Por Dênis de Moraes, no Blog da Boitempo:
1- Lênin citado por Madeleine Worontsov. Lênine e a imprensa. Lisboa: Antídoto, 1977, p. 43.
2 Mario Caciagli, “Introducción”, em Vladimir I. Lênin. La información de clase. México: Siglo Veintiuno, 1978, p. 9-15.
3 Luiz Alberto Moniz Bandeira. Lênin: vida e obra. 4a. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 47.
4 Vladimir I. Lênin. Propaganda e agitação. Moscou: Progresso, 1984, p. 7.
5 Ibidem, p. 60, 70 e 71.
6 Lênin citado por Madeleine Worontsov. Lênine e a imprensa, ob. cit., p. 116-117; Vladimir I. Lênin. La información de clase, ob. cit., p. 129.
7 Robert Service. Lênin: a biografia definitiva. Rio de Janeiro: Difel, 2007, p. 174.
8 Ibidem, p. 180.
9 Vladimir I. Lênin. Propaganda e agitação, ob. cit., p. 41.
10 Madeleine Worontsov. Lênine e a imprensa, ob. cit., p. 66.
11 Silvio Pons. A revolução global: história do comunismo internacional. Rio de Janeiro: Contraponto/ Fundação Astrojildo Pereira, 2014, p. 48.
12 Lênin citado por Máximo Górki. Lênin: biografia, cartas e escritos. São Paulo: Quilombo, 1980, p. 86-89.
13 Jean Fréville. Lénine à Paris. Paris: Éditions Sociales, 1968, p. 115-116.
14 Vladimir I. Lênin. Propaganda e agitação, ob. cit., p. 72.
15 Vladimir I. Lênin. “Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento”, em Obras escolhidas de V. I. Lénine (tomo 1).: Editorial Avante, 1977, p. 79-214, disponível aqui.
16 Vladimir I. Lênin. La información de clase, ob. cit., p. 128.
17 Lênin citado por Robert Service. Lênin: a biografia definitiva, ob. cit., p. 257.
18 Rafael Duarte Oliveira Venâncio. Lênin e o jornalismo soviético: imprensa como vanguarda política. São Paulo: Baraúna, 2010, p. 112.
19 Robert Service. Lênin: a biografia definitiva, ob. cit., p. 319-320.
20 Tamás Krausz. Reconstruindo Lênin: uma biografia intelectual. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 267-268.
21 Vladimir I. Lênin. La información de clase, ob. cit., p. 175.
22 Ibidem, p. 176.
23 Ibidem, p. 209.
24 Alvaro Bianchi, “Lênin e o jornal do partido”, Blog Junho, 21 de janeiro de 2016, disponível aqui.
25 Vladimir I. Lênin. Propaganda e agitação, ob. cit., p. 72.
26 Idem.
27 Vladimir I. Lênin. La información de clase, ob. cit., p. 44.
28 Ibidem, p. 173.
29 Vladimir I. Lênin. Esquerdismo: a doença infantil do comunismo, 1920, disponível no Portal Domínio Público aqui.
* Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-doutorados na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, França) e no Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina). É pesquisador do CNPq, professor associado da Universidade Federal Fluminense e autor, coautor e organizador de mais de 30 livros editados no país e no exterior. Pela Boitempo publicou Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (2013) e O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (2012). Colabora com o Blog da Boitempo desde 2012.
Em memória de Luiz Alberto Moniz Bandeira.
A trajetória jornalística e as concepções de Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924) sobre a imprensa situam-se no contexto de duas tendências que se delinearam no âmbito europeu desde fins do século XIX até as décadas inaugurais do século XX, num período de ascensão de movimentos de massa, de divulgação junto aos trabalhadores das ideias socialistas e de eclosões revolucionárias, em meio a crises econômicas, disputas geopolíticas e guerras. A primeira tendência refere-se a intelectuais de esquerda que atuaram como jornalistas e ativistas, a partir da percepção da importância da disseminação em periódicos de propostas e intervenções políticas.
A trajetória jornalística e as concepções de Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924) sobre a imprensa situam-se no contexto de duas tendências que se delinearam no âmbito europeu desde fins do século XIX até as décadas inaugurais do século XX, num período de ascensão de movimentos de massa, de divulgação junto aos trabalhadores das ideias socialistas e de eclosões revolucionárias, em meio a crises econômicas, disputas geopolíticas e guerras. A primeira tendência refere-se a intelectuais de esquerda que atuaram como jornalistas e ativistas, a partir da percepção da importância da disseminação em periódicos de propostas e intervenções políticas.
Entre inúmeros exemplos, podemos citar os de Karl Marx, Friedrich Engels, V. I. Lênin, Antonio Gramsci, Karl Kautsky, Rosa Luxemburgo, Leon Trótski, Nikolai Bukhárin, Máximo Górki, Gueórgui Plekhánov, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai. A segunda tendência diz respeito a intelectuais que não apenas exerceram o jornalismo como também teorizaram sobre a imprensa como instrumento voltado às tarefas de informação, conscientização, agitação e propaganda contra-hegemônica, em meio a embates contra as formas de exploração dos trabalhadores pelo capital.
Nas peculiaridades de cada tempo histórico, Lênin retomou reflexões de Marx sobre a influência tendencialmente conservadora dos veículos de massa junto à opinião pública e também quanto ao papel da imprensa revolucionária na difusão política e ideológica, enfatizando as tarefas que cabiam a jornais e revistas de organizações de esquerda e partidos comunistas. Para Lênin, seria impossível conduzir a luta revolucionária sem dispor de um meio de divulgação através do qual o partido pudesse se pronunciar sobre questões e situações concretas da vida social. “A criação do partido, se ele não for representado convenientemente por um órgão determinado, permanecerá em grande medida letra morta”, sentenciou [1].
A produção jornalística de Lênin pode ser dividida em cinco fases, conforme Mario Caciagli [2]. A primeira compreende os textos redigidos entre 1899 e 1905, nos quais atribuiu ao jornal a tarefa de organizar os militantes socialistas em um só partido. O periódico circularia entre grupos e tendências e poderia oferecer uma síntese das atividades de base, ainda mais em um país com grande dispersão territorial e localismos acentuados como a Rússia. A imprensa revolucionária, como braço ideológico do partido, deveria oferecer orientações programáticas para os trabalhadores atuarem em assembleias populares, associações de classe, mobilizações políticas e agitações eleitorais. A segunda fase proposta por Caciagli remete ao período de 1912 a 1914, com foco na definição do caráter de classe e do método de análise social da imprensa operária. O terceiro momento, de 1915 a 1917, abrange as críticas à imprensa burguesa, no tocante “aos casos de corrupção, às venalidades e aos compromissos a que se submetem os jornalistas burgueses, incluindo os de esquerda”, em face da “dependência da imprensa dita livre à vontade dos proprietários”. O quarto período engloba os textos produzidos na Revolução Bolchevique de 1917, em que Lênin confronta o novo cenário na Rússia com a questão da “liberdade de imprensa” no sistema democrático-burguês, “que é um sistema no qual as mais amplas garantias formais se chocam com a estrutura capitalista de economia e de poder”. A quinta etapa inclui os textos pós-revolucionários, entre 1917 e 1922, quando a imprensa passa à órbita do Estado soviético e do Partido Comunista.
A aproximação de Lênin com o jornalismo aconteceu após um período de pouco mais de um ano na prisão por conspirar contra o tsarismo. Em 1897 fora banido para a Sibéria. No exílio, em meio às leituras e à avaliação das futuras alternativas de ação, vislumbrou como urgente a criação de um jornal partidário capaz de estabelecer vínculos regulares com grupos e células ativistas, com o propósito de entrosá-los em torno de diretrizes e planos para a luta de classes, ao lado do proletariado e demais trabalhadores contra o regime imperial. Tal jornal seria o Rabótchaia Gazeta(Gazeta Operária), designado órgão oficial do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) no congresso de fundação realizado em março de 1898, em Minsk. Mas o jornal, editado em Kiev, foi interditado pelo governo tsarista no segundo número e os artigos de Lênin acabaram arquivados.
Em 29 de janeiro de 1900, terminou o período de deportação imposto a Lênin, mas ele foi notificado pelo Ministério do Interior que não poderia residir em qualquer das capitais do país, em cidades universitárias ou em grande centros operários. Depois de rever a família em Moscou e passar por São Petersburgo, Pskov e Riga, onde recrutou correspondentes para o jornal que planejava criar, com a aprovação de comitês de operários revolucionários com os quais se reuniu, Lênin obteve um passaporte e, em 29 julho de 1900, deixou a Rússia a fim de organizar, a partir do ocidente da Europa, um partido unitário e centralizado, impulsionado pelo espírito do marxismo revolucionário e determinado a derrogar o tsarismo.
