domingo, 3 de junho de 2018

Boff: “Devemos manter a indignação”

Por Ivan Longo, na revista Fórum:

Poucos episódios ligados à política nacional brasileira deste ano foram tão tristes como o dia em que o teólogo Leonardo Boff, aos seus 79 anos, foi impedido de visitar o ex-presidente Lula na superintendência da Polícia Federal em Curitiba, onde está preso há quase dois meses.

A imagem de Leonard Boff sentado à sombra da cabine policial, aguardando para visitar seu amigo há mais de 30 anos, rodou o mundo e ajudou a denunciar uma Justiça arbitrária e insensível.

“Negaram a minha humanidade e a do ex-presidente Lula”, disse Boff, aos prantos, na ocasião.

Semanas depois, sob o preceito das Regras de Mandela, o teólogo finamente conseguiu visitar o seu velho amigo. “Nos abraçamos e choramos”, disse Boff.

Nesta semana de feriado de Corpus Christi, tão representativo aos cristãos e católicos no Brasil, Fórum procurou Leonardo Boff, que é uma das maiores referências no que tange à teologia e à Teologia da Libertação para analisar o momento político sob sua visão humanista e espiritual. Ex-sacerdote franciscano, Boff falou sobre religião, política e, claro, sobre o ex-presidente Lula.

“Não se resigna. Mesmo preso, é um homem livre”, pontuou.

A entrevista começa com Leonardo Boff analisando as recentes declarações do Papa Francisco sobre golpes de Estado. Para o teólogo, não resta dúvidas: o pontífice mandou, sim, um recado direto ao Brasil.

“O Papa se interessa muito pelo Brasil e acompanha a nossa tragédia. Eu creio, sim, que o Papa Francisco pensou no Brasil. Eu mesmo entrei em contato com um jornalista, expert em Vaticano e muito próximo ao Papa, Raffaele Luise, pedindo que de alguma forma [o pontífice] desse a entender a situação escabrosa do país. Quem entende o linguajar dos Papas não tem dúvidas de que mandou um recado aos golpistas”, revelou.

Quando convidado a mandar uma mensagem àqueles que sentem-se desiludidos com a situação do Brasil, Boff não tergiversou. “Hoje devemos manter a indignação contra os malfeitos que o presidente ilegítimo e usurpador Michel Temer fez contra o povo, especialmente contra os pobres e os aposentados, e coragem para nos organizarmos para superar a situação, reelegermos Lula e dar continuidade à revolução pacífica que iniciou, mudando o perfil do Brasil face a nós mesmos e face ao mundo. Portanto, coragem”.

Confira.

Leonardo, recentemente o Papa Francisco fez uma fala sobre como a mídia ajuda a manchar a imagem de lideranças e, assim, acontecem os golpes de estado. Muitos interpretaram essa fala como um recado ao Brasil. O que acha disso? Acredita que ele tem consciência da atual situação política brasileira?
O Papa se interessa muito pelo Brasil e acompanha a nossa tragédia. Na época do impeachment ele mandou uma carta pessoal à Dilma. Ela não quis publicá-la por achar que era algo privado quando, no meu entender, era altamente político, pois todos admiram este Papa.

Eu creio, sim, que o Papa Francisco pensou no Brasil. Eu mesmo entrei em contato com um jornalista, expert em Vaticano e muito próximo ao Papa, Raffaele Luise, pedindo que de alguma forma [o pontífice] desse a entender a situação escabrosa do país. Quem entende o linguajar dos Papas não tem dúvidas de que mandou um recado aos golpistas.

Como você tem avaliado, em linhas gerais, o papado de Francisco? Acredita que ocorra uma mudança, de fato, com relação aos velhos dogmas da igreja católica ou as declarações de Francisco fazem parte apenas de uma estratégia para “melhorar” a imagem da Igreja?
Esse Papa não tem nada do figurino dos Papas da tradição. Ele inovou em todos os sentidos. Antes de tudo, porque veio de fora da velha cristandade europeia em franca decadência. Basta dizer que na Europa vivem apenas 25% dos católicos do mundo, enquanto na América são 62% e os restantes na África e na Ásia. Esse Papa disse e repetiu muitas vezes que respeita os dogmas. Mas isso não é importante. Mais importante é apresentar um Cristo que ama a todos, também aos homoafetivos, e o que vale é o encontro com as pessoas, levando-lhes esperança e o fato de a misericórdia de Deus não ter limites.

Portanto, podemos sempre contar com Deus, viver sem medos, pois não existe condenação eterna, como repetiu algumas vezes. O curioso é que este Papa, como nenhum antes na histórias dos pontífices, tem atacado diretamente o capitalismo como um sistema anti-vida e assassino dos pobres. Ele tem lado, ao lado das vítimas deste sistema inimigo da vida da natureza e insensível face ao sofrimento da maioria da humanidade. Ele vem do caldo cultural da teologia da libertação na versão argentina que é libertação do povo oprimido e da cultura silenciada. Ele introduziu este discurso no seio do próprio Vaticano e o tornou oficial.

