Por Vinícius Mansur, no jornal Brasil de Fato:
A vida dos povos indígenas sofreu importantes impactos nesses dois anos do governo golpista de Michel Temer. Se mesmo os períodos de maior estabilidade democrática foram marcados por muita resistência dos índios, a longa lista de retrocessos já promovidos pelas forças que levaram e sustentam Temer no poder é interpretada por lideranças indígenas e especialistas como uma verdadeira declaração de guerra contra essa população.
“A pauta indígena já vinha sendo prejudicada por essa sanha desenvolvimentista que assolou o Brasil nos últimos 15 anos. Com o golpe, essa situação se cristalizou como uma ofensa declarada e uma total declaração de guerra contra o modo de vida dos índios. E os povos indígenas passaram a ficar na linha dos inimigos desse governo. Foram jogados no lugar de inimigos”, analisa o líder indígena Ailton Krenak.
O assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Luiz Eloy Terena, destaca que o retrocesso no governo Temer é agressivo ao ponto de entregar para a bancada ruralista, que já domina as verbas bilionárias das políticas e órgãos públicos voltados ao agronegócio, o controle da Fundação Nacional do Índio (Funai).
“Nós estamos vivendo um tempo em que a presidência do órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, a quem compete a defesa dos direitos indígenas, é indicada pela bancada ruralista. Então, pra você ter a noção de como isso é grave. Como é que essas ameaças não são mais ameaças, são violações a todo momento que está acontecendo contra os povos indígenas”, criticou.
Retrocessos na Funai
Em fevereiro de 2017, Temer nomeia o ruralista e relator da PEC 215 Osmar Serraglio para comandar o Ministério da Justiça, pasta a qual a Funai é subordinada. Em maio, Serraglio designa o general Franklimberg Freitas como presidente da fundação e, pela primeira vez desde o fim da ditadura militar de 1964 que massacrou diversos povos indígenas, um militar voltou ao comando do órgão. Ironicamente, uma reportagem do Estado de São Paulo revelou que a própria bancada ruralista pediu e conseguiu a exoneração de Freitas essa semana, alegando que a Funai não tem colaborado com o setor.
Em paralelo, a Funai também sofre com a falta de verbas, como mostra o gráfico do Inesc, abaixo. Apesar de o orçamento ter aumentado nos últimos anos, a previsão para 2018 ainda está entre as mais baixas dos últimos 12 anos e é pouco expressiva diante das demandas acumuladas em todo o território nacional. Somente em 2017, a Funai perdeu quase 20% de seu corpo técnico.
Retrocessos nas demarcações de terras
Todos os processos de demarcação das terras indígenas estão parados desde que Temer assinou o Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), publicado em 20 de julho de 2017. Menos de duas semanas depois, a Câmara dos Deputados votou e livrou Temer de inquérito por corrupção passiva apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). O movimento indigenista denuncia que a assinatura do Parecer foi uma das barganhas que a bancada ruralista obteve para poupar o presidente da investigação.
O secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Gilberto Vieira, explica que o parecer da AGU acolhe toda a formulação jurídica da tese do Marco Temporal que vem sendo defendida pelos ruralistas desde 2009 (quando o STF julgou o caso Raposa Serra do Sol), e que pretende que só sejam demarcadas novas terras indígenas caso estas estejam ocupadas pelos grupos que as reivindicam na data da promulgação da Constituição de 1988.
“Esse parecer ele praticamente inviabiliza e paralisa todos os processos de demarcação, porque os órgãos públicos da União teriam que seguir esse parecer, que é um parecer inconstitucional segundo a PGR já sinalizou. Ou seja, o parecer pinçou algumas decisões do Supremo. Em algumas decisões mais atuais o Supremo sinaliza para o reconhecimento do direito desses povos”, disse Vieira.
Eloy Terena afirma que o parecer é tão perverso que, ao atingir todas as esferas do governo federal, ele também restringe o direito de defesa dos povos indígenas.
