sábado, 24 de março de 2018

Marielle resistirá à onda de fake news?

Por Tatiana Merlino, na revista CartaCapital:

A comoção causada pela morte de Marielle Franco e de seu motorista Anderson Pedro Gomes levou milhares de brasileiros às ruas, em atos massivos e espontâneos no Brasil e protestos fora do País. No mundo digital, o alcance do episódio também foi enorme e surpreendeu, inclusive, quem atua na área.

Para se ter uma ideia, até as 15 horas da sexta-feira 16, dois dias após o assassinato, 3,6 milhões de tuítes haviam sido disparados, de acordo com levantamento do professor Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos de Internet e Cultura, o Labic, da Universidade Federal do Espírito Santo. “Nunca vi nada igual. Foi uma repercussão altíssima, que não para de crescer, inclusive internacionalmente. A Marielle virou uma espécie de ícone da população favelada no Brasil.”
Desde 2012, a equipe do laboratório analisa dados de eventos político digitais e o caso da vereadora do PSOL, alvejada por quatro tiros no Centro do Rio de Janeiro, é o de maior repercussão desde que o trabalho foi iniciado.

Se às ruas compareceram milhares de cidadãos “comuns”, além de militantes de direitos humanos, partidos e organizações, as redes sociais deram, igualmente, projeção à imagem de Marielle como figura que encarna a renovação política, explica Malini. “Grupos, organizações, somados a artistas e celebridades, fizeram com que a movimentação fosse intensa, gerando alto impacto.”

Nas plataformas, diz, “também vimos a emergência de novos atores, mediados não por fatores políticos tradicionais”. O tuíte mais compartilhado após o assassinato da vereadora partiu do perfil de @badcat, uma jovem de 17 anos, negra e militante. “O caso Marielle é um sintoma de que há forte resistência, de um caso que extrapola quem tradicionalmente atua em campos políticos.”

Contra ataque
Se a propagação da imagem de Marielle como liderança crítica às forças de segurança foi enorme, o contra-ataque também foi intenso, numa tentativa de desqualificar a trajetória militante da vereadora morta. Desde que descobriram o valor das redes sociais como instrumento da disputa política, por volta de 2013, os reacionários raramente haviam sofrido uma derrota tão fragorosa na batalha da opinião. Foi uma espécie de 7 a 1 a favor da solidariedade.

Logo no dia seguinte ao assassinato começaram a circular pelo WhatsApp áudios e fotos falsos que tentavam associar a vereadora ao crime organizado. Segundo essas fake news, Marielle teria sido casada com o traficante Marcinho VP. Na sexta-feira 16, o deputado demista Alberto Fraga, expoente da bancada da bala, deu vazão às mentiras. Em sua conta no Twitter, escreveu que a parlamentar era usuária de drogas, ex-esposa de Marcinho VP e eleita pelo Comando Vermelho.

A desembargadora Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, endossou a mentira, que tem um histórico de ofensas a minorias e a “comunistas”, embarcou. A magistrada anotou que Marielle estava “engajada com bandidos” e repetiu a versão de que ela teria sido eleita pelo Comando Vermelho.

Além disso, chamou-a de “cadáver comum”. Após reação das redes, o deputado apagou a postagem. Diante da reação, tentou se justificar em mensagens posteriores, até se ver obrigada a apagar seus perfis no Facebook e no Twitter. Não foi de grande valia. Alvo de representações do PSOL, do PT e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, a desembargadora será investigada pelo Conselho Nacional de Justiça.

O histórico de difamações de Castro Neves depõe contra a sua defesa. Em 2015, descobriram advogados que se voluntariaram para rastrear os discursos de ódio dirigidos a Marielle, a juíza atacou o deputado federal Jean Wyllys, militante gay. Escreveu a desembargadora: “Eu, particularmente, sou a favor de um paredão profilático para determinados entes.... O Jean Willlis (sic), por exemplo, embora não valha a bala que o mate e o pano que limpe a lambança, não escaparia do paredão”.

Um seguidor da magistrada acrescentou: “Quanto ao paredão, de costas, ele adoraria”... Castro Neves replicou: “Tenho dúvidas... o projétil é fininho”. As representações no CNJ questionam a imparcialidade e a sanidade da desembargadora para ocupar o cargo público. Fraga também se viu forçado a admitir que distribuiu conteúdo mentiroso.