A Teologia da Libertação, junto aos trabalhos de base da igreja católica, ajudaram a consolidar o próprio PT e a esquerda brasileira após a redemocratização. Após o golpe e diante da conjuntura política no Brasil, aumento das desigualdades e perseguição dos movimentos sociais, acredita que a Igreja Católica possa voltar a ter um papel relevante no Brasil na construção de um novo caminho para as esquerdas e as camadas populares? Se sim, de que maneira?
Sou da opinião que este Papa está criando uma nova genealogia de Papas que virão das partes mais numerosas e mais criativas da atual Igreja, quer dizer, do Grande Sul, do que chamávamos do Terceiro e Quarto Mundo. Ele tem consolidado um tipo de Igreja que está à altura dos problemas mundiais, especialmente a grande injustiça social mundial, a questão das ameaças que pesam sobre o planeta Terra. Ele está desocidentalizando a Igreja e também despatriarcalizando os estilos palacianos que a Igreja ainda apresenta. Ele despojou-se de tudo. Não foi viver no palácio pontifício, mas numa casa de hóspede. Ainda come com todos e diz com humor: “assim é mais difícil que me envenenem”.

Quanto à Igreja da base, vale dizer as Comunidades Eclesiais de Base, os movimentos sociais nascidos no interior dessa Igreja como o MST, o CIMI (Centro Indigenista Missionário), que cuida dos problemas indígenas, a CPT (Comissão da Pastoral da Terra), que cuida das pastorais sociais, dos afrodescendentes, das mulheres, da infância e outros, todos esses movimentos ajudaram na fundação do PT. Não é que eles entraram no PT. Eles constituíram células e grupos do partido. Portanto, ajudaram a fundar o PT.

A convicção era e continua sendo: as políticas sociais dos governos Lula-Dilma realizavam os ideais que amadureceram nas bases de justiça social e de participação popular. Em dialeto cristão se diz: essas políticas para os pobres mostram os bens do Reino de Deus que são feitos de justiça, de participação, de solidariedade e de amor efetivo, especialmente para os mais invisíveis. Lula sempre reconheceu a importância deste fato.

Qual a sua opinião sobre a indicação do ex-presidente Lula para o Prêmio Nobel da Paz? Que características ele carrega que o fazem merecedor do prêmio?
Eu creio e assim também o confirmou o prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, que Lula preenche todas as características para ganhar o prêmio Nobel da Paz. Principalmente pelas políticas sociais que permitiram que 36 milhões de pessoas saíssem da fome e da miséria e entrassem na sociedade organizada. E outros projetos que beneficiaram os mais vulneráveis. E, além disso, ele irrompe como uma liderança mundial única, já que vivemos num mundo sem grandes líderes que convoquem a humanidade para algo melhor do que agora temos, que é uma barbárie para as grandes maiorias do mundo. Mas por trás há sempre um jogo político, pois cada país tem os seus “heróis” que mereceriam esse título, o que duvido realmente.

O senhor foi o primeiro que conseguiu autorização para visitar o ex-presidente Lula na categoria de “assistência espiritual’, que agora acontece todas as segundas-feiras. Qual a importância deste tipo de visita?
Eu atendi a um pedido do próprio Lula, que é meu amigo já há mais de 30 anos. De tempos em tempos ele me chama junto com a minha companheira Márcia para um diálogo. Como não venho do campo político, nem sou membro do PT, ele tem muita confiança e gosta de ouvir opiniões de fora da política partidária. Eu fui junto com o portador do prêmio Nobel da Paz, o argentino Perez Esquivel. Segundo uma determinação da ONU, um portador deste título pode em qualquer país do mundo entrar nas prisões e visitar o lugares de conflito. É a chamada Lei Mandela. Argumentamos junto à juíza Carolina Lebbos, que é o braço direito de Sérgio Moro, mas ela não quis nem saber. Alegou que isso não vale para o Brasil, no maior desrespeito a um portador mundialmente conhecido que é Adolfo Perez Esquivel. Tivemos que ir embora. Somente depois que se completaram 30 dias na prisão que a autoritária juíza permitiu que eu fosse visitá-lo. Começamos por aquilo que a Constituição ou a Justiça Penal prevê: que o encarcerado possa receber assistência espiritual. Não havia mais como negá-lo.

Como o senhor se sentiu na primeira vez em que foi impedido de visitar o ex-presidente?
Eu fiquei penalizado pela injustiça que essa proibição significa. Como religioso e teólogo fui cumprir o preceito evangélico que diz “estive preso e vieste me visitar”. A foto minha sentado à sombra da cabine policial na entrada da Polícia Federal girou mundo. Dez minutos depois vinham mensagens de protesto de vários países da Europa e da América Latina. Muitos escreveram belos artigos sobre essa foto pois era altamente significativa.

Espiritualmente falando, como está ex-presidente Lula? Ele está esperançoso?
Encontrei o Lula surpreendente assim como o conhecemos. Nada desfigurado. Sorridente. Nos abraçamos e nos comovemos juntos. Eu era o primeiro, afora os filhos e os advogados, que ele encontrava. Ele sente a falta de contato com o povo. Mas se consola ao ouvir às oito horas da manhã o “Bom Dia Lula” e o “Boa Noite Lula” vindos do acampamento em frente ao edifício da polícia. E ele escuta perfeitamente. Isso o consola.