“Quem faz a defesa das terras indígenas no Judiciário é justamente o advogado da União, porque terra indígena é bem da União, ele tem que defender ela, e os procuradores federais, procuradores da Funai, enfim. Com o advento desse parecer, você impede que esses procuradores e AGUs atuem na defesa. Então, o que está acontecendo é que muitas comunidades que tem os seus processos lesados estão tendo uma defesa precária, quando não estão tendo defesa alguma”, criticou.
Retrocessos em terras já demarcadas
Além de paralisar os processos de demarcação em curso, o governo Temer também já cancelou a Terra Indígena (TI) Jaraguá, em São Paulo (SP), cuja portaria declaratória foi publicada em 2015. A medida foi tomada pelo ministro da Justiça Torquato Jardim em agosto de 2017.
Entretanto, as maiores ameaças para as terras já demarcadas tem vindo do assédio do agronegócio, de madeireiras e do garimpo. Esta semana, a liderança indígena Adriano Karipuna foi até Nova Iorque denunciar este processo na 17ª Sessão do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas das Nações Unidas. Adriano afirmou que a TI Karipuna, em Rondônia, vem sendo amplamente loteada e vendida desde 2015.
Para agravar o quadro, o governo estuda legalizar o arrendamento das terras indígenas. Em novembro do ano passado, o ministro da Justiça disse, em entrevista ao jornalista Josias de Souza, que Temer enviaria uma proposta ao Congresso, fato ainda não consumado. O ministro afirmou que há o “índio-empresário” que aceita a ideia do arrendamento e que a proposta do governo pretende apenas regular o que “já acontece”. O parágrafo 2º do artigo 231 da Constituição brasileira afirma expressamente que as TIs são de usufruto exclusivo dos índios.
Para o professor de Descolonização do Conhecimento, Sociedade e Ambiente na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Felipe Milanez, o governo Temer contribuiu indiretamente para o aumento da pressão sobre as terras indígenas de duas formas. De um lado, o cheque em branco dado aos ruralistas e a apologia da privatização que impregna a atuação do governo fomentam o assédio do grande capital sobre todos os recursos naturais, alimentando uma expectativa de que, a qualquer momento, poderão estar liberados para o mercado. Por outro lado, a falta de políticas sociais e o desemprego, que características importantes do governo golpista, empurram trabalhadores para zonas de conflito.
“O aumento da pobreza na Amazônia e em todo o Brasil (com Temer tendo acabado com a reforma agrária e sem nenhum trabalho na construção civil), faz com que todas aquelas pessoas que estavam procurando emprego em grandes obras vão procurar trabalho aonde? Em madeira ilegal, garimpo. Cresceu muito o garimpo ilegal na Amazônia por conta da valorização do ouro e por conta da única oportunidade de trabalho que essa população tem”, explica Milanez.
Os dados sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) demonstram uma escalada, quase ininterrupta, de conflitos envolvendo indígenas a partir de 2010, quando foram registradas 28 ocorrências. Já em 2016 constam 152 conflitos, um salto de mais de 440%. Os dados completos de 2017 ainda não foram divulgados pela entidade.
Retrocessos culturais
O documentário Ex-Pajé, dirigido por Luiz Bolognesi e premiado este ano no Festival de Berlim, retrata a conversão religiosa de um líder espiritual Suruí em Rondônia, chamando atenção para o processo de catequização indígena que setores evangélicos vem empreendendo no século XXI. Em Brasília, a bancada evangélica, liderada pelo Partido Social Cristão (PSC), também tem demonstrado interesse pelo segmento e conquistado espaço na Funai. Antes do general Freitas, a presidência do órgão pertencia ao pastor Antônio Toninho Costa, indicado pelo partido.
Segundo Felipe Milanez, durante o governo Temer, o PSC tem emplacado sistematicamente suas indicações para diversos postos na Funai, em uma aliança com os ruralistas que ele considera extremamente perigosa. “Eles negociam quem fica com a alma e quem fica com a terra. Interessa para o ruralista atingir a alma, o espírito dos povos indígenas. O que significa atingir a sensação de pertencimento ao seu povo, a sua existência. Isso fomenta brigas, rachas internos. E isso ajuda a conquistar terras”, resumiu.
