Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Os caminhos que levaram à indicação do diplomata Ernesto Araújo para comandar o Itamaraty a partir de 1 de janeiro produziram uma piada pronta. Do ponto de vista prático, lhe falta a indispensável experiência para a função: nunca chefiou uma embaixada ou qualquer outra representação equivalente do país no exterior. Do ponto de vista político, a situação é ainda mais grave.
Numa instituição nascida, criada e sustentada pelos brasileiros para defender os interesses da nação, as ideias de Ernesto Araújo traduzem uma postura irresponsável de subordinação absoluta ao governo do presidente norte-americano Donald Trump. No mais conhecido texto de sua autoria, "Trump e o Ocidente", o futuro ministro das Relações Exteriores, defende a reverência aos EUA num grau como nunca se viu antes.
Evitando qualquer distanciamento ou análise crítica - postura que é obrigação profissional de todo diplomata - a postura é de admiração e deslumbramento, numa nova versão do Ame-o ou Deixe-o do regime militar - dessa vez, o que se deve amar ou deixar é Trump e seu governo.
Num texto que ignora o pré-Sal, acordo Boeing-Embraer, energia nuclear e outros debates de um contencioso que é tema obrigatório da atividade diplomática recente e futura entre os dois países, o texto aceita a noção vulgar da cultura pós-moderna, pré ou pós política, como queira. Localiza a raiz dos problemas humanos deste início de século XXI num ponto distante das necessidades materiais de homens e mulheres. Para o novo chanceler, o problema central reside numa humanidade que se encontra "psiquicamente doente", "não tem ancestrais", "não tem heróis" e "não tem alma, apenas processos químicos correndo aleatoriamente entre seus neurônios." Neste universo, que obviamente pede um socorro imediato, Donald Trump é apresentado como a única chance de salvação. Assim, literalmente, de topete e tudo.
Na versão amistosa do novo chanceler, mais do que chefe da principal potência mundial, com uma atitude permanente de elevar a temperatura entre as nações, reforçar a exploração das populações pobres e produzir crescentes ameaças à paz e ao entendimento entre os países, o Salão Oval da Casa Branca funciona como um divã de psicanalista. Numa postura que justifica o reconhecido messianismo de Trump, ele define sua atuação presidencial como um esforço para "submeter o Ocidente a uma terapia de recuperação da personalidade perdida " na qual procura "o restabelecimento do contato com o próprio inconsciente".
Alguns parágrafos adiante, logo da psicanálise global e envolvido em nova elaboração, agora num tom mais para místico-filosófico, Ernesto Araújo refere-se a "um Deus por quem os ocidentais anseiam ou deveriam ansiar, o Deus de Trump". Para não deixar dúvidas no leitor, chega a sublinhar, extasiado com a própria descoberta: "quem imaginou que alguma vez leria estas palavras, 'o Deus de Trump? '".
Para além dessa enxurrada psicanalítica e mística, que parece saída da Superinteressante e da Planeta da década de 1970, a visão política do novo chanceler pertence a uma árvore genealógica fácil de identificar. Trata-se do pensamento ultra-conservador Samuel Huntington (1927-2008), um dos formuladores da ultra-direita norte-americana.
Cientista político, professor em Harvard e acima de tudo conselheiro de diversos governos republicanos, em 1996 Huntington publicou um artigo ( "Choque de Civilizações") que se tornaria referência do pensamento conservador, formulando argumentos e conceitos que teriam impacto reconhecido nos anos seguintes.
Ele pensava a reorganização do mundo após o fim da União Soviética, a desintegração do comunismo e o inevitável retorno da China e outros países à esfera do capitalismo. Havia um debate, naquela época. Outro pensador, Francis Ford Fukuyama, que também tinha formação conservadora, acreditava no Fim da História. Dizia que os valores da democracia e da iniciativa privada haviam vencido o grande conflito ideológico do século XX e que a humanidade iria ingressar num período de harmonia ideológica, quem sabe até de paz.
Huntington fez o debate a partir de uma visão contrária - e aqui reside seu extremismo, incorporado em versão pós-moderna por Ernesto Araújo.
Sustentava que uma nova guerra iria - e deveria - prosseguir, na forma de conflito de civilizações. Em sua visão, que traduzia o interesse norte-americano de expandir a própria supremacia nas novas circunstâncias, “o eixo central da política mundial no futuro tende a ser o conflito entre o Ocidente e o resto”. Falando de um conflito insuperável entre valores fundamentais – daí o termo choque de civilização – foi um dos primeiros a denunciar o “relativismo cultural” como prova de fraqueza num horizonte de ameaça e risco.
