Por Reginaldo de Moraes, no site Carta Maior:
Nos últimos anos tenho me dedicado ao estudo da educação superior americana. Em tempos mais recentes, minha atenção se concentra nos desafios de formação de força de trabalho diante de mudanças aceleradas nos processos produtivos, na organização das empresas e na estrutura ocupacional. Contudo, como em toda pesquisa, temas colaterais surgem inesperadamente. Um deles, no meu caso, foi a emergência dos tais paraísos fiscais, um dispositivo cada vez mais frequentemente utilizado pelas grandes corporações e, também, pelas grandes fortunas pessoais.
Aproveitando essa deixa, acabei por reunir alguns materiais e pretendo apresentá-los em uma pequena série de artigos. Creio que devem interessar aos leitores do JU [Jornal da Unicamp].
Os “paraísos fiscais” são também denominados “Offshore Finance Services”, se quisermos adotar os termos educados e edulcorados que preferem os advogados da coisa. É assombrosamente grande a literatura sobre o tema. Grande parte dos livros, artigos e brochuras poderia ser enquadrada em certo tipo de autoajuda ou “faça você mesmo” - “guias de viagem” para a riqueza em trânsito. Tecle na Amazon.com e verá uma chuva de livros e livretos dirigidos ao consumidor dos sonhos de evasão e “liberdade fiscal”. E, claro, há trabalhos de natureza mais analítica, os que procuram interpretar com um pouco mais de profundidade o desenvolvimento desses expedientes da riqueza em busca de refúgio.
Na vertente “manual do usuário”, um deles tem uma declaração de objetivos de gargalhar – o autor o apresenta como um “everyman’s guide to tax havens”. Everyman? Se everyman fizesse o que esses ricaços e corporações fazem, teríamos que adivinhar marcianos para colher impostos e sustentar os serviços públicos, incluindo a segurança pública que protege as propriedades.
Mas esse livro - Tax Havens for International Business, de Adam Starchild (Palgrave Macmillan, 1994) – vai diretamente ao programa que defende: o livro explica como se pode acumular mais taxas “após-impostos” através de uma operação em paraísos fiscais, mais do que seria possível utilizando os esquemas usuais de proteção contra impostos, aqueles esquemas que “nós” utilizamos dentro do pais.
Deixe de gastar tempo e energia com “planejamento tributário” destinado a driblar o cobrador de impostos. Seus problemas acabaram! Afinal “a incorporação em quase todos os países-paraísos é rápida, simples e relativamente barata”. Um sonho, não é?
Para não dizer que a manobra é inteiramente governada por interesses mesquinhos e conspirativos, o autor tenta justificá-la em termos morais ou, pelo menos, em função de uma “ética empreendedora”: “Os homens de negócios e executivos das companhias se sentem não apenas com o dever, mas, também, com a obrigação moral de utilizar medidas legais de redução de taxas”. E é por isso que, lembra, os sistemas legais dos países-paraísos precisam ter algum tipo de “interação” com aqueles dos países dos “refugiados”. Interação significa prever brechas, ou torcicolos, aqueles que permitem que você olhe para um lado e chute para o outro, enquanto a platéia se distrai.
Se você ficou comovido com as angústias dos portadores da grana e com as responsabilidades dos executivos, ficará ainda mais tocado com o livro de Hoyt Barber – Tax havens today: the benefits and pitfalls of banking and investing offshore (John Wiley & Sons, Inc., New Jersey. 2007).
Barber promete nada menos do que uma "Offshore Bible". E também começa por uma chicana moral. Distingue entre evitar e sonegar e, em seguida, retrata o pobre (?) cidadão que, evitando praticar um crime, claro, busca a proteção da ferramenta paradisíaca. Esse torturado contribuinte que deseja reduzir a contribuição vive sob o “fantasma das taxas”, esse massacre que multiplica “desencantados americanos”, desesperados em busca de uma “vida inteiramente nova”. E vida inteiramente nova, claro, se encontra no paraíso. Felizmente, boas almas inventaram países que permitem isto ainda na vida terrena.
O livro traça um retrato dos torturados cidadãos que buscam essa fuga. É digno de lágrimas. Segundo Barber, os coitados fogem da opressão governamental, discriminação, processos em cascata, ameaças de chantagem e sequestro, terrorismo, um inferno!
