sábado, 11 de agosto de 2018

Nicarágua, democracia e dupla moral

Por Breno Altman, no site Opera Mundi:

A crise política nicaraguense já se estende por quatro meses. Manifestações, conflitos e violência ocupam o cenário desde que o presidente Daniel Ortega propôs uma reforma previdenciária desgostosa a empresários e trabalhadores. Nem sequer a imediata retirada dessa medida foi capaz de levar à pacificação.

A onda opositora, nascida de reivindicação concreta, se transformou em movimento insurrecional, cujo objetivo confesso é derrubar o governo. Os grupos que lideram essa escalada trancaram ruas, tomaram prédios públicos e armaram parte de seus apoiadores, respaldados tanto pelas frações mais conservadoras da comunidade internacional quanto por setores de esquerda.

Ainda que se comprometendo com a abertura de negociações, Ortega reagiu contra a desestabilização. Não convocou o exército, mas recorreu à ação policial. A militância sandinista se lançou no enfrentamento às forças adversárias, utilizando-se dos mesmos recursos empregados pelas patotas insurgentes.

Os protestos aparentemente declinaram, mas deixaram um rastro de sangue. A oposição fala em mais de 400 mortes. O governo reconhece metade desses óbitos, que incluem três dezenas de policiais e muitos ativistas das fileiras governistas.

No entanto, a conclusão serpenteando pelo mundo, impulsionada por meios de comunicação que jamais tiveram problemas para apoiar golpes e ditaduras, aponta para a falência da democracia na Nicarágua.

Acusa-se Daniel Ortega por afrontar o levante em curso. Mas não foi isso que fez o governo espanhol, de forma mais comedida, contra os independentistas catalães, cujos líderes foram presos e banidos? Quantos dos críticos do sandinismo chamaram de ditador o então primeiro-ministro Mariano Raroy?

O presidente da Nicarágua liderou uma revolução em 1979 e se retirou quando perdeu as eleições de 1990. Retornou pelo voto, no pleito de 2006, se reelegendo em 2011 e 2016, dessa última vez com mais de 70% dos votos. Seu partido tem ampla maioria parlamentar, mas outras sete agremiações também possuem representantes na Assembleia Nacional.

Nos Estados Unidos, por outro lado, Donald Trump virou presidente com uma votação popular inferior a de sua concorrente e o sistema legislativo norte-americano é um duopólio há décadas. Por que, então, o sandinismo teria se convertido em ditadura e a Casa Branca seria o templo da democracia?

Também acusa-se o dirigente nicaraguense pela aprovação da reeleição indefinida. O fato é que a personalização do poder afeta até os regimes parlamentaristas. E nem por isso escuta-se a alemã Angela Merckel, há catorze anos no comando, ser chamada de ditadora.

Atento à história golpista das elites latino-americanas, Ortega luta pela hegemonia em todas as instituições, incluindo o poder judiciário. Novamente não é muito diferente do que ocorre nos EUA. Nem em Israel, onde leis recentes impuseram regras teocráticas e racistas para garantir o predomínio sionista. Quantos qualificam de ditadura o regime de Netanyahu?

Não há dúvidas que Daniel Ortega cometeu erros gravíssimos, incluindo amplas concessões aos que hoje tentam tomba-lo, a muitos desapontando. Mas etiquetar seu governo como ditadura, para além de conflitar com a realidade, representa dupla moral a serviço de interesses seculares. Vale tudo, para as classes dominantes desse continente, quando se trata de combater até experiências políticas parcialmente fora do controle de suas mãos peludas.

* Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi. Este artigo foi originalmente publicado na Folha de S. Paulo, em 11 de agosto de 2018.

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