Foi no exílio em Genebra, Suíça, que Lênin identificou celeumas (como a revisão de princípios da doutrina de Marx e Engels, defendida por Eduard Bernstein nos círculos social-democratas) que dificultavam a unificação das correntes marxistas no POSDR. O ambiente de controvérsias reforçou em Lênin a intenção, que alimentava desde a Sibéria, de fundar um jornal, de circulação clandestina, que unisse e consolidasse os grupos militantes num partido capaz de representar os movimentos políticos de contestação do poder e combater as convicções nocivas à revolução, “principalmente aquelas que se apresentavam com a máscara do socialismo, tais como a dos economicistas, revisionistas e populistas” [3].
Seis meses após a chegada a Genebra, durante os quais o projeto exigiu de Lênin empenho e organização, o jornal Iskra (Centelha) foi lançado no dia 11 de dezembro de 1900 em Leipzig e depois em Munique, na Alemanha. O título inspirou-se em um verso do poeta Aleksandr Odoiëvski, exilado na Sibéria: “Da centelha nascerá a chama!” Centenas de exemplares foram distribuídos por uma rede clandestina de militantes, através das fronteiras alemã, austríaca e turca. Lênin era o redator-chefe e pontificavam na equipe Gueórgui Plekhánov, Pável Akselrod, Vera Zassúlitch, Yuliy Mártov e Aleksandr Potriéssov.
No “Projeto de declaração da redação do Iskra e da revista Zariá”, Lênin afirmou que o órgão comunista liga os fatos concretos às manifestações do movimento operário, conduz o leitor a um ensinamento profundo, a partir dos acontecimentos mais simples e universalmente conhecidos. Não pode, assim, se limitar a reproduzir documentos e deliberações da cúpula. Cabe-lhe selecionar e analisar questões da atualidade, em conexão com a ideologia que sedimenta as convicções.
No entender de Lênin, para fazer o elo entre elementos da ideologia comunista, a propaganda persuasiva e o chamado à ação organizada, os folhetos e as brochuras tinham se tornado insuficientes, por se circunscrevem, geralmente, a assuntos locais ou aspectos econômicos do cotidiano. Havia chegado a hora de criar uma “forma superior de agitação” que complementasse as anteriores, isto é, “uma agitação pelo jornal, registrando periodicamente ao mesmo tempo as queixas dos operários, as greves operárias, as outras formas de luta do proletariado e todas as manifestações da opressão política”. Note-se a distinção que Lênin estabelece entre propaganda e agitação. A propaganda propõe-se a divulgar e esclarecer aos trabalhadores a teoria marxista e as estratégias do partido; ajuda a compreender os objetivos gerais para o futuro e o desenvolvimento da sociedade. A agitação baseia-se principalmente na política corrente e nas questões socioeconômicas, contribuindo para a solução dos problemas táticos imediatos [4].
O “fio condutor” para a criação da organização revolucionária era o jornal político, que poderia “fazer progredir sem cessar essa organização em profundidade e em largura, para toda a Rússia (…), fiel aos princípios e abarcando os diversos aspectos da vida”. Ao mesmo tempo, um veículo capaz de “despertar em todos os elementos um pouco conscientes da população a paixão das revelações políticas (…), levar a cabo a nossa tarefa: concentrar todos os elementos de descontentamento e de protesto políticos para fecundar o movimento revolucionário do proletariado”. Os artigos jornalísticos deveriam tirar dos fatos “conclusões determinadas em função dos objetivos finais do socialismo e das tarefas políticas do proletariado russo” [5].
Pelo menos quatro quesitos básicos precisavam ser cumpridos para a jornal partidário conquistar credibilidade junto aos leitores, segundo Lênin: a) a seriedade da informação, o que significa “ir ao local, escolher os documentos, organizar fichários, fazer estatísticas, não omitir data ou nome”; b) a interpretação marxista dos fatos sociais; c) o vigor da expressão”; d) boas reportagens devem basear-se em “documentação nova, múltipla, recolhida e elaborada por homens competentes”, recrutados entre os quadros mais preparados para a tarefa [6].
Robert Service, biógrafo de Lênin, define o estilo do Iskra como escolasticamente marxista, pressupondo que os leitores não só fossem “altamente alfabetizados”, como também tivessem “sólido conhecimento dos debates socialistas internacionais contemporâneos”. E completa: “Os leitores-alvo eram ativistas revolucionários que já professavam o marxismo, e Iskra, na verdade, era menos um jornal do que um periódico em forma de jornal, projetado para funcionar no lugar de um comitê central partidário. Mas era um começo. O próximo passo seria consolidar Iskra e empregá-lo como um órgão de propaganda para a realização do Segundo Congresso do partido [7].
O que importava, para Lênin e demais redatores do Iskra, não era exibir virtuosismo, e sim adotar uma linguagem de exortação, imoderada e direta, que suscitasse afinidades e impelisse os leitores-militantes à participação política imediata. “Para eles, a retórica abrasiva era a manifestação de uma beligerância necessária e realista. Palavras delicadas e argumentos elegantes não eram as exigências mais importantes para a derrubada da monarquia Romanov” [8]. O estilo aguerrido apareceu no primeiro artigo que Lênin assinou com seu nome, em dezembro de 1901, na revista Zariá (Aurora). Ele abordou a questão agrária, inclusive denunciando o “caráter nefasto” das teses de economistas que minimizavam a importância de um partido de vanguarda antitsarista e subestimavam a influência da consciência socialista na organização dos trabalhadores da cidade e do campo.
partir da ideia de Lênin, e com sua colaboração ativa, o grupo do Iskra elaborou o projeto de programa do Partido Operário Social Democrata Russo (publicado no número 21 do jornal), desempenhando também papel relevante na organização do Segundo Congresso, que aconteceria em julho-agosto de 1903. O Iskra já era reconhecido como publicação influente entre os revolucionários russos. Uma resolução do Congresso destacou a sua participação na construção do POSDR e o formalizou como órgão central, “a voz do partido que deve repercutir o essencial de suas teses”, segundo Lênin [9].
Em outubro daquele mesmo ano, após a cisão do partido em duas correntes – os bolcheviques (majoritários) e os mencheviques (minoritários) –, estes últimos assumiram o controle do Iskra, apoiados por Plekhánov, que fizera parte da redação inicial e rompera com Lênin. A partir daí inicia-se uma diferenciação entre o “velho Iskra”, que compreendeu os 51 primeiros números do jornal, ainda Lêninista, e o “novo Iskra”, menchevique, publicado até novembro de 1905 e que se transformou em um instrumento contrário ao marxismo revolucionário. Ainda na fase de “velho Iskra”, a trajetória do jornal não seria linear. Mesmo na Alemanha sofreu censura, obrigando seu conselho editorial a transferi-lo para Londres, onde circulou em 1902. No ano seguinte, mais um deslocamento forçado, desta vez para Genebra. De modo semelhante ao que ocorrera com projetos editoriais de Marx, o desejo de conscientizar a classe trabalhadora e difundir ideias revolucionárias esbarrava no violência policial, que forçava a redação a sucessivas trocas de cidades e países para despistar a repressão.
No curso das mobilizações populares que resultaram na Revolução Russa de 1905 – o “ensaio geral” do processo de crises, conflitos, desdobramentos e mudanças políticas cuja culminância será a Revolução Bolchevique de 1917 –, Lênin reorientou a imprensa partidária a substituir o binômio agitação e propaganda por palavras de ordem táticas, com vistas a incrementar as lutas do proletariado e do campesinato para a futura tomada do poder. Em outras palavras, o jornal deveria converter-se num guia para a ação, diversificando-se ao máximo para alcançar o conjunto da classe operária [10]. De dezembro de 1904 a maio de 1905, editou, em Genebra, o Vperiod (Avante!), seminário bolchevique clandestino, com a tendência política do “velho” Iskra. O jornal serviu para preparar a corrente aglutinada em torno de Lênin nas pelejas internas no Terceiro Congresso e, depois, instigar a insurreição.
Na sequência do fracasso da Revolução de 1905, com o refluxo e o enfraquecimento das forças populares, o Vperiod se dissolveu no semanário Proletári (Proletário), que passou a ser o órgão central do partido, na mesma linha de seu antecessor. A primeira fase do jornal durou de maio a novembro de 1905. Lênin assinou mais de 50 artigos e notas, depois reproduzidos em folhetos e pequenos jornais clandestinos. O recrudescimento da repressão em São Petersburgo obrigou Lênin, em 1907, a refugiar-se em Helsinque, na Finlândia. A redação também foi deslocada para lá. Com breves interrupções, o jornal circulou clandestinamente de agosto de 1906 a novembro de 1909, quando a plenária do Comitê Central eleito no IV Congresso (de unificação) do POSDR decidiu suspender a publicação, a essa altura com periodicidade mensal e impressão em Paris, embora com circulação restrita. Nesses três anos, foram editados mais de cem artigos e notas de Lênin, aí incluídos os textos em que expôs a tese de que, nas condições particulares da Rússia, a classe trabalhadora assumiria o papel progressista que a Segunda Internacional atribuíra à burguesia na etapa da revolução democrático-burguesa, isto é, caberia essencialmente às lutas do proletariado, em consonância com a diretriz política de um partido comunista centralizado, abrir caminho para uma revolução socialista, a despeito do atraso do país [11].
