expresso recentemente em meio a declarações que, para citar as palavras do jornalista Jânio de Freitas, resgatam a longa tradição de nosso “golpismo militar”.
Não deveríamos, talvez, entender as declarações de Mourão como nada além de uma “cotovelite” aguda – típica daqueles que veem outros atores a desempenhar com muito mais desenvoltura um papel que já foi seu, em algum lugar do passado?
A judicialização da arte
Mas nenhum ativismo político é tão ruim que não possa transbordar para a esfera cultural. É assim que assistimos, estupefatos, ao fechamento de uma exposição patrocinada pelo banco Santander em Porto Alegre. Contando com obras de artistas do quilate de um Portinari, a iniciativa foi encerrada por obra, graça e livre pressão do Movimento Brasil Livre (MBL) – a tropa de choque juvenil do golpismo 2.0 –, que considerou a iniciativa “pornográfica”.
O banimento da exposição deu-se com a surpreendente concordância da própria curadoria, que, em nota, saiu-se com declarações que deveriam ser cuidadosamente exumadas por críticos e professores de artes, a fim de mostrar didaticamente o que NÃO é a arte. Para os curiosos, uma amostra: “Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”.
Falar em “inclusão” para justificar o fechamento de uma exposição que celebra a diversidade sexual já é uma cretinice. Mas o que dizer do termo “reflexão positiva” para definir o “propósito maior” da arte? Será que não podíamos ao menos – e olha que já faço aqui uma enorme concessão – deixar a reflexão “positiva” para a ciência, o jornalismo e outras dimensões, digamos, mais comportadas da experiência humana?
Decididamente, não é no terreno do “positivo” que a arte respira melhor. A experiência estética caracteriza-se precisamente pelo contrário, isto é, pela “pura simples negatividade” – para ficar com as palavras de um Hegel em sua Fenomenologia do Espírito. É papel da arte chocar o senso comum, revirar modos normais de enxergar as coisas, trazer à luz novas visões de mundo, subverter os sentidos e a experiência. Picasso, Magritte, Dali! Por favor, acudam-nos aqui!
Na imediata sequência da [auto]censura à exposição do Santander Cultural, um juiz de direito (que surpresa!), fingindo desconhecer o artigo 5º da Constituição – aquele mesmo que assegura ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” – proibiu a exibição da peça de teatro O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, que apresentava Cristo como um travesti.
No despacho, o juiz afirma: “Muito embora o Brasil seja um Estado Laico...”. Ficaria não talvez mais correto, mas certamente mais autêntico, dizer simplesmente “Muito embora tenhamos uma Constituição...”. Acostumamo-nos recentemente a falar em “judicialização da política”. E que tal a novidade da “judicialização da arte”?
Aproveitando o ensejo, outro juiz – talvez ao mesmo tempo motivado e insatisfeito com o anterior – resolveu passar por cima do Conselho Federal de Psicologia e da OMS para consagrar no país o charlatanismo, ao liberar tratamentos que propõem a chamada “cura gay”.
Nesse entremeio, um grupo de evangélicos invade uma exposição do grande artista hispano-brasileiro José Zaragoza para inspecioná-la e avaliar se não seria acaso merecedora do mesmo fim da exposição do Santander.
Ao mesmo tempo, uma proposta legislativa apresentada no Senado propõe a revogação da lei 12.612/2012, que concedeu a Paulo Freire – um dos pensadores brasileiros mais prestigiados em todo o mundo – o título de “patrono da educação brasileira”. Vejam que não se trata de concordar ou não com Freire, mas apenas de perguntar-se: por que deveria o Brasil enxovalhar um pensador de estatura internacional, patrimônio intelectual do país?
Parece um roteiro de ficção surrealista, mas é a realidade do maior e mais importante país da América Latina. Vai-se tornando uma constatação inescapável: em plenos albores do século XXI, abrimos a caixa de pandora do obscurantismo. Bem-vindos ao circo de horrores do Brasil pós-impeachment!
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