O maior consolo vem de dentro, pois diz que sua consciência não o acusa de nada. Não participou de nenhum roubo, não recebeu uma única propina. Chega a dizer: “se alguém disser que eu dei cinco centavos a alguém ou recebi cinco centavos de alguém é um mentiroso. Aprendi com a minha mãe Lindu ser sempre correto e nunca pegar nada dos outros”.

Espiritualmente, isso lhe dá tranquilidade. Mas revela muita indignação pela injustiça que lhe é feita. Ele fez um desafio e pediu que eu o dissesse publicamente: “Se o Moro apresentar uma única prova sobre a propriedade a mim atribuída do triplex quero ser condenado e preso”. Até hoje não apareceu nenhuma prova. Sente-se, com razão, vítima do ódio deste juiz, instruído nos Estados Unidos a praticar o lawfare, quer dizer, distorcer as leis e sua interpretação para condenar o acusado. Ninguém pode prender seus e os nossos sonhos. Mesmo preso é um homem livre. Nunca se resigna. Disse-me claramente: “não quero cai de pé. O que quero é não cair. E não vou cair como eles desejam”.

Que mensagem o senhor enviaria ao leitor da Fórum que está desiludido com o país e indignado com a situação do ex-presidente Lula?
A minha mensagem vem de Santo Agostinho, um dos maiores pensadores cristãos, nascido na Africa e bispo de Hipona, hoje Argélia, aí pelos anos 450 da atual era. Diz ele: “devemos manter a esperança que não pode morrer nunca”. “A esperança”, dizia mais, “tem duas belas irmãs: a indignação contra as coisas erradas que vemos e a coragem para superá-las”.

Hoje devemos manter a indignação contra os malfeitos que o presidente ilegítimo e usurpador Michel Temer fez contra o povo, especialmente contra os pobres e os aposentados, e coragem para nos organizarmos para superar a situação, reelegermos Lula e dar continuidade à revolução pacífica que iniciou, mudando o perfil do Brasil face a nós mesmos e face ao mundo. Portanto, coragem, coragem. Era o que o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns de São Paulo sempre repetia aos resistentes ao regime militar e aos que sofriam a violência do Estado terrorista.

Se Lula saísse da prisão e fosse presidente do Brasil novamente, o que o senhor lhe recomendaria repetir enquanto governante e o que o senhor lhe recomendaria evitar ou mudar?
Eu diria duas coisas e ele concordou dizendo: “Se for novamente Presidente, primeiro vou revogar as medidas antipopulares e antinacionais que os golpistas introduziram contra a própria Constituição”. Depois, isso ele o repetiu muitas vezes, iria radicalizar as política sociais unidas à uma consciência de cidadania e de participação. Em segundo lugar, eu diria que ele deveria manter permanente contato com o povo e os movimentos sociais para equilibrar as alianças que se vê obrigado a fazer no parlamento para poder governar. Ele não quer fazer o mesmo. Quer levar mais a fundo e radicalizar o combate à injustiça social e dar mais lugar os colocados injustamente à margem, especialmente os afrodescendentes face aos quais temos uma dívida até hoje nunca paga.

Como Leonardo Boff, em uma visão filosófica, definiria o Brasil de hoje?
Minha visão é mais de uma ecologia integral na linha do que diz o Papa Francisco na sua encíclica “como cuidar da Casa Comum”. Acredito que dentro de pouco tempo toda a economia deverá passar pela ecologia, vale dizer, pelos bens e serviços da natureza. Estes estão se esgotando mais e mais. A Terra entrou no vermelho, o assim chamado The Overshoot Day, o dia da ultrapassagem dos limites suportáveis para o equilíbrio da Terra. Este ano foi no dia 2 de maio. Até o final do ano iremos tirar à força da dispensa da Terra para podermos viver e sobreviver e manter, de forma irracional, o consumo das elites consumidoras.

Um projeto infinito de acumulação não pode ser suportado por um planeta finito. Ou mudamos de paradigma e de hábitos ou vamos ao encontro de um caminho sem retorno. Mas o Brasil, no contexto do mundo, tem tudo para ser a mesa posta para as fomes e sedes do mundo inteiro. Aqui está a maior biodiversidade. Aqui está a maior reserva de água doce do mundo, 13%. Aqui estão as maiores florestas úmidas que equilibram os climas da Terra. Aqui vive um povo inteligente, hospitaleiro que mostra, no meio do sofrimento, alegria de viver, que festeja seus carnavais e o seu futebol, com uma arte invejável, que elabora uma música apreciada e imitada pelo resto do mundo.

Como Darcy Ribeiro dizia: podemos ser a Roma tropical tardia, na província mais bela e ridente da Terra. Estimo que o futuro da humanidade e da vida poderá passar pelo Brasil. Não porque o queremos, mas porque Deus nos deu tanta riqueza, diversidade e originalidade que podemos contribuir e garantir o futuro da nossa civilização e da Casa Comum que é a Terra.

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