Com a retomada progressiva do movimento operário a partir de 1910, a ideia de relançar um jornal partidário voltou a motivar Lênin, que entre 1908 e 1911 viveu na Suíça e na Franca e em deslocamentos a outros países europeus. “Estou convencido de que o partido tem necessidade, presentemente, de um órgão político que apareça com regularidade, que conduza com firmeza e medida uma política de luta contra a desagregação e o desencorajamento”, escreveu a Máximo Górki [12]. Lênin coletou fundos e organizou o Zvezda (Estrela) e, posteriormente, o Nóvaia Zvezda (Nova Estrela), distribuídos a partir de Moscou em dezembro de 1910 e começo de 1911, respectivamente. Ainda que com durações efêmeras, os dois jornais levaram adiante o propósito de aprofundar os temas sociais, os debates ideológicos, promover a agitação nas fábricas e construir as bases do partido.
Os artigos de Lênin nos dois primeiros numeros do Zvezda, sob o pseudônimo Iline, comprovam a relevância dada por ele às orientações políticas por intermédio de periódicos voltados à vanguarda revolucionária. Segundo Jean Fréville, estes textos “são referências vivas de sua visão crítica” e se destacam como elementos essenciais na batalha das ideias que travava naquele momento com correntes do movimento operário europeu”. Fréville acentua que Lênin “desaprova interpretações de certos dirigentes de esquerda que empregam categorias de análise equivocadas e geralmente inspiradas no reformismo social-democrata, que acabam por manter as estruturas fundamentais da dominação da burguesia”. E acrescenta: “Ele defende, em contrapartida, citando Engels, um ‘marxismo criativo’, que não seja dogmático em suas premissas e que se torne decisive como guia para a ação, dialético em seus fundamentos teóricos e capaz de elucidar o caráter universal e contraditório do desenvolvimento histórico, dos problemas práticos concretos da época, propondo ações de agitação, transformação e ruptura econômica e política em cada etapa histórica, numa perspectiva de impulsionar e levar ao triunfo as massas populares e o proletariado” [13].
Não é demais recordar que, desde o exílio no início do século, Lênin definia o órgão oficial do partido como elemento de ligação com o proletariado nas cidades e fábricas. No artigo “Por onde começar?”, publicado no número 4 do Iskra, em 1901, ele pontuou que, desenvolvendo um trabalho sistemático, o jornal “penetrará entre a pequena-burguesia das cidades, os artesãos das aldeias e os camponeses, e tornar-se-á assim um verdadeiro órgão político popular” [14]. Essa missão estratégica da imprensa revolucionária se articulava com questões programáticas, tais como o caráter e o conteúdo prioritário da agitação política, as tarefas de organização e o plano de formação de um partido marxista da Rússia. O artigo repercutiu tanto na Rússia como no exterior, através de reedições e traduções em brochura baseadas no texto divulgado pelo Iskra.
No seu livro Que fazer? (1902) – que demorou mais tempo para ser escrito do que o pretendido, justamente devido à sua dedicação ao Iskra e à produção do programa do partido –, Lênin detalhou quais deveriam ser o público deste jornal e seu objetivo: “Esse auditório ideal para as revelações políticas é precisamente a classe operária, que tem necessidade, antes e sobretudo, de conhecimentos políticos amplos e vivos, e que é a mais capaz de aproveitar esses conhecimentos para empreender uma luta ativa, mesmo que não prometa qualquer ‘resultado tangível’. Ora, a tribuna para essas revelações diante de todo o povo, só, pode ser um jornal para toda a Rússia.” Chamou a atenção para a necessidade de as organizações locais se esforçarem para viabilizar um veículo para toda a Rússia: “Enquanto não for assim, não poderemos publicar nem mesmo um único jornal que seja capaz de servir verdadeiramente o movimento, através de uma grande agitação pela imprensa.” [15].
Em 22 abril de 1912, os bolcheviques lançaram o seu primeiro jornal diário, o Pravda (Verdade). Uma das características marcantes foi incentivar a participação dos leitores, publicando, a cada número, dezenas de cartas e artigos escritos por operários descrevendo as suas condições de vida, as explorações e os abusos de que eram vítimas nas fábricas, as aspirações para o futuro. Essa preocupação em elevar o nível de consciência sem perder de vista questões mais imediatas do cotidiano dos trabalhadores ajudou a popularizar o jornal, cuja tiragem média alcançava 40 mil exemplares, tendo chegado a imprimir 60 mil. O êxito também pode ser medido pelo bom resultado da coleta de fundos junto a grupos de operários de fábricas, o que incrementava o caráter de classe desejado pelo Pravda. Regularmente eram divulgados balanços das subscrições. A Rússia vivia um período de agravamento de tensões sociais e políticas, e o Pravda ocupava um espaço diferenciado na divulgação de reivindicações, manifestações e greves operárias, graças ao trabalho de correspondentes espalhados pelo país.
Lênin continuava exilado em Paris; temia perder influência sobre os bolcheviques e, ao mesmo tempo, estava receoso de voltar para São Petersburgo, onde corria alto risco de ser preso. Seguiu, então, para a Cracóvia, de onde enviava artigos para o Pravda e transmitia orientações ao comando da redação na Rússia. Ele pôs em relevo uma vinculação editorial cada vez maior às demandas da classe operária: “Um jornal proletário é uma tribuna dos proletários. Há que se levantar na Rússia inteira, um atrás do outro, os problemas da vida proletária em geral e da democracia proletária em particular. Os trabalhadores de São Petersburgo começaram a obra. À sua energia, deve o proletariado da Rússia o primeiro jornal proletário, depois de duros anos de provação. Continuemos, então, sua obra, todos apoiando e dando novo impulso ao jornal proletário da capital, a primeira andorinha dessa primavera em que toda a Rússia se cobrirá de uma rede de organizações proletárias com seus próprios jornais.” [16].
No dia a dia, a distância geográfica impedia Lênin de exercer interferência mais efetiva junto ao jornal. O conselho editorial tentava evitar multas governamentais, processos judiciais e ameaças de interdição, caminhando no fio da navalha entre a combatividade e a moderação na abordagem de temas que pudessem atiçar a ira do regime. Só durante o primeiro ano do diário, foram abertos 36 processos contra seus redatores. Nem o próprio Lênin escapou de “alterações atenuadoras” introduzidas pela redação em alguns de seus textos, nem da rejeição de 47 dos seus 331 artigos escritos antes de eclodir a Primeira Guerra Mundial. Irritado, ele enviou carta ao conselho interpelando-o sobre as razões dos vetos: “De um modo geral não faria mal a ninguém dar uma notificação sobre artigos recusados. Esta não é, de modo algum, uma exigência excessiva. Escrever para a cesta de papel, i. e., escrever artigos que são rejeitados é muito desagradável” [17]. Na verdade, disputas internas no partido também influíam nas escolhas dos textos que deveriam ser publicados ou engavetados.
O início da guerra intensificou o cerco policial aos bolcheviques. A coação ao Pravda foi implacável. De um total de 355 edições, entre 22 de abril de 1912 a 8 de julho de 2014, 73 foram punidas, 52 confiscadas e 21 multadas, com prejuízos financeiros irrecuperáveis. Sem contar as inúmeras apreensões, punições e multas aplicadas a oito diferentes títulos adotados pelo Pravdapara tentar driblar a censura e resistir às arbitrariedades [18]. Em 21 de julho de 1914, depois de ser empastelado pela polícia e ter a sua equipe presa, deixou de circular.
O Pravda voltaria a ser publicado, como órgão do Comitê Central, às vésperas da vitoriosa Revolução de 1917, quando a efervescência política levou à rearticulação da imprensa comunista clandestina. Com os bolcheviques em posição expressiva no primeiro governo revolucionário, Lênin não mais exerceu funções no Pravda, em razão de suas atribuições no Kremlin e dos problemas, tensões, percalços, disputas de poder e crises para administrar como chefe de governo e líder do partido. Mas não deixou de influir na orientação editorial nem de escrever artigos no Pravda (foram 47 apenas em 1917). “Tinha uma capacidade sem igual para expor seus argumentos e para defender uma causa militante. Suas descrições agressivas de seus inimigos e de suas políticas davam a todo mundo a sensação de que havia um homem capaz de exercer o poder governamental” [19].