Inferno? O termo vem a calhar. Um colunista brasileiro, certa vez, veio com essa: só existe paraíso fiscal porque existe inferno fiscal, porque os cidadãos são tiranizados pelo estado. Assim, ficamos sabendo que os detentores de contas na Suíça ou nas Ilhas Cayman são seres perseguidos e humilhados. O curioso é que esses coitadinhos, se fizessem uma declaração de propriedade a rigor diriam algo assim: tenho bilhões investidos nisto e outros bilhões naquilo, 12 fazendas com respectivos castelos, 4 aviões e 6 helicópteros, três iates, 24 deputados, 12 governadores, 10 senadores e uma parte-alíquota de 5% do presidente da república, além de duas dezenas de juízes. Ufa, que sofrimento! Tenho que me livrar desse estado opressor.
Barber faz a descrição desses aflitos senhores, que estariam entre os 2% superiores da sociedade, os “tesouros nacionais”, como eles os rotula:
"... homens de negócios, empreendedores, industriais, capitalistas, inventores, escritores, atores, cantores, cientistas e outros tipos de gente rica e criativa. Eles constituem grande parte dos fundamentos econômicos sobre os quais se cria a riqueza atingida pelo cobrador de impostos. Na Inglaterra, estas flores mais brilhantes entre os cidadãos são, muitas vezes, as pessoas que fizeram as malas e se foram "
Triste o cenário. Temos os dois por cento superiores expulsos de suas pátrias, como aqueles desgraçados migrantes da África e do Oriente Médio, atravessando as fronteiras da Alemanha em busca da liberdade. Talvez, se soubessem do Estado tirânico que ali existe, prefeririam a Suíça, Mônaco, as Ilhas Jersey. Não foram avisados que é ali que devem depositar suas trouxas.
O que vem a seguir....
Prezado leitor, por enquanto, ficamos por aqui, nesta coleção de impressões assombradas. Semana próxima voltamos aos paraísos, tentando entender porque, afinal, boas almas inventaram tais refúgios aos bilionários perseguidos.
Os artigos bebem em fontes pré-existentes. Não descobri coisa alguma, como detetive estaria falido. São pouco mais do que notas costuradas a partir de uma literatura selecionada. O leitor interessado pode também encontrar interessantes materiais no site https://www.taxjustice.net/. Há também numerosos vídeos no Youtube, em diferentes idiomas. Um deles, produzido pelo jornal frances Le Monde, está legendado em português: https://www.youtube.com/watch?v=vhzGYr4UBts.
Parte dessas fontes tem um tom periodístico. Afinal, o interesse popularizado nos paraísos foi largamente produzido pela menção a figuras que pareciam marginais ou excêntricas: gangsters, traficantes, políticos e celebridades artísticas e esportivas. Aquilo que talvez frequentasse noticiário policial ou de variedades. Um desses livros, dos irmãos jornalistas Obermaier, ousava dizer que tinham entrado em algo mais do que um aspecto menor do sistema, era o próprio sistema. Mas, ao que parece, essa literatura mais factual tomava os sinais de generalização, de expansão, como suficientes para apontar seu lado sistêmico.
Uma outra literatura, que comentaremos, procura mostrar como a coisa vai mais longe. O extraordinário crescimento desse motéis do capital é associado com o que se chama de globalização econômica, a internacionalização complexa do comércio e da manufatura. Bancos e financeiras os seguem, primeiro como instrumentos auxiliares, depois se descolam e ganham vida própria. Afinal, mais de 90% do que circula nos chamados mercados de capitais é dinheiro (ou crédito) que não financia coisa alguma de concreto – não contribuem para produzir um pregou ou sapato.
E aí, quando a finança decola, o sistema dos paraísos ganha identidade madura. Como um aspecto daquilo que antigamente se chamava de luta de classes. Neste caso, veremos, trata-se de um “jogo de volta” do capital, uma revanche contra as conquistas que movimentos sindicais e populares tinham obtido no espaço dos estados nacionais, através de politicas públicas, taxação progressiva, regulamentações trabalhistas, ambientais, fitossanitárias e assim por diante. Desse modo, o paraíso fiscal é, sim, “o sistema” – o modo como este garante sua reprodução em escala ampliada. Este é o fio que pretendemos explorar. Não perca. Nas telas, nas próximas semanas.