A vida dos povos indígenas sofreu importantes impactos nesses dois anos do governo golpista de Michel Temer. Se mesmo os períodos de maior estabilidade democrática foram marcados por muita resistência dos índios, a longa lista de retrocessos já promovidos pelas forças que levaram e sustentam Temer no poder é interpretada por lideranças indígenas e especialistas como uma verdadeira declaração de guerra contra essa população.
“A pauta indígena já vinha sendo prejudicada por essa sanha desenvolvimentista que assolou o Brasil nos últimos 15 anos. Com o golpe, essa situação se cristalizou como uma ofensa declarada e uma total declaração de guerra contra o modo de vida dos índios. E os povos indígenas passaram a ficar na linha dos inimigos desse governo. Foram jogados no lugar de inimigos”, analisa o líder indígena Ailton Krenak.
O assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Luiz Eloy Terena, destaca que o retrocesso no governo Temer é agressivo ao ponto de entregar para a bancada ruralista, que já domina as verbas bilionárias das políticas e órgãos públicos voltados ao agronegócio, o controle da Fundação Nacional do Índio (Funai).
“Nós estamos vivendo um tempo em que a presidência do órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, a quem compete a defesa dos direitos indígenas, é indicada pela bancada ruralista. Então, pra você ter a noção de como isso é grave. Como é que essas ameaças não são mais ameaças, são violações a todo momento que está acontecendo contra os povos indígenas”, criticou.
Retrocessos na Funai
Em fevereiro de 2017, Temer nomeia o ruralista e relator da PEC 215 Osmar Serraglio para comandar o Ministério da Justiça, pasta a qual a Funai é subordinada. Em maio, Serraglio designa o general Franklimberg Freitas como presidente da fundação e, pela primeira vez desde o fim da ditadura militar de 1964 que massacrou diversos povos indígenas, um militar voltou ao comando do órgão. Ironicamente, uma reportagem do Estado de São Paulo revelou que a própria bancada ruralista pediu e conseguiu a exoneração de Freitas essa semana, alegando que a Funai não tem colaborado com o setor.
Em paralelo, a Funai também sofre com a falta de verbas, como mostra o gráfico do Inesc, abaixo. Apesar de o orçamento ter aumentado nos últimos anos, a previsão para 2018 ainda está entre as mais baixas dos últimos 12 anos e é pouco expressiva diante das demandas acumuladas em todo o território nacional. Somente em 2017, a Funai perdeu quase 20% de seu corpo técnico.
Retrocessos nas demarcações de terras
Todos os processos de demarcação das terras indígenas estão parados desde que Temer assinou o Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), publicado em 20 de julho de 2017. Menos de duas semanas depois, a Câmara dos Deputados votou e livrou Temer de inquérito por corrupção passiva apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). O movimento indigenista denuncia que a assinatura do Parecer foi uma das barganhas que a bancada ruralista obteve para poupar o presidente da investigação.
O secretário adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Gilberto Vieira, explica que o parecer da AGU acolhe toda a formulação jurídica da tese do Marco Temporal que vem sendo defendida pelos ruralistas desde 2009 (quando o STF julgou o caso Raposa Serra do Sol), e que pretende que só sejam demarcadas novas terras indígenas caso estas estejam ocupadas pelos grupos que as reivindicam na data da promulgação da Constituição de 1988.
“Esse parecer ele praticamente inviabiliza e paralisa todos os processos de demarcação, porque os órgãos públicos da União teriam que seguir esse parecer, que é um parecer inconstitucional segundo a PGR já sinalizou. Ou seja, o parecer pinçou algumas decisões do Supremo. Em algumas decisões mais atuais o Supremo sinaliza para o reconhecimento do direito desses povos”, disse Vieira.
Eloy Terena afirma que o parecer é tão perverso que, ao atingir todas as esferas do governo federal, ele também restringe o direito de defesa dos povos indígenas.