Em meio ao turbilhão de 1917, Lênin abordou um tema crucial no artigo “Como garantir o sucesso da Assembleia Constituinte: sobre a liberdade de imprensa”, editado no número 11 do jornal Rabótchi Púty (O Caminho Operário), em 28 de setembro de 1917. Seu biógrafo Tamás Krausz foi preciso ao resumir a principal ideia do líder bolchevique no texto: “a democracia burguesa não é liberdade, mas ‘liberdade de compra’”. A democracia burguesa como “forma de dominação capitalista da mais alta ordem”, assinala Krausz, orientava o pensamento de Lênin e, por extensão influía em sua compreensão da liberdade de imprensa [20]. Basta ler o que ele escreveu no Rabótchi Púty para autenticar a linha de interpretação do biógrafo: “Os capitalistas (seguidos, devido à estupidez ou à inércia, por muitos SRs e mencheviques) denominam ‘liberdade de imprensa’ uma situação em que a censura é abolida e todos os grupos publicam livremente todos os tipos de periódicos. Na verdade, não se trata de liberdade de imprensa, mas liberdade dos ricos, da burguesia, para que enganem a massa oprimida e explorada do povo.” Lênin foi ainda mais categórico ao se referir às injunções econômicas na conquista de maior audiência: “Pegue, digamos, os jornais de Petrogrado e Moscou. Você verá imediatamente que são os jornais burgueses … que têm, de longe, os maiores índices de circulação. O que explica essa prevalência? Não é de forma alguma a vontade da maioria, pois as eleições demonstraram que, nas duas capitais, a maioria (uma esmagadora maioria, aliás) prefere os democratas, isto é, os SRs e os bolcheviques. Esses três partidos representam de três quartos a quatro quintos dos votos, ao passo que a circulação dos jornais que eles publicam é certamente menor do que um quarto, ou até menos de um quinto, de toda a imprensa burguesa. … Como isso acontece? Todos sabem muito bem por quê.”
Para desfazer a prevalência desmedida dos veículos burgueses, ele defendeu o “monopólio estatal sobre os anúncios privados na imprensa”, após a tomada do poder: “O poder estatal na forma dos sovietes toma todas as gráficas e todos os jornais e os distribui equitativamente: o Estado deveria vir primeiro – em benefício dos interesses da maioria das pessoas, a maioria dos pobres, particularmente a maioria dos camponeses, que por séculos foram atormentados, esmagados e embrutecidos pelos proprietários de terras e pelos capitalistas.”
As circunstâncias, contradições e obstáculos enfrentados pelo primeiro governo revolucionário se refletiram nas análises mais esparsas de Lênin sobre a imprensa. Ele voltou a tratar da liberdade de imprensa na sua 8ª tese para o I Congresso da Internacional Comunista, realizado de 2 a 6 de março de 1919, em Moscou. Novamente atacou os monopólios e a opulência financeira que, na maioria dos países, distorcem os processos de produção informativa. A seu ver, a liberdade de imprensa é “um engano enquanto as melhores rotativas e os melhores estoque de papel estão monopolizados pelos capitalistas e enquanto sobreviver o poder do capital sobre a imprensa”. Por isso, sublinhou a necessidade de ruptura com o modelo da imprensa burguesa, que transforma a informação em mercadoria como qualquer outra: “Para se conquistar a igualdade efetiva e a verdadeira democracia para os trabalhadores, para os operários e camponeses, é preciso começar por privar o capital da possibilidade de alugar escritores, de comprar editoriais e subornar jornais.” [21].
Em contraposição às insuficiências da liberdade de imprensa sob o jugo do capital, Lênin mencionou parâmetros que, em linhas gerais, deveriam ser introduzidos a partir da Revolução de 1917: “A verdadeira liberdade de imprensa surgirá no regime em que acreditam os comunistas, no qual não existirá a possibilidade de enriquecer à custa dos outros, não existirá a possibilidade objetiva de subornar direta ou indiretamente a imprensa ao poder do dinheiro, não haverá obstáculos para que todo trabalhador (ou grupo de trabalhadores, qualquer que seja seu número) tenha e desfrute do mesmo direito de utilizar as rotativas e o papel, que pertencerão à sociedade.” [22].
Em suma, ele tinha em mente uma imprensa não mercantilizada, porém na esfera de influência e controle do Estado e do Partido Comunista, com as implicações e os limites daí decorrentes nos planos do direito à informação e da liberdade de opinião.
Nos últimos escritos jornalísticos de Lênin, percebe-se um giro conceitual quanto à função social da imprensa. O teórico do jornal político-partidário como peça-chave para a formação da consciência revolucionária e da unificação ideológica do proletariado inseria agora, de maneira mais realista, os meios de difusão na complexa conjuntura do país, em que os problemas dificultavam uma transição para o socialismo. A imprensa soviética deveria deixar de lado “uma atenção desmedida às politicagens e questões pessoais de direção política” e dedicar-se mais aos temas de interesse dos trabalhadores. Os jornais precisavam mudar o foco: de simples produtores de notícias políticas do dia para órgãos sérios de “educação econômica das massas”. E se explicou: “A imprensa terá que destacar os problemas do trabalho em seu enfoque mais imediato e prático. Deve se converter no órgão da comuna de trabalho, no sentido de fazer pública toda informação que os diretores das empresas capitalistas procuravam ocultar” [23].
Assim, a imprensa bolchevique não perdeu sua função com a chegada ao poder, mas teve que adaptar-se a diretivas político-ideológicas mais severa, situações complexas e conflitos de várias ordens vivenciados pelo país. Segundo Álvaro Bianchi, na sequência da Revolução de 1917, os jornais “passaram a difundir e defender as tarefas colocadas pela construção do novo Estado operário, organizando a classe para tal”. E prossegue apontando os câmbios de época que se estendiam à imprensa: “Durante esse período, a organização da produção é um dos temas mais frequentes na imprensa. Os debates desenvolvidos em torno da Nova Política Econômica e da industrialização encheram as páginas dos jornais. A imprensa destinada aos camponeses passou a veicular, junto com os temas da política nacional e internacional, artigos técnicos aconselhando formas de aumentar a produção, a melhor época do ano para plantar e colher os diversos cultivos, etc” [24].
Pelo exposto, podemos concluir que, para Lênin, o jornal de uma organização revolucionária é o lugar da transição entre a teoria “pura” e o apelo à ação, indispensável ao êxito da agitação e propaganda. A cada etapa histórica corresponde uma “tarefa da hora”, dominante e prioritária. Como organizador coletivo, cabe ao periódico unificar as opiniões dos membros da agremiação. “E a arma mais poderosa do partido para chegar à classe operária todo dia e a toda hora em sua própria língua.” [25].
Ao definir a imprensa como ferramenta para a solidificação do partido, Lênin compara-a ao andaime de um edifício em obras, que “facilita a comunicação entre os diversos grupos, ajuda-os a distribuir o trabalho e a observar os resultados finais alcançados graças a um trabalho organizado” [26]. E vai além: “Com a ajuda do jornal e na relação com ele, irá se formando por si mesma a organização permanente que se ocupará do trabalho local, mas também do trabalho geral e regular, que acostumará os seus membros a seguir atentamente os acontecimentos políticos, a valorizar a sua significação e sua influência junto aos diversos setores da população, a elaborar métodos adequados que permitirão ao partido revolucionário influir nesses acontecimentos.” [27].
A teoria do jornalismo, na formulação leninista, é o estudo de sua inserção na vida partidária. “O nosso órgão diretor deve estar em relação estreita com o partido, em ligação indissolúvel com o movimento do proletariado. Deve marchar à frente, iluminar o caminho.” Para isso, deve adotar um partidarismo consequente (defender o ponto de vista da classe operária); ter firmeza ideológica; orientar o povo; buscar a veracidade; e assumir o internacionalismo operário. Lênin também ressalta a formação de quadros: “Se agruparmos as nossas forças num jornal comum, veremos formarem-se na ação e destacarem-se das fileiras não só os mais avisados organizadores, os mais capazes chefes políticos do partido, que saberão, no momento certo, lançar a palavra de ordem da luta final e assumir a direção” [28].
Na esteira das concepções de Karl Marx sobre o jornalismo revolucionário, Lênin definiu três princípios básicos da imprensa comunista: educar as massas para elevar o nível de consciência política; organizar os setores mais combativos da classe operária em torno do partido; propagar a linha programática. Uma síntese de visões convergentes com Marx pode ser verificada nas palavras de Lênin, ao indicar que os jornais não refletem apenas a luta de classes, como mantêm com ela uma relação específica, pois são sujeitos da luta ideológica que se trava entre as diferentes forças políticas: “Na luta entre os órgãos da imprensa, os partidos, as frações e os grupos vão se cristalizando as tendências ideológicas e políticas com caráter realmente de classe; cada uma das classes forja para si uma arma ideológica e política para as batalhas futuras” [29].
