Por Thomas Bustamante, no site Justificando:
Há quem diga, mesmo ciente da fragilidade da acusação que motivou a interrupção precoce do mandato da presidenta, que o seu impeachment foi legítimo ainda que não estivesse comprovada a prática de crime de responsabilidade. Argumenta-se que “não há golpe” porque o impeachment seguiu todos os trâmites processuais necessários, com ampla oportunidade de defesa, produção de provas e publicidade dos atos processuais, e que “o próprio Supremo Tribunal Federal atestou a legitimidade do impeachment quando reconheceu que ele carece de legitimidade para revisão judicial deste ato administrativo”.
Esse argumento, no entanto, está baseado em uma evidente falácia. O que o Supremo Tribunal Federal decidiu – e vem decidindo ao longo de toda a sua história – é que ele carece de competência para realizar um juízo de mérito sobre a existência do crime de responsabilidade, é dizer, não pode anular um processo de impeachment senão para corrigir um vício procedimental. Sustentar que este seria um argumento em favor da legitimidade do impeachment é simplesmente um erro categorial; é confundir um juízo de mérito com um juízo de competência. Quando o tribunal reconhece que carece de competência para anular um ato administrativo ou um julgamento político, obviamente não está afirmando a legitimidade deste ato, mas apenas que esta matéria já foi decidida em última instância, e não pode ser submetida a qualquer forma de reexame judicial.
O que define um golpe de estado é a deposição de um governo legítimo sem causa jurídica suficiente para tal julgamento político, e não a ausência de um remédio jurídico disponível para reverter esse tipo de decisão.
O risco de um impeachment sem crime de responsabilidade é o risco da instabilidade institucional. É a formação de uma cultura política que substitui o ideal de submissão ao direito e de fidelidade à lei – que constitui o núcleo duro do princípio do “estado de direito” – por um voluntarismo que não respeita os obstáculos que a moralidade e as regras democráticas impõem ao poder decisório das maiorias parlamentares. A regra de ouro de todo sistema democrático consiste na capacidade de aceitar derrotas e desfrutar respeitosamente de vitórias políticas. É preciso saber vencer e perder na democracia. É preciso saber se resignar com a vontade da maioria e aguardar a sua vez, quando vencido em um processo deliberativo. E é preciso, igualmente, não transformar suas vitórias circunstanciais num poder arbitrário; não transformar a mera potência fática de se sobrepor aos direitos de seu adversário num justo título para fazê-lo quando houver certeza de ausência de punição.
O risco do processo de impeachment é o risco de uma constante instabilidade, o risco de surgimento de uma incapacidade de reconhecer derrotas eleitorais e de respeitar os mandatos populares sempre que houver certeza de ausência de anulação pelo Judiciário. É o exercício da política sem responsabilidade política. Não faltam exemplos latino-americanos para tal tipo de descontrole democrático. No Equador, por exemplo, durante mais de 10 anos (1996 a 2007) nenhum presidente conseguiu completar o seu mandato, e três presidentes foram destituídos sem qualquer fundamento jurídico ou justificativa moral.
O que vemos no governo de Minas Gerais é reflexo de um novo tipo de prática institucional, que no chavão futebolístico chamamos de “cultura do tapetão”. Dois anos depois do impeachment de Dilma Rousseff, os mesmos aliados que se juntaram para derrubá-la no plano nacional se articulam para derrubar Pimentel no âmbito do governo estadual.
O que observamos agora é novamente a mesma aliança, com o mesmo personagem principal, que entrará para a história como o principal responsável pelo impeachment de Dilma, ao produzir em seu Relatório os fundamentos da farsa jurídica que deu base à decisão do Senado Federal, e ao se beneficiar diretamente com a inviabilização da candidatura de Pimentel. Num contexto em que o governo do Estado de Minas Gerais encabeça um movimento nacional para responsabilizar a União por uma série de apropriações indébitas de recursos estaduais, como as denominadas perdas da “Lei Kandir”, que foram recentemente reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal e já ultrapassam o montante de R$ 150 Bilhões, ou a apropriação de receitas estaduais decorrentes da desvinculação das receitas da DRU, que invadem a competência de impostos estaduais e causaram prejuízos superiores a R$ 20 Bilhões aos cofres estaduais, o PMDB mineiro parece ter recebido uma ordem de cima para repetir a dobradinha PMDB-PSDB e utilizar novamente o artifício do impeachment para inviabilizar uma decisão eleitoral.
O que torna odiosa a prática do impeachment não é apenas a hipocrisia da retórica política e a desfaçatez das falácias que povoam as mentes férteis de juristas venais e autoritários, mas a convicção despudorada de que política não se faz nas urnas, e de que a traição e a deslealdade são um capital político que pode ser legitimamente empregado para se manter no poder. Não se trata apenas de um golpe no estado de direito e na democracia, mas uma desconstituição da própria ideia de que as decisões legislativas devem se submeter ao direito e à democracia. Eis aí uma pequena amostra de quão baixa a disputa pelo poder consegue chegar.
* Thomas Bustamante é Professor de Filosofia do Direito da UFMG.
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