Embora não seja exatamente um intelectual nem se destaque pelo uso correto da língua, o pastor Marco Feliciano achou engraçado fazer uma piada em entrevista a uma rádio concedida no calor da comoção pela morte da Marielle: “O cérebro do esquerdista é do tamanho de uma ervilha. Há pouco tempo fiquei sabendo que deram um tiro num esquerdista no Rio de Janeiro e levou uma semana pra morrer porque a bala não achava o cérebro”.

Anielle Silva, irmã da vereadora, revolta-se com os ataques: “Esperava um pouco mais de respeito com a nossa dor, achei que não fossem começar com essa onda tão rápido. Mas já que começou, vou até o fim para responder. E provar que é mentira”.

Reportagens caça-cliques
Não foram só as redes sociais que propagaram mentiras. Vários meios de comunicação repercutiram as declarações de Fraga e Castro Neves sem esclarecer sua origem falsa. “Ao assumir essas notícias como verdadeiras, se impulsionou a boataria, aquilo que estava restrito a um nicho que consome informações ultraconservadoras. Isso leva à ideia de que nosso problema não são apenas as fake news. As reportagens caça-cliques também são um grande problema, pois capazes de irradiar mais intensamente do que as notícias falsas”, ressalta Malini. Ainda assim, o pesquisador aponta a derrota dos boatos nesse episódio. “Os conteúdos que prevalecem são os de luta, questionadores. Tanto que a notícia continua a irradiar no mundo inteiro.”

O assassinato gerou uma comoção internacional. The Washington Post chamou de “símbolo global”. Passeatas em Londres, Paris, Munique, Estocolmo, Lisboa e Nova York pediram justiça. Celebridades como a atriz Viola Davis e a cantora Katy Perry se manifestaram. O papa Francisco ligou para a mãe de Marielle.

“As fake news não pegaram. Os progressistas levam vantagem em relação aos conservadores perante a opinião pública. O que tem prevalecido é a imagem de uma pessoa que faz a diferença, de esquerda, gay”, acredita João Feres, professor de Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Para Esther Solano, professora e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo, está claro que a repercussão nas redes é muito mais pró-Marielle, com número maior de mensagens de luto e apoio do que de mensagens contrárias. Ela chama atenção para o fato de que as redes sociais não refletem a sociedade como um todo.

“A rede social é usada como meio de formação e informação política por uma camada específica da sociedade, mais urbana, jovem, branca. Tem uma camada mais empobrecida, mais rural, mais velha que não está representada”. Ou seja, embora o conteúdo de apoio, progressista, prevaleça nas redes, “isso não indica que as pautas offline, na vida fora das redes, não tenham sido mais conservadoras.”

Solano acredita, porém, ser importante tomar cuidado, pois se a retórica de Michel Temer em defesa do aumento do punitivismo ganhar espaço, o cenário pode mudar. A morte de Marielle, diz, poderia reanimar o discurso a favor do endurecimento de penas e do aumento da militarização da segurança pública. “Sustenta-se que qualquer assassinato é uma ofensa à democracia, mas aproveitando o episódio para reivindicar a intervenção como necessária.”

No chamado campo progressista, o problema, acredita a pesquisadora, é a carência de propostas concretas sobre segurança. “A retórica é muito mais no campo das ideias, muito abstrata, sem coisas muito programáticas.”

Para ela, politicamente, as mobilizações são muito importantes, “mas falta canalizar para o plano político uma proposta programática para a segurança pública. Senão, corre-se o risco de não se aproveitar a indignação coletiva”.

Uma possível reconfiguração política do campo reacionário pós-morte de Marielle Franco ainda não está definida, acredita o professor de Ciência Política da Universidade de Brasília, Luis Felipe Miguel. “Estão avaliando estratégias”.

O silêncio do presidenciável Jair Bolsonaro, acredita, “é muito significativo”, pois exemplifica o dilema do campo conservador, dividido entre desqualificar Marielle e as bandeiras que ela defendia, como fez o deputado Alberto Fraga, e a ressignificação da vida da vereadora de forma a colocá-la num lugar contrário ao que ela defendia, como pretende fazer a Rede Globo, avalia. Ou seja, “transformá-la numa vítima da violência urbana, como justificativa a mais para a intervenção no Rio”. A postura que vai predominar, explica Miguel, “dependerá da capacidade do campo popular de manter ou não um grau de mobilização”.

Na terça-feira 20, Michel Temer afirmou que a intervenção federal no Rio de Janeiro receberá 1 bilhão de reais em recursos adicionais. Os militares acham pouco. De acordo com o comando do Exército, seriam necessários ao menos 3 bilhões de reais para dar conta do trabalho.

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