Nos últimos anos tenho me dedicado ao estudo da educação superior americana. Em tempos mais recentes, minha atenção se concentra nos desafios de formação de força de trabalho diante de mudanças aceleradas nos processos produtivos, na organização das empresas e na estrutura ocupacional. Contudo, como em toda pesquisa, temas colaterais surgem inesperadamente. Um deles, no meu caso, foi a emergência dos tais paraísos fiscais, um dispositivo cada vez mais frequentemente utilizado pelas grandes corporações e, também, pelas grandes fortunas pessoais.
Aproveitando essa deixa, acabei por reunir alguns materiais e pretendo apresentá-los em uma pequena série de artigos. Creio que devem interessar aos leitores do JU [Jornal da Unicamp].
Os “paraísos fiscais” são também denominados “Offshore Finance Services”, se quisermos adotar os termos educados e edulcorados que preferem os advogados da coisa. É assombrosamente grande a literatura sobre o tema. Grande parte dos livros, artigos e brochuras poderia ser enquadrada em certo tipo de autoajuda ou “faça você mesmo” - “guias de viagem” para a riqueza em trânsito. Tecle na Amazon.com e verá uma chuva de livros e livretos dirigidos ao consumidor dos sonhos de evasão e “liberdade fiscal”. E, claro, há trabalhos de natureza mais analítica, os que procuram interpretar com um pouco mais de profundidade o desenvolvimento desses expedientes da riqueza em busca de refúgio.
Na vertente “manual do usuário”, um deles tem uma declaração de objetivos de gargalhar – o autor o apresenta como um “everyman’s guide to tax havens”. Everyman? Se everyman fizesse o que esses ricaços e corporações fazem, teríamos que adivinhar marcianos para colher impostos e sustentar os serviços públicos, incluindo a segurança pública que protege as propriedades.
Mas esse livro - Tax Havens for International Business, de Adam Starchild (Palgrave Macmillan, 1994) – vai diretamente ao programa que defende: o livro explica como se pode acumular mais taxas “após-impostos” através de uma operação em paraísos fiscais, mais do que seria possível utilizando os esquemas usuais de proteção contra impostos, aqueles esquemas que “nós” utilizamos dentro do pais.
Deixe de gastar tempo e energia com “planejamento tributário” destinado a driblar o cobrador de impostos. Seus problemas acabaram! Afinal “a incorporação em quase todos os países-paraísos é rápida, simples e relativamente barata”. Um sonho, não é?
Para não dizer que a manobra é inteiramente governada por interesses mesquinhos e conspirativos, o autor tenta justificá-la em termos morais ou, pelo menos, em função de uma “ética empreendedora”: “Os homens de negócios e executivos das companhias se sentem não apenas com o dever, mas, também, com a obrigação moral de utilizar medidas legais de redução de taxas”. E é por isso que, lembra, os sistemas legais dos países-paraísos precisam ter algum tipo de “interação” com aqueles dos países dos “refugiados”. Interação significa prever brechas, ou torcicolos, aqueles que permitem que você olhe para um lado e chute para o outro, enquanto a platéia se distrai.
Se você ficou comovido com as angústias dos portadores da grana e com as responsabilidades dos executivos, ficará ainda mais tocado com o livro de Hoyt Barber – Tax havens today: the benefits and pitfalls of banking and investing offshore (John Wiley & Sons, Inc., New Jersey. 2007).
Barber promete nada menos do que uma "Offshore Bible". E também começa por uma chicana moral. Distingue entre evitar e sonegar e, em seguida, retrata o pobre (?) cidadão que, evitando praticar um crime, claro, busca a proteção da ferramenta paradisíaca. Esse torturado contribuinte que deseja reduzir a contribuição vive sob o “fantasma das taxas”, esse massacre que multiplica “desencantados americanos”, desesperados em busca de uma “vida inteiramente nova”. E vida inteiramente nova, claro, se encontra no paraíso. Felizmente, boas almas inventaram países que permitem isto ainda na vida terrena.
O livro traça um retrato dos torturados cidadãos que buscam essa fuga. É digno de lágrimas. Segundo Barber, os coitados fogem da opressão governamental, discriminação, processos em cascata, ameaças de chantagem e sequestro, terrorismo, um inferno!