Em sua visão, um "absolutismo cultural" que não ousa dizer seu nome, a emergência dos povos distantes e emancipados torna-se um perigo permanente. Referindo-se a indianos, chineses, árabes e outros povos, Huntington afirma que os conflitos “entre as civilizações vão suplantar os conflitos de natureza ideológica” e, sem se dar ao trabalho de falar em Deus ou psicanálise, diz o que deve ser feito: “o Ocidente terá de manter o poderio econômico e militar necessário para proteger seus interesses diante dessas civilizações.”
Huntington era um intelectual ousado, envolvido até a medula com os interessas corporativos norte-americanos. Exibia um engajamento político tão escancarado que em 1987 não conseguiu tornar-se membro da Academia Nacional de Ciências dos EUA porque seu trabalho foi considerado "pseudo-científico" pela instituição. Mesmo assim, anos depois, ao desenhar o mundo da "Guerra de Civilizações", fez uma distinção clara ao dizer quem estava aonde.
Definiu como "Civilização Ocidental" uma região que incluía a Europa e a América do Norte. Traçou uma linha divisória ao sul dos EUA, onde se encontram Texas e na California. Dali para cima, ficava a Civilização Ocidental. Para baixo, começava outra cultura, que chamou de "Civilização Latino Americana". Ali se encontra o México, Venezuela e Colômbia, Argentina, Chile e Brasil, naturalmente.
A notícia surpreendente é esta. Contrariando o ponto essencial do artigo de Eugênio Araújo, que é colocar o Brasil no bloco de interesses comandado pelo Deus Trump - ele chega a elogiar o esforço do governo Temer para ingressar na OCDE - o criador do conceito de Choque de Civilizações disse que o destino dos sul-americanos se encontra em outro lugar. Falou em "Ocidente e o resto".
Essa a constatação é de grande utilidade para os brasileiros que já aprenderam a cultivar nossa diversidade, valorizam herança africana partilhada por 53% de nossa população, compreendem a riqueza cultural dos povos indígenas -- e agora serão confrontados com a diplomacia do Deus de Trump.
Alguma dúvida?
Os caminhos que levaram à indicação do diplomata Ernesto Araújo para comandar o Itamaraty a partir de 1 de janeiro produziram uma piada pronta. Do ponto de vista prático, lhe falta a indispensável experiência para a função: nunca chefiou uma embaixada ou qualquer outra representação equivalente do país no exterior. Do ponto de vista político, a situação é ainda mais grave.
Numa instituição nascida, criada e sustentada pelos brasileiros para defender os interesses da nação, as ideias de Ernesto Araújo traduzem uma postura irresponsável de subordinação absoluta ao governo do presidente norte-americano Donald Trump. No mais conhecido texto de sua autoria, "Trump e o Ocidente", o futuro ministro das Relações Exteriores, defende a reverência aos EUA num grau como nunca se viu antes.
Evitando qualquer distanciamento ou análise crítica - postura que é obrigação profissional de todo diplomata - a postura é de admiração e deslumbramento, numa nova versão do Ame-o ou Deixe-o do regime militar - dessa vez, o que se deve amar ou deixar é Trump e seu governo.
Num texto que ignora o pré-Sal, acordo Boeing-Embraer, energia nuclear e outros debates de um contencioso que é tema obrigatório da atividade diplomática recente e futura entre os dois países, o texto aceita a noção vulgar da cultura pós-moderna, pré ou pós política, como queira. Localiza a raiz dos problemas humanos deste início de século XXI num ponto distante das necessidades materiais de homens e mulheres. Para o novo chanceler, o problema central reside numa humanidade que se encontra "psiquicamente doente", "não tem ancestrais", "não tem heróis" e "não tem alma, apenas processos químicos correndo aleatoriamente entre seus neurônios." Neste universo, que obviamente pede um socorro imediato, Donald Trump é apresentado como a única chance de salvação. Assim, literalmente, de topete e tudo.
Na versão amistosa do novo chanceler, mais do que chefe da principal potência mundial, com uma atitude permanente de elevar a temperatura entre as nações, reforçar a exploração das populações pobres e produzir crescentes ameaças à paz e ao entendimento entre os países, o Salão Oval da Casa Branca funciona como um divã de psicanalista. Numa postura que justifica o reconhecido messianismo de Trump, ele define sua atuação presidencial como um esforço para "submeter o Ocidente a uma terapia de recuperação da personalidade perdida " na qual procura "o restabelecimento do contato com o próprio inconsciente".