Ao longo do século XX, tais concepções nortearam as diretrizes editoriais da imprensa de grande parte dos Partidos Comunistas aliados de Moscou no Ocidente – muitas vezes sem a necessária discussão crítica e sem tomar na devida conta os problemas internos e as inserções específicas das organizações, as peculiaridades culturais, os contextos sociopolíticos e as correlações de força de cada país.
Notas
* Versão revista, com alterações e acréscimos, do capítulo “Lênin: a imprensa como apelo à ação revolucionária” que faz parte do ensaio “Imprensa e revolução: Marx e Lênin, precursores de Gramsci”, incluído em meu livro Crítica da mídia e hegemonia cultural (Rio de Janeiro: Mauad, 2016).
Nas peculiaridades de cada tempo histórico, Lênin retomou reflexões de Marx sobre a influência tendencialmente conservadora dos veículos de massa junto à opinião pública e também quanto ao papel da imprensa revolucionária na difusão política e ideológica, enfatizando as tarefas que cabiam a jornais e revistas de organizações de esquerda e partidos comunistas. Para Lênin, seria impossível conduzir a luta revolucionária sem dispor de um meio de divulgação através do qual o partido pudesse se pronunciar sobre questões e situações concretas da vida social. “A criação do partido, se ele não for representado convenientemente por um órgão determinado, permanecerá em grande medida letra morta”, sentenciou [1].
A produção jornalística de Lênin pode ser dividida em cinco fases, conforme Mario Caciagli [2]. A primeira compreende os textos redigidos entre 1899 e 1905, nos quais atribuiu ao jornal a tarefa de organizar os militantes socialistas em um só partido. O periódico circularia entre grupos e tendências e poderia oferecer uma síntese das atividades de base, ainda mais em um país com grande dispersão territorial e localismos acentuados como a Rússia. A imprensa revolucionária, como braço ideológico do partido, deveria oferecer orientações programáticas para os trabalhadores atuarem em assembleias populares, associações de classe, mobilizações políticas e agitações eleitorais. A segunda fase proposta por Caciagli remete ao período de 1912 a 1914, com foco na definição do caráter de classe e do método de análise social da imprensa operária. O terceiro momento, de 1915 a 1917, abrange as críticas à imprensa burguesa, no tocante “aos casos de corrupção, às venalidades e aos compromissos a que se submetem os jornalistas burgueses, incluindo os de esquerda”, em face da “dependência da imprensa dita livre à vontade dos proprietários”. O quarto período engloba os textos produzidos na Revolução Bolchevique de 1917, em que Lênin confronta o novo cenário na Rússia com a questão da “liberdade de imprensa” no sistema democrático-burguês, “que é um sistema no qual as mais amplas garantias formais se chocam com a estrutura capitalista de economia e de poder”. A quinta etapa inclui os textos pós-revolucionários, entre 1917 e 1922, quando a imprensa passa à órbita do Estado soviético e do Partido Comunista.
A aproximação de Lênin com o jornalismo aconteceu após um período de pouco mais de um ano na prisão por conspirar contra o tsarismo. Em 1897 fora banido para a Sibéria. No exílio, em meio às leituras e à avaliação das futuras alternativas de ação, vislumbrou como urgente a criação de um jornal partidário capaz de estabelecer vínculos regulares com grupos e células ativistas, com o propósito de entrosá-los em torno de diretrizes e planos para a luta de classes, ao lado do proletariado e demais trabalhadores contra o regime imperial. Tal jornal seria o Rabótchaia Gazeta(Gazeta Operária), designado órgão oficial do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR) no congresso de fundação realizado em março de 1898, em Minsk. Mas o jornal, editado em Kiev, foi interditado pelo governo tsarista no segundo número e os artigos de Lênin acabaram arquivados.
Em 29 de janeiro de 1900, terminou o período de deportação imposto a Lênin, mas ele foi notificado pelo Ministério do Interior que não poderia residir em qualquer das capitais do país, em cidades universitárias ou em grande centros operários. Depois de rever a família em Moscou e passar por São Petersburgo, Pskov e Riga, onde recrutou correspondentes para o jornal que planejava criar, com a aprovação de comitês de operários revolucionários com os quais se reuniu, Lênin obteve um passaporte e, em 29 julho de 1900, deixou a Rússia a fim de organizar, a partir do ocidente da Europa, um partido unitário e centralizado, impulsionado pelo espírito do marxismo revolucionário e determinado a derrogar o tsarismo.
Foi no exílio em Genebra, Suíça, que Lênin identificou celeumas (como a revisão de princípios da doutrina de Marx e Engels, defendida por Eduard Bernstein nos círculos social-democratas) que dificultavam a unificação das correntes marxistas no POSDR. O ambiente de controvérsias reforçou em Lênin a intenção, que alimentava desde a Sibéria, de fundar um jornal, de circulação clandestina, que unisse e consolidasse os grupos militantes num partido capaz de representar os movimentos políticos de contestação do poder e combater as convicções nocivas à revolução, “principalmente aquelas que se apresentavam com a máscara do socialismo, tais como a dos economicistas, revisionistas e populistas” [3].
Seis meses após a chegada a Genebra, durante os quais o projeto exigiu de Lênin empenho e organização, o jornal Iskra (Centelha) foi lançado no dia 11 de dezembro de 1900 em Leipzig e depois em Munique, na Alemanha. O título inspirou-se em um verso do poeta Aleksandr Odoiëvski, exilado na Sibéria: “Da centelha nascerá a chama!” Centenas de exemplares foram distribuídos por uma rede clandestina de militantes, através das fronteiras alemã, austríaca e turca. Lênin era o redator-chefe e pontificavam na equipe Gueórgui Plekhánov, Pável Akselrod, Vera Zassúlitch, Yuliy Mártov e Aleksandr Potriéssov.
No “Projeto de declaração da redação do Iskra e da revista Zariá”, Lênin afirmou que o órgão comunista liga os fatos concretos às manifestações do movimento operário, conduz o leitor a um ensinamento profundo, a partir dos acontecimentos mais simples e universalmente conhecidos. Não pode, assim, se limitar a reproduzir documentos e deliberações da cúpula. Cabe-lhe selecionar e analisar questões da atualidade, em conexão com a ideologia que sedimenta as convicções.
No entender de Lênin, para fazer o elo entre elementos da ideologia comunista, a propaganda persuasiva e o chamado à ação organizada, os folhetos e as brochuras tinham se tornado insuficientes, por se circunscrevem, geralmente, a assuntos locais ou aspectos econômicos do cotidiano. Havia chegado a hora de criar uma “forma superior de agitação” que complementasse as anteriores, isto é, “uma agitação pelo jornal, registrando periodicamente ao mesmo tempo as queixas dos operários, as greves operárias, as outras formas de luta do proletariado e todas as manifestações da opressão política”. Note-se a distinção que Lênin estabelece entre propaganda e agitação. A propaganda propõe-se a divulgar e esclarecer aos trabalhadores a teoria marxista e as estratégias do partido; ajuda a compreender os objetivos gerais para o futuro e o desenvolvimento da sociedade. A agitação baseia-se principalmente na política corrente e nas questões socioeconômicas, contribuindo para a solução dos problemas táticos imediatos [4].
O “fio condutor” para a criação da organização revolucionária era o jornal político, que poderia “fazer progredir sem cessar essa organização em profundidade e em largura, para toda a Rússia (…), fiel aos princípios e abarcando os diversos aspectos da vida”. Ao mesmo tempo, um veículo capaz de “despertar em todos os elementos um pouco conscientes da população a paixão das revelações políticas (…), levar a cabo a nossa tarefa: concentrar todos os elementos de descontentamento e de protesto políticos para fecundar o movimento revolucionário do proletariado”. Os artigos jornalísticos deveriam tirar dos fatos “conclusões determinadas em função dos objetivos finais do socialismo e das tarefas políticas do proletariado russo” [5].
Pelo menos quatro quesitos básicos precisavam ser cumpridos para a jornal partidário conquistar credibilidade junto aos leitores, segundo Lênin: a) a seriedade da informação, o que significa “ir ao local, escolher os documentos, organizar fichários, fazer estatísticas, não omitir data ou nome”; b) a interpretação marxista dos fatos sociais; c) o vigor da expressão”; d) boas reportagens devem basear-se em “documentação nova, múltipla, recolhida e elaborada por homens competentes”, recrutados entre os quadros mais preparados para a tarefa [6].