“Quem faz a defesa das terras indígenas no Judiciário é justamente o advogado da União, porque terra indígena é bem da União, ele tem que defender ela, e os procuradores federais, procuradores da Funai, enfim. Com o advento desse parecer, você impede que esses procuradores e AGUs atuem na defesa. Então, o que está acontecendo é que muitas comunidades que tem os seus processos lesados estão tendo uma defesa precária, quando não estão tendo defesa alguma”, criticou.
Retrocessos em terras já demarcadas
Além de paralisar os processos de demarcação em curso, o governo Temer também já cancelou a Terra Indígena (TI) Jaraguá, em São Paulo (SP), cuja portaria declaratória foi publicada em 2015. A medida foi tomada pelo ministro da Justiça Torquato Jardim em agosto de 2017.
Entretanto, as maiores ameaças para as terras já demarcadas tem vindo do assédio do agronegócio, de madeireiras e do garimpo. Esta semana, a liderança indígena Adriano Karipuna foi até Nova Iorque denunciar este processo na 17ª Sessão do Fórum Permanente sobre Assuntos Indígenas das Nações Unidas. Adriano afirmou que a TI Karipuna, em Rondônia, vem sendo amplamente loteada e vendida desde 2015.
Para agravar o quadro, o governo estuda legalizar o arrendamento das terras indígenas. Em novembro do ano passado, o ministro da Justiça disse, em entrevista ao jornalista Josias de Souza, que Temer enviaria uma proposta ao Congresso, fato ainda não consumado. O ministro afirmou que há o “índio-empresário” que aceita a ideia do arrendamento e que a proposta do governo pretende apenas regular o que “já acontece”. O parágrafo 2º do artigo 231 da Constituição brasileira afirma expressamente que as TIs são de usufruto exclusivo dos índios.
Para o professor de Descolonização do Conhecimento, Sociedade e Ambiente na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Felipe Milanez, o governo Temer contribuiu indiretamente para o aumento da pressão sobre as terras indígenas de duas formas. De um lado, o cheque em branco dado aos ruralistas e a apologia da privatização que impregna a atuação do governo fomentam o assédio do grande capital sobre todos os recursos naturais, alimentando uma expectativa de que, a qualquer momento, poderão estar liberados para o mercado. Por outro lado, a falta de políticas sociais e o desemprego, que características importantes do governo golpista, empurram trabalhadores para zonas de conflito.
“O aumento da pobreza na Amazônia e em todo o Brasil (com Temer tendo acabado com a reforma agrária e sem nenhum trabalho na construção civil), faz com que todas aquelas pessoas que estavam procurando emprego em grandes obras vão procurar trabalho aonde? Em madeira ilegal, garimpo. Cresceu muito o garimpo ilegal na Amazônia por conta da valorização do ouro e por conta da única oportunidade de trabalho que essa população tem”, explica Milanez.
Os dados sistematizados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) demonstram uma escalada, quase ininterrupta, de conflitos envolvendo indígenas a partir de 2010, quando foram registradas 28 ocorrências. Já em 2016 constam 152 conflitos, um salto de mais de 440%. Os dados completos de 2017 ainda não foram divulgados pela entidade.
Retrocessos culturais
O documentário Ex-Pajé, dirigido por Luiz Bolognesi e premiado este ano no Festival de Berlim, retrata a conversão religiosa de um líder espiritual Suruí em Rondônia, chamando atenção para o processo de catequização indígena que setores evangélicos vem empreendendo no século XXI. Em Brasília, a bancada evangélica, liderada pelo Partido Social Cristão (PSC), também tem demonstrado interesse pelo segmento e conquistado espaço na Funai. Antes do general Freitas, a presidência do órgão pertencia ao pastor Antônio Toninho Costa, indicado pelo partido.
Segundo Felipe Milanez, durante o governo Temer, o PSC tem emplacado sistematicamente suas indicações para diversos postos na Funai, em uma aliança com os ruralistas que ele considera extremamente perigosa. “Eles negociam quem fica com a alma e quem fica com a terra. Interessa para o ruralista atingir a alma, o espírito dos povos indígenas. O que significa atingir a sensação de pertencimento ao seu povo, a sua existência. Isso fomenta brigas, rachas internos. E isso ajuda a conquistar terras”, resumiu.
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