Alguns parágrafos adiante, logo da psicanálise global e envolvido em nova elaboração, agora num tom mais para místico-filosófico, Ernesto Araújo refere-se a "um Deus por quem os ocidentais anseiam ou deveriam ansiar, o Deus de Trump". Para não deixar dúvidas no leitor, chega a sublinhar, extasiado com a própria descoberta: "quem imaginou que alguma vez leria estas palavras, 'o Deus de Trump? '".
Para além dessa enxurrada psicanalítica e mística, que parece saída da Superinteressante e da Planeta da década de 1970, a visão política do novo chanceler pertence a uma árvore genealógica fácil de identificar. Trata-se do pensamento ultra-conservador Samuel Huntington (1927-2008), um dos formuladores da ultra-direita norte-americana.
Cientista político, professor em Harvard e acima de tudo conselheiro de diversos governos republicanos, em 1996 Huntington publicou um artigo ( "Choque de Civilizações") que se tornaria referência do pensamento conservador, formulando argumentos e conceitos que teriam impacto reconhecido nos anos seguintes.
Ele pensava a reorganização do mundo após o fim da União Soviética, a desintegração do comunismo e o inevitável retorno da China e outros países à esfera do capitalismo. Havia um debate, naquela época. Outro pensador, Francis Ford Fukuyama, que também tinha formação conservadora, acreditava no Fim da História. Dizia que os valores da democracia e da iniciativa privada haviam vencido o grande conflito ideológico do século XX e que a humanidade iria ingressar num período de harmonia ideológica, quem sabe até de paz.
Huntington fez o debate a partir de uma visão contrária - e aqui reside seu extremismo, incorporado em versão pós-moderna por Ernesto Araújo.
Sustentava que uma nova guerra iria - e deveria - prosseguir, na forma de conflito de civilizações. Em sua visão, que traduzia o interesse norte-americano de expandir a própria supremacia nas novas circunstâncias, “o eixo central da política mundial no futuro tende a ser o conflito entre o Ocidente e o resto”. Falando de um conflito insuperável entre valores fundamentais – daí o termo choque de civilização – foi um dos primeiros a denunciar o “relativismo cultural” como prova de fraqueza num horizonte de ameaça e risco.
Em sua visão, um "absolutismo cultural" que não ousa dizer seu nome, a emergência dos povos distantes e emancipados torna-se um perigo permanente. Referindo-se a indianos, chineses, árabes e outros povos, Huntington afirma que os conflitos “entre as civilizações vão suplantar os conflitos de natureza ideológica” e, sem se dar ao trabalho de falar em Deus ou psicanálise, diz o que deve ser feito: “o Ocidente terá de manter o poderio econômico e militar necessário para proteger seus interesses diante dessas civilizações.”
Huntington era um intelectual ousado, envolvido até a medula com os interessas corporativos norte-americanos. Exibia um engajamento político tão escancarado que em 1987 não conseguiu tornar-se membro da Academia Nacional de Ciências dos EUA porque seu trabalho foi considerado "pseudo-científico" pela instituição. Mesmo assim, anos depois, ao desenhar o mundo da "Guerra de Civilizações", fez uma distinção clara ao dizer quem estava aonde.
Definiu como "Civilização Ocidental" uma região que incluía a Europa e a América do Norte. Traçou uma linha divisória ao sul dos EUA, onde se encontram Texas e na California. Dali para cima, ficava a Civilização Ocidental. Para baixo, começava outra cultura, que chamou de "Civilização Latino Americana". Ali se encontra o México, Venezuela e Colômbia, Argentina, Chile e Brasil, naturalmente.
A notícia surpreendente é esta. Contrariando o ponto essencial do artigo de Eugênio Araújo, que é colocar o Brasil no bloco de interesses comandado pelo Deus Trump - ele chega a elogiar o esforço do governo Temer para ingressar na OCDE - o criador do conceito de Choque de Civilizações disse que o destino dos sul-americanos se encontra em outro lugar. Falou em "Ocidente e o resto".
Essa a constatação é de grande utilidade para os brasileiros que já aprenderam a cultivar nossa diversidade, valorizam herança africana partilhada por 53% de nossa população, compreendem a riqueza cultural dos povos indígenas -- e agora serão confrontados com a diplomacia do Deus de Trump.
Alguma dúvida?
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