segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

O “ponto G” das nossas utopias

Por Tarso Genro, no site Sul-21:

Às vezes é difícil. Na última semana, a ministra dos “direitos humanos” do próximo Governo afirmou ao jornalista Bernardo de Mello Franco que “é o momento da Igreja governar”, depois de afirmar que o “ponto G” é uma ideia desenvolvida pelo Ministério de Educação durante os governos petistas. Esta tese sucedeu a sua opinião – já então tornada pública – que a “ideologia de gênero é morte”. Se é o momento da Igreja governar, se as pessoas acreditam que o ponto G é uma invenção petista, se a ideologia de gênero pode ser configurada – como se fosse apenas uma insensatez – como “morte”, é preciso não somente “resistir”. É preciso repropor a utopia, não somente como meta, mas sobretudo como ação política unitária contra a barbárie que se avizinha, pois a utopia de direita venceu.

A sequência de opiniões da nova da nova ministra – entre outras opiniões de pessoas da equipe do futuro Governo – para ser tolerada majoritariamente em termos políticos, só pode demonstrar que a sociedade está doente. E que as instituições democráticas do país estão no limite da sua falta de credibilidade. Pode demonstrar, ainda, que estamos dispostos a tolerar quaisquer matanças e quaisquer violências, em nome da nova ordem anti-iluminista em instauração. Isaiah Berlin – o mais notável intelectual conservador democrático de língua inglesa – que se emocionou e vibrou com o fim do “império soviético”- dizia que Marx era um gênio, mas que foi responsável pelo empobrecimento material do mundo, com a sua proposta comunista.

Quando Berlin, todavia, sustentava que Kant também formulara conceitos nocivos para a Humanidade -com a sua visão imperativa da ética – acusando-o de querer “desentortar” um material impossível (os seres humanos) – condenando-os a viverem no “pragmatismo” eterno – ele, Berlin, apenas refutava os despotismos utópicos sem atentar para os delírios do pragmatismo. Na sua visão antiutopista, Berlin entendia que a democracia que observasse determinados valores instituiriam condições mínimas de Justiça, para que as pessoas – independentemente do “lugar” social em que vivessem – pudessem viver bem na comunidade. Berlin, assim, parecia esquecer que considerar todas as utopias como “perigosas” sem opor a elas “utopias realistas” – para usar uma expressão de Ernst Bloch – comporia apenas uma negação pragmática de um futuro melhor, equivalente a impedir que o desejo utópico pudesse da sentido a ações políticas humanistas e generosas.

À medida que uma pessoa como esta ministra – não pelas suas simpatias políticas imediatas mas pelas suas nulas qualidades intelectuais – pode chegar a um Ministério desta importância em nosso país, é lícito concluir que aqui tudo pode acontecer. Do surgimento de uma barbárie tipo “Sendero Luminoso”, até grupos armados privados, realizando “noites de cristais”, tanto em territórios indígenas como em bairros habitados por negros ou judeus. A vitória de Bolsonaro é a vitória de uma utopia de direita: governar sem limites das leis, consagração pelo voto popular – com a complacência hipócrita da mídia – e tutela militar preventiva: aquela que mesmo sendo moderadora, deixa fluir sem bloqueios o ódio de classe.

A fusão original – dentro da democracia política restrita – do “moderno” ultra-liberalismo de Paulo Guedes com a burguesia órfã do falecido PSDB, será bem sucedida se além de reduzir ao mínimo as funções do públicas do Estado, tornar o futuro presidente um pequeno e útil Mussolini. Sua função seria unificar o campo “reformista” e assim reconstruir o espaço político do país. de costas para a Constituição de 88, fazendo-o com os mais perversos e sem alma: os que acham que matar é uma meta, que a tortura é válida, que a religião pode ser o Estado e que os militares – mesmo contra a sua vontade – devem tutelar o país até a exaustão das suas forças morais e políticas.

Quais são estas forças: são os resíduos do iluminismo democrático que ainda nos restam e que são alvo -hoje em todo o mundo – de uma orquestrada campanha de eliminação das Luzes, pelas redes e pela maior parte da mídia, a partir do que os fascistas de todas as latitudes chamam de “marxismo cultural”. A imbecilidade sem limites – repetida todas os dias – se torna uma força material que unifica a barbárie contra a democracia e afasta a razão. E esta é cerne do convívio democrático entre os socialmente desiguais, que o Estado Social vem tentando compatibilizar.

Vamos fazer um acordo com Isaiah Berlin e dizer que, se podemos aceitar que as utopias podem ser perigosas e despóticas, os impulsos utópicos em defesa da Igualdade, da Justiça e da Liberdade, é que sempre vão mover os seres humanos para a diferença criativa e para a fraternidade. Pensar assim é soltar as amarras da emancipação contra a barbárie, deflagrando a imaginação, como diz Valesca de Assis numa das passagens mais brilhantes dos seu último “Harmonia das Estrelas”: um pai que diz a uma filha que “o veado inventou a mata porque gostava de correr e queria correr na mata”. Isso é mais ou menos como dizer “não aceito nada que está aí, por isso vou construir tudo de novo, só porque gosto da liberdade”.

Parece utopia nestes tempos de cólera? Se estamos vivendo a utopia da direita construída pelo pragmatismo autoritário, vamos a partir de amanhã construir o caminho da mata, traçando os novos rumos utópicos da radicalidade democrática. A natureza amanhece pelo encadeamento de infindáveis conexões sem intervenção da consciência e alimenta auroras indecifráveis, mas a história – e nela a democracia – só amanhece e se recria, com o pensamento humano “que inventa a mata” e os caminhos da mata. Simplesmente porque gosta de Justiça e Liberdade.

* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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