Inferno? O termo vem a calhar. Um colunista brasileiro, certa vez, veio com essa: só existe paraíso fiscal porque existe inferno fiscal, porque os cidadãos são tiranizados pelo estado. Assim, ficamos sabendo que os detentores de contas na Suíça ou nas Ilhas Cayman são seres perseguidos e humilhados. O curioso é que esses coitadinhos, se fizessem uma declaração de propriedade a rigor diriam algo assim: tenho bilhões investidos nisto e outros bilhões naquilo, 12 fazendas com respectivos castelos, 4 aviões e 6 helicópteros, três iates, 24 deputados, 12 governadores, 10 senadores e uma parte-alíquota de 5% do presidente da república, além de duas dezenas de juízes. Ufa, que sofrimento! Tenho que me livrar desse estado opressor.
Barber faz a descrição desses aflitos senhores, que estariam entre os 2% superiores da sociedade, os “tesouros nacionais”, como eles os rotula:
"... homens de negócios, empreendedores, industriais, capitalistas, inventores, escritores, atores, cantores, cientistas e outros tipos de gente rica e criativa. Eles constituem grande parte dos fundamentos econômicos sobre os quais se cria a riqueza atingida pelo cobrador de impostos. Na Inglaterra, estas flores mais brilhantes entre os cidadãos são, muitas vezes, as pessoas que fizeram as malas e se foram "
Triste o cenário. Temos os dois por cento superiores expulsos de suas pátrias, como aqueles desgraçados migrantes da África e do Oriente Médio, atravessando as fronteiras da Alemanha em busca da liberdade. Talvez, se soubessem do Estado tirânico que ali existe, prefeririam a Suíça, Mônaco, as Ilhas Jersey. Não foram avisados que é ali que devem depositar suas trouxas.
O que vem a seguir....
Prezado leitor, por enquanto, ficamos por aqui, nesta coleção de impressões assombradas. Semana próxima voltamos aos paraísos, tentando entender porque, afinal, boas almas inventaram tais refúgios aos bilionários perseguidos.
Os artigos bebem em fontes pré-existentes. Não descobri coisa alguma, como detetive estaria falido. São pouco mais do que notas costuradas a partir de uma literatura selecionada. O leitor interessado pode também encontrar interessantes materiais no site https://www.taxjustice.net/. Há também numerosos vídeos no Youtube, em diferentes idiomas. Um deles, produzido pelo jornal frances Le Monde, está legendado em português: https://www.youtube.com/watch?v=vhzGYr4UBts.
Parte dessas fontes tem um tom periodístico. Afinal, o interesse popularizado nos paraísos foi largamente produzido pela menção a figuras que pareciam marginais ou excêntricas: gangsters, traficantes, políticos e celebridades artísticas e esportivas. Aquilo que talvez frequentasse noticiário policial ou de variedades. Um desses livros, dos irmãos jornalistas Obermaier, ousava dizer que tinham entrado em algo mais do que um aspecto menor do sistema, era o próprio sistema. Mas, ao que parece, essa literatura mais factual tomava os sinais de generalização, de expansão, como suficientes para apontar seu lado sistêmico.
Uma outra literatura, que comentaremos, procura mostrar como a coisa vai mais longe. O extraordinário crescimento desse motéis do capital é associado com o que se chama de globalização econômica, a internacionalização complexa do comércio e da manufatura. Bancos e financeiras os seguem, primeiro como instrumentos auxiliares, depois se descolam e ganham vida própria. Afinal, mais de 90% do que circula nos chamados mercados de capitais é dinheiro (ou crédito) que não financia coisa alguma de concreto – não contribuem para produzir um pregou ou sapato.
E aí, quando a finança decola, o sistema dos paraísos ganha identidade madura. Como um aspecto daquilo que antigamente se chamava de luta de classes. Neste caso, veremos, trata-se de um “jogo de volta” do capital, uma revanche contra as conquistas que movimentos sindicais e populares tinham obtido no espaço dos estados nacionais, através de politicas públicas, taxação progressiva, regulamentações trabalhistas, ambientais, fitossanitárias e assim por diante. Desse modo, o paraíso fiscal é, sim, “o sistema” – o modo como este garante sua reprodução em escala ampliada. Este é o fio que pretendemos explorar. Não perca. Nas telas, nas próximas semanas.
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