sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

2019: o mínimo esperado

Por Wladimir Pomar, no site Correio da Cidadania:

Para vis­lum­brar os ce­ná­rios de 2019 será pre­ciso ter em conta, além da in­fluência dos dis­túr­bios inter­na­ci­o­nais e da caó­tica si­tu­ação na­ci­onal, as ex­pe­ri­ên­cias his­tó­ricas dos go­vernos fas­cistas. Neste caso, tanto os que gal­garam go­vernos e po­deres de Es­tado através de golpes quanto os que che­garam lá através de elei­ções, todos com­bi­nando mé­todos de ação de di­fe­rentes tipos.

Isto é, mé­todos pa­cí­ficos e bru­tais, le­gais e ile­gais, es­ta­tais e não-es­ta­tais, tendo em vista eli­minar os ini­migos, su­bor­dinar ou es­magar os ali­ados, e cul­minar com a ins­tau­ração de um sis­tema di­ta­to­rial sobre toda a po­pu­lação. Tempo que va­riou de al­guns poucos anos a mais de uma dé­cada, de­pen­dendo da ca­pa­ci­dade de re­sis­tência e de re­si­li­ência dos ini­migos in­ternos. Em al­guns casos o fas­cismo só fra­cassou ao tentar sub­meter ou­tros povos através da agressão ar­mada.

Em nosso caso, apa­ren­te­mente, a co­li­gação fas­cista que galgou o go­verno bra­si­leiro pela via elei­toral não tem con­di­ções de “limpar” ra­pi­da­mente o ter­ri­tório de todas as forças de­mo­crá­ticas e po­pu­lares (que no­meia como pe­tistas, co­mu­nistas, es­quer­distas etc.). Mas há in­dí­cios de que tra­ba­lhará desde logo para im­pedir a atu­ação legal ou, pelo menos, criar obs­tá­culos para evitar que tais forças criem um mo­vi­mento po­lí­tico comum, gerem fortes mo­vi­mentos po­pu­lares e de­mo­crá­ticos e se re­vi­gorem para as fu­turas dis­putas elei­to­rais.

Em vista disso, é pos­sível que não haja qual­quer trégua desde o início de 2019. O que, desde logo, co­loca as forças po­pu­lares e de­mo­crá­ticas di­ante de op­ções ex­tremas: ca­pi­tular ou re­ci­clar-se rapidamente para en­frentar lutas de­fen­sivas de longa du­ração. Como a ca­pi­tu­lação tem sido rara no his­tó­rico de tais forças, ao con­trário do de­nodo com que en­fren­taram os re­gimes di­ta­to­riais, talvez seja con­ve­ni­ente dis­cri­minar os pos­sí­veis de­sa­fios prá­ticos e teó­ricos que terão que en­frentar.

Por exemplo, lutas de­fen­sivas de longa du­ração com­pelem os re­sis­tentes po­pu­lares e de­mo­crá­ticos a re­tor­narem às suas bases so­ciais. Isto é, ao chão das fá­bricas e de ou­tros lo­cais de tra­balho, às es­colas e cen­tros de con­vi­vência ur­banos e ru­rais, às co­mu­ni­dades de bairro e de rua. Só desse modo é possível co­nhecer as con­di­ções de tra­balho, de vida e de luta co­ti­diana das classes e ca­madas populares, in­te­grar-se a elas, e travar as lutas econô­micas, so­ciais, ide­o­ló­gicas e po­lí­tica ca­pazes de livrá-las da in­fluência fas­cista.

É evi­dente que par­tidos po­pu­lares que pos­suem mi­li­tância ampla e aguer­rida podem aplicar tais medidas mais ra­pi­da­mente. No en­tanto, tal van­tagem pode es­tender a ba­talha, mas não salvá-los da ofen­siva fas­cista se também não mu­darem sua es­tra­tégia. Es­tra­tégia que pro­por­ci­onou re­sul­tados posi­tivos ao re­tirar grandes con­tin­gentes po­pu­la