Robert Service, biógrafo de Lênin, define o estilo do Iskra como escolasticamente marxista, pressupondo que os leitores não só fossem “altamente alfabetizados”, como também tivessem “sólido conhecimento dos debates socialistas internacionais contemporâneos”. E completa: “Os leitores-alvo eram ativistas revolucionários que já professavam o marxismo, e Iskra, na verdade, era menos um jornal do que um periódico em forma de jornal, projetado para funcionar no lugar de um comitê central partidário. Mas era um começo. O próximo passo seria consolidar Iskra e empregá-lo como um órgão de propaganda para a realização do Segundo Congresso do partido [7].
O que importava, para Lênin e demais redatores do Iskra, não era exibir virtuosismo, e sim adotar uma linguagem de exortação, imoderada e direta, que suscitasse afinidades e impelisse os leitores-militantes à participação política imediata. “Para eles, a retórica abrasiva era a manifestação de uma beligerância necessária e realista. Palavras delicadas e argumentos elegantes não eram as exigências mais importantes para a derrubada da monarquia Romanov” [8]. O estilo aguerrido apareceu no primeiro artigo que Lênin assinou com seu nome, em dezembro de 1901, na revista Zariá (Aurora). Ele abordou a questão agrária, inclusive denunciando o “caráter nefasto” das teses de economistas que minimizavam a importância de um partido de vanguarda antitsarista e subestimavam a influência da consciência socialista na organização dos trabalhadores da cidade e do campo.
partir da ideia de Lênin, e com sua colaboração ativa, o grupo do Iskra elaborou o projeto de programa do Partido Operário Social Democrata Russo (publicado no número 21 do jornal), desempenhando também papel relevante na organização do Segundo Congresso, que aconteceria em julho-agosto de 1903. O Iskra já era reconhecido como publicação influente entre os revolucionários russos. Uma resolução do Congresso destacou a sua participação na construção do POSDR e o formalizou como órgão central, “a voz do partido que deve repercutir o essencial de suas teses”, segundo Lênin [9].
Em outubro daquele mesmo ano, após a cisão do partido em duas correntes – os bolcheviques (majoritários) e os mencheviques (minoritários) –, estes últimos assumiram o controle do Iskra, apoiados por Plekhánov, que fizera parte da redação inicial e rompera com Lênin. A partir daí inicia-se uma diferenciação entre o “velho Iskra”, que compreendeu os 51 primeiros números do jornal, ainda Lêninista, e o “novo Iskra”, menchevique, publicado até novembro de 1905 e que se transformou em um instrumento contrário ao marxismo revolucionário. Ainda na fase de “velho Iskra”, a trajetória do jornal não seria linear. Mesmo na Alemanha sofreu censura, obrigando seu conselho editorial a transferi-lo para Londres, onde circulou em 1902. No ano seguinte, mais um deslocamento forçado, desta vez para Genebra. De modo semelhante ao que ocorrera com projetos editoriais de Marx, o desejo de conscientizar a classe trabalhadora e difundir ideias revolucionárias esbarrava no violência policial, que forçava a redação a sucessivas trocas de cidades e países para despistar a repressão.
No curso das mobilizações populares que resultaram na Revolução Russa de 1905 – o “ensaio geral” do processo de crises, conflitos, desdobramentos e mudanças políticas cuja culminância será a Revolução Bolchevique de 1917 –, Lênin reorientou a imprensa partidária a substituir o binômio agitação e propaganda por palavras de ordem táticas, com vistas a incrementar as lutas do proletariado e do campesinato para a futura tomada do poder. Em outras palavras, o jornal deveria converter-se num guia para a ação, diversificando-se ao máximo para alcançar o conjunto da classe operária [10]. De dezembro de 1904 a maio de 1905, editou, em Genebra, o Vperiod (Avante!), seminário bolchevique clandestino, com a tendência política do “velho” Iskra. O jornal serviu para preparar a corrente aglutinada em torno de Lênin nas pelejas internas no Terceiro Congresso e, depois, instigar a insurreição.
Na sequência do fracasso da Revolução de 1905, com o refluxo e o enfraquecimento das forças populares, o Vperiod se dissolveu no semanário Proletári (Proletário), que passou a ser o órgão central do partido, na mesma linha de seu antecessor. A primeira fase do jornal durou de maio a novembro de 1905. Lênin assinou mais de 50 artigos e notas, depois reproduzidos em folhetos e pequenos jornais clandestinos. O recrudescimento da repressão em São Petersburgo obrigou Lênin, em 1907, a refugiar-se em Helsinque, na Finlândia. A redação também foi deslocada para lá. Com breves interrupções, o jornal circulou clandestinamente de agosto de 1906 a novembro de 1909, quando a plenária do Comitê Central eleito no IV Congresso (de unificação) do POSDR decidiu suspender a publicação, a essa altura com periodicidade mensal e impressão em Paris, embora com circulação restrita. Nesses três anos, foram editados mais de cem artigos e notas de Lênin, aí incluídos os textos em que expôs a tese de que, nas condições particulares da Rússia, a classe trabalhadora assumiria o papel progressista que a Segunda Internacional atribuíra à burguesia na etapa da revolução democrático-burguesa, isto é, caberia essencialmente às lutas do proletariado, em consonância com a diretriz política de um partido comunista centralizado, abrir caminho para uma revolução socialista, a despeito do atraso do país [11].
Com a retomada progressiva do movimento operário a partir de 1910, a ideia de relançar um jornal partidário voltou a motivar Lênin, que entre 1908 e 1911 viveu na Suíça e na Franca e em deslocamentos a outros países europeus. “Estou convencido de que o partido tem necessidade, presentemente, de um órgão político que apareça com regularidade, que conduza com firmeza e medida uma política de luta contra a desagregação e o desencorajamento”, escreveu a Máximo Górki [12]. Lênin coletou fundos e organizou o Zvezda (Estrela) e, posteriormente, o Nóvaia Zvezda (Nova Estrela), distribuídos a partir de Moscou em dezembro de 1910 e começo de 1911, respectivamente. Ainda que com durações efêmeras, os dois jornais levaram adiante o propósito de aprofundar os temas sociais, os debates ideológicos, promover a agitação nas fábricas e construir as bases do partido.
Os artigos de Lênin nos dois primeiros numeros do Zvezda, sob o pseudônimo Iline, comprovam a relevância dada por ele às orientações políticas por intermédio de periódicos voltados à vanguarda revolucionária. Segundo Jean Fréville, estes textos “são referências vivas de sua visão crítica” e se destacam como elementos essenciais na batalha das ideias que travava naquele momento com correntes do movimento operário europeu”. Fréville acentua que Lênin “desaprova interpretações de certos dirigentes de esquerda que empregam categorias de análise equivocadas e geralmente inspiradas no reformismo social-democrata, que acabam por manter as estruturas fundamentais da dominação da burguesia”. E acrescenta: “Ele defende, em contrapartida, citando Engels, um ‘marxismo criativo’, que não seja dogmático em suas premissas e que se torne decisive como guia para a ação, dialético em seus fundamentos teóricos e capaz de elucidar o caráter universal e contraditório do desenvolvimento histórico, dos problemas práticos concretos da época, propondo ações de agitação, transformação e ruptura econômica e política em cada etapa histórica, numa perspectiva de impulsionar e levar ao triunfo as massas populares e o proletariado” [13].
Não é demais recordar que, desde o exílio no início do século, Lênin definia o órgão oficial do partido como elemento de ligação com o proletariado nas cidades e fábricas. No artigo “Por onde começar?”, publicado no número 4 do Iskra, em 1901, ele pontuou que, desenvolvendo um trabalho sistemático, o jornal “penetrará entre a pequena-burguesia das cidades, os artesãos das aldeias e os camponeses, e tornar-se-á assim um verdadeiro órgão político popular” [14]. Essa missão estratégica da imprensa revolucionária se articulava com questões programáticas, tais como o caráter e o conteúdo prioritário da agitação política, as tarefas de organização e o plano de formação de um partido marxista da Rússia. O artigo repercutiu tanto na Rússia como no exterior, através de reedições e traduções em brochura baseadas no texto divulgado pelo Iskra.
No seu livro Que fazer? (1902) – que demorou mais tempo para ser escrito do que o pretendido, justamente devido à sua dedicação ao Iskra e à produção do programa do partido –, Lênin detalhou quais deveriam ser o público deste jornal e seu objetivo: “Esse auditório ideal para as revelações políticas é precisamente a classe operária, que tem necessidade, antes e sobretudo, de conhecimentos políticos amplos e vivos, e que é a mais capaz de aproveitar esses conhecimentos para empreender uma luta ativa, mesmo que não prometa qualquer ‘resultado tangível’. Ora, a tribuna para essas revelações diante de todo o povo, só, pode ser um jornal para toda a Rússia.” Chamou a atenção para a necessidade de as organizações locais se esforçarem para viabilizar um veículo para toda a Rússia: “Enquanto não for assim, não poderemos publicar nem mesmo um único jornal que seja capaz de servir verdadeiramente o movimento, através de uma grande agitação pela imprensa.” [15].
Em 22 abril de 1912, os bolcheviques lançaram o seu primeiro jornal diário, o Pravda (Verdade). Uma das características marcantes foi incentivar a participação dos leitores, publicando, a cada número, dezenas de cartas e artigos escritos por operários descrevendo as suas condições de vida, as explorações e os abusos de que eram vítimas nas fábricas, as aspirações para o futuro. Essa preocupação em elevar o nível de consciência sem perder de vista questões mais imediatas do cotidiano dos trabalhadores ajudou a popularizar o jornal, cuja tiragem média alcançava 40 mil exemplares, tendo chegado a imprimir 60 mil. O êxito também pode ser medido pelo bom resultado da coleta de fundos junto a grupos de operários de fábricas, o que incrementava o caráter de classe desejado pelo Pravda. Regularmente eram divulgados balanços das subscrições. A Rússia vivia um período de agravamento de tensões sociais e políticas, e o Pravda ocupava um espaço diferenciado na divulgação de reivindicações, manifestações e greves operárias, graças ao trabalho de correspondentes espalhados pelo país.
Lênin continuava exilado em Paris; temia perder influência sobre os bolcheviques e, ao mesmo tempo, estava receoso de voltar para São Petersburgo, onde corria alto risco de ser preso. Seguiu, então, para a Cracóvia, de onde enviava artigos para o Pravda e transmitia orientações ao comando da redação na Rússia. Ele pôs em relevo uma vinculação editorial cada vez maior às demandas da classe operária: “Um jornal proletário é uma tribuna dos proletários. Há que se levantar na Rússia inteira, um atrás do outro, os problemas da vida proletária em geral e da democracia proletária em particular. Os trabalhadores de São Petersburgo começaram a obra. À sua energia, deve o proletariado da Rússia o primeiro jornal proletário, depois de duros anos de provação. Continuemos, então, sua obra, todos apoiando e dando novo impulso ao jornal proletário da capital, a primeira andorinha dessa primavera em que toda a Rússia se cobrirá de uma rede de organizações proletárias com seus próprios jornais.” [16].
No dia a dia, a distância geográfica impedia Lênin de exercer interferência mais efetiva junto ao jornal. O conselho editorial tentava evitar multas governamentais, processos judiciais e ameaças de interdição, caminhando no fio da navalha entre a combatividade e a moderação na abordagem de temas que pudessem atiçar a ira do regime. Só durante o primeiro ano do diário, foram abertos 36 processos contra seus redatores. Nem o próprio Lênin escapou de “alterações atenuadoras” introduzidas pela redação em alguns de seus textos, nem da rejeição de 47 dos seus 331 artigos escritos antes de eclodir a Primeira Guerra Mundial. Irritado, ele enviou carta ao conselho interpelando-o sobre as razões dos vetos: “De um modo geral não faria mal a ninguém dar uma notificação sobre artigos recusados. Esta não é, de modo algum, uma exigência excessiva. Escrever para a cesta de papel, i. e., escrever artigos que são rejeitados é muito desagradável” [17]. Na verdade, disputas internas no partido também influíam nas escolhas dos textos que deveriam ser publicados ou engavetados.
O início da guerra intensificou o cerco policial aos bolcheviques. A coação ao Pravda foi implacável. De um total de 355 edições, entre 22 de abril de 1912 a 8 de julho de 2014, 73 foram punidas, 52 confiscadas e 21 multadas, com prejuízos financeiros irrecuperáveis. Sem contar as inúmeras apreensões, punições e multas aplicadas a oito diferentes títulos adotados pelo Pravdapara tentar driblar a censura e resistir às arbitrariedades [18]. Em 21 de julho de 1914, depois de ser empastelado pela polícia e ter a sua equipe presa, deixou de circular.
O Pravda voltaria a ser publicado, como órgão do Comitê Central, às vésperas da vitoriosa Revolução de 1917, quando a efervescência política levou à rearticulação da imprensa comunista clandestina. Com os bolcheviques em posição expressiva no primeiro governo revolucionário, Lênin não mais exerceu funções no Pravda, em razão de suas atribuições no Kremlin e dos problemas, tensões, percalços, disputas de poder e crises para administrar como chefe de governo e líder do partido. Mas não deixou de influir na orientação editorial nem de escrever artigos no Pravda (foram 47 apenas em 1917). “Tinha uma capacidade sem igual para expor seus argumentos e para defender uma causa militante. Suas descrições agressivas de seus inimigos e de suas políticas davam a todo mundo a sensação de que havia um homem capaz de exercer o poder governamental” [19].
Em meio ao turbilhão de 1917, Lênin abordou um tema crucial no artigo “Como garantir o sucesso da Assembleia Constituinte: sobre a liberdade de imprensa”, editado no número 11 do jornal Rabótchi Púty (O Caminho Operário), em 28 de setembro de 1917. Seu biógrafo Tamás Krausz foi preciso ao resumir a principal ideia do líder bolchevique no texto: “a democracia burguesa não é liberdade, mas ‘liberdade de compra’”. A democracia burguesa como “forma de dominação capitalista da mais alta ordem”, assinala Krausz, orientava o pensamento de Lênin e, por extensão influía em sua compreensão da liberdade de imprensa [20]. Basta ler o que ele escreveu no Rabótchi Púty para autenticar a linha de interpretação do biógrafo: “Os capitalistas (seguidos, devido à estupidez ou à inércia, por muitos SRs e mencheviques) denominam ‘liberdade de imprensa’ uma situação em que a censura é abolida e todos os grupos publicam livremente todos os tipos de periódicos. Na verdade, não se trata de liberdade de imprensa, mas liberdade dos ricos, da burguesia, para que enganem a massa oprimida e explorada do povo.” Lênin foi ainda mais categórico ao se referir às injunções econômicas na conquista de maior audiência: “Pegue, digamos, os jornais de Petrogrado e Moscou. Você verá imediatamente que são os jornais burgueses … que têm, de longe, os maiores índices de circulação. O que explica essa prevalência? Não é de forma alguma a vontade da maioria, pois as eleições demonstraram que, nas duas capitais, a maioria (uma esmagadora maioria, aliás) prefere os democratas, isto é, os SRs e os bolcheviques. Esses três partidos representam de três quartos a quatro quintos dos votos, ao passo que a circulação dos jornais que eles publicam é certamente menor do que um quarto, ou até menos de um quinto, de toda a imprensa burguesa. … Como isso acontece? Todos sabem muito bem por quê.”
Para desfazer a prevalência desmedida dos veículos burgueses, ele defendeu o “monopólio estatal sobre os anúncios privados na imprensa”, após a tomada do poder: “O poder estatal na forma dos sovietes toma todas as gráficas e todos os jornais e os distribui equitativamente: o Estado deveria vir primeiro – em benefício dos interesses da maioria das pessoas, a maioria dos pobres, particularmente a maioria dos camponeses, que por séculos foram atormentados, esmagados e embrutecidos pelos proprietários de terras e pelos capitalistas.”
As circunstâncias, contradições e obstáculos enfrentados pelo primeiro governo revolucionário se refletiram nas análises mais esparsas de Lênin sobre a imprensa. Ele voltou a tratar da liberdade de imprensa na sua 8ª tese para o I Congresso da Internacional Comunista, realizado de 2 a 6 de março de 1919, em Moscou. Novamente atacou os monopólios e a opulência financeira que, na maioria dos países, distorcem os processos de produção informativa. A seu ver, a liberdade de imprensa é “um engano enquanto as melhores rotativas e os melhores estoque de papel estão monopolizados pelos capitalistas e enquanto sobreviver o poder do capital sobre a imprensa”. Por isso, sublinhou a necessidade de ruptura com o modelo da imprensa burguesa, que transforma a informação em mercadoria como qualquer outra: “Para se conquistar a igualdade efetiva e a verdadeira democracia para os trabalhadores, para os operários e camponeses, é preciso começar por privar o capital da possibilidade de alugar escritores, de comprar editoriais e subornar jornais.” [21].
Em contraposição às insuficiências da liberdade de imprensa sob o jugo do capital, Lênin mencionou parâmetros que, em linhas gerais, deveriam ser introduzidos a partir da Revolução de 1917: “A verdadeira liberdade de imprensa surgirá no regime em que acreditam os comunistas, no qual não existirá a possibilidade de enriquecer à custa dos outros, não existirá a possibilidade objetiva de subornar direta ou indiretamente a imprensa ao poder do dinheiro, não haverá obstáculos para que todo trabalhador (ou grupo de trabalhadores, qualquer que seja seu número) tenha e desfrute do mesmo direito de utilizar as rotativas e o papel, que pertencerão à sociedade.” [22].
Em suma, ele tinha em mente uma imprensa não mercantilizada, porém na esfera de influência e controle do Estado e do Partido Comunista, com as implicações e os limites daí decorrentes nos planos do direito à informação e da liberdade de opinião.
Nos últimos escritos jornalísticos de Lênin, percebe-se um giro conceitual quanto à função social da imprensa. O teórico do jornal político-partidário como peça-chave para a formação da consciência revolucionária e da unificação ideológica do proletariado inseria agora, de maneira mais realista, os meios de difusão na complexa conjuntura do país, em que os problemas dificultavam uma transição para o socialismo. A imprensa soviética deveria deixar de lado “uma atenção desmedida às politicagens e questões pessoais de direção política” e dedicar-se mais aos temas de interesse dos trabalhadores. Os jornais precisavam mudar o foco: de simples produtores de notícias políticas do dia para órgãos sérios de “educação econômica das massas”. E se explicou: “A imprensa terá que destacar os problemas do trabalho em seu enfoque mais imediato e prático. Deve se converter no órgão da comuna de trabalho, no sentido de fazer pública toda informação que os diretores das empresas capitalistas procuravam ocultar” [23].
Assim, a imprensa bolchevique não perdeu sua função com a chegada ao poder, mas teve que adaptar-se a diretivas político-ideológicas mais severa, situações complexas e conflitos de várias ordens vivenciados pelo país. Segundo Álvaro Bianchi, na sequência da Revolução de 1917, os jornais “passaram a difundir e defender as tarefas colocadas pela construção do novo Estado operário, organizando a classe para tal”. E prossegue apontando os câmbios de época que se estendiam à imprensa: “Durante esse período, a organização da produção é um dos temas mais frequentes na imprensa. Os debates desenvolvidos em torno da Nova Política Econômica e da industrialização encheram as páginas dos jornais. A imprensa destinada aos camponeses passou a veicular, junto com os temas da política nacional e internacional, artigos técnicos aconselhando formas de aumentar a produção, a melhor época do ano para plantar e colher os diversos cultivos, etc” [24].
Pelo exposto, podemos concluir que, para Lênin, o jornal de uma organização revolucionária é o lugar da transição entre a teoria “pura” e o apelo à ação, indispensável ao êxito da agitação e propaganda. A cada etapa histórica corresponde uma “tarefa da hora”, dominante e prioritária. Como organizador coletivo, cabe ao periódico unificar as opiniões dos membros da agremiação. “E a arma mais poderosa do partido para chegar à classe operária todo dia e a toda hora em sua própria língua.” [25].
Ao definir a imprensa como ferramenta para a solidificação do partido, Lênin compara-a ao andaime de um edifício em obras, que “facilita a comunicação entre os diversos grupos, ajuda-os a distribuir o trabalho e a observar os resultados finais alcançados graças a um trabalho organizado” [26]. E vai além: “Com a ajuda do jornal e na relação com ele, irá se formando por si mesma a organização permanente que se ocupará do trabalho local, mas também do trabalho geral e regular, que acostumará os seus membros a seguir atentamente os acontecimentos políticos, a valorizar a sua significação e sua influência junto aos diversos setores da população, a elaborar métodos adequados que permitirão ao partido revolucionário influir nesses acontecimentos.” [27].
A teoria do jornalismo, na formulação leninista, é o estudo de sua inserção na vida partidária. “O nosso órgão diretor deve estar em relação estreita com o partido, em ligação indissolúvel com o movimento do proletariado. Deve marchar à frente, iluminar o caminho.” Para isso, deve adotar um partidarismo consequente (defender o ponto de vista da classe operária); ter firmeza ideológica; orientar o povo; buscar a veracidade; e assumir o internacionalismo operário. Lênin também ressalta a formação de quadros: “Se agruparmos as nossas forças num jornal comum, veremos formarem-se na ação e destacarem-se das fileiras não só os mais avisados organizadores, os mais capazes chefes políticos do partido, que saberão, no momento certo, lançar a palavra de ordem da luta final e assumir a direção” [28].
Na esteira das concepções de Karl Marx sobre o jornalismo revolucionário, Lênin definiu três princípios básicos da imprensa comunista: educar as massas para elevar o nível de consciência política; organizar os setores mais combativos da classe operária em torno do partido; propagar a linha programática. Uma síntese de visões convergentes com Marx pode ser verificada nas palavras de Lênin, ao indicar que os jornais não refletem apenas a luta de classes, como mantêm com ela uma relação específica, pois são sujeitos da luta ideológica que se trava entre as diferentes forças políticas: “Na luta entre os órgãos da imprensa, os partidos, as frações e os grupos vão se cristalizando as tendências ideológicas e políticas com caráter realmente de classe; cada uma das classes forja para si uma arma ideológica e política para as batalhas futuras” [29].
Ao longo do século XX, tais concepções nortearam as diretrizes editoriais da imprensa de grande parte dos Partidos Comunistas aliados de Moscou no Ocidente – muitas vezes sem a necessária discussão crítica e sem tomar na devida conta os problemas internos e as inserções específicas das organizações, as peculiaridades culturais, os contextos sociopolíticos e as correlações de força de cada país.
Notas
* Versão revista, com alterações e acréscimos, do capítulo “Lênin: a imprensa como apelo à ação revolucionária” que faz parte do ensaio “Imprensa e revolução: Marx e Lênin, precursores de Gramsci”, incluído em meu livro Crítica da mídia e hegemonia cultural (Rio de Janeiro: Mauad, 2016).
1- Lênin citado por Madeleine Worontsov. Lênine e a imprensa. Lisboa: Antídoto, 1977, p. 43.
2 Mario Caciagli, “Introducción”, em Vladimir I. Lênin. La información de clase. México: Siglo Veintiuno, 1978, p. 9-15.
3 Luiz Alberto Moniz Bandeira. Lênin: vida e obra. 4a. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 47.
4 Vladimir I. Lênin. Propaganda e agitação. Moscou: Progresso, 1984, p. 7.
5 Ibidem, p. 60, 70 e 71.
6 Lênin citado por Madeleine Worontsov. Lênine e a imprensa, ob. cit., p. 116-117; Vladimir I. Lênin. La información de clase, ob. cit., p. 129.
7 Robert Service. Lênin: a biografia definitiva. Rio de Janeiro: Difel, 2007, p. 174.
8 Ibidem, p. 180.
9 Vladimir I. Lênin. Propaganda e agitação, ob. cit., p. 41.
10 Madeleine Worontsov. Lênine e a imprensa, ob. cit., p. 66.
11 Silvio Pons. A revolução global: história do comunismo internacional. Rio de Janeiro: Contraponto/ Fundação Astrojildo Pereira, 2014, p. 48.
12 Lênin citado por Máximo Górki. Lênin: biografia, cartas e escritos. São Paulo: Quilombo, 1980, p. 86-89.
13 Jean Fréville. Lénine à Paris. Paris: Éditions Sociales, 1968, p. 115-116.
14 Vladimir I. Lênin. Propaganda e agitação, ob. cit., p. 72.
15 Vladimir I. Lênin. “Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento”, em Obras escolhidas de V. I. Lénine (tomo 1).: Editorial Avante, 1977, p. 79-214, disponível aqui.
16 Vladimir I. Lênin. La información de clase, ob. cit., p. 128.
17 Lênin citado por Robert Service. Lênin: a biografia definitiva, ob. cit., p. 257.
18 Rafael Duarte Oliveira Venâncio. Lênin e o jornalismo soviético: imprensa como vanguarda política. São Paulo: Baraúna, 2010, p. 112.
19 Robert Service. Lênin: a biografia definitiva, ob. cit., p. 319-320.
20 Tamás Krausz. Reconstruindo Lênin: uma biografia intelectual. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 267-268.
21 Vladimir I. Lênin. La información de clase, ob. cit., p. 175.
22 Ibidem, p. 176.
23 Ibidem, p. 209.
24 Alvaro Bianchi, “Lênin e o jornal do partido”, Blog Junho, 21 de janeiro de 2016, disponível aqui.
25 Vladimir I. Lênin. Propaganda e agitação, ob. cit., p. 72.
26 Idem.
27 Vladimir I. Lênin. La información de clase, ob. cit., p. 44.
28 Ibidem, p. 173.
29 Vladimir I. Lênin. Esquerdismo: a doença infantil do comunismo, 1920, disponível no Portal Domínio Público aqui.
* Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-doutorados na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS, França) e no Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina). É pesquisador do CNPq, professor associado da Universidade Federal Fluminense e autor, coautor e organizador de mais de 30 livros editados no país e no exterior. Pela Boitempo publicou Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (2013) e O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (2012). Colabora com o Blog da Boitempo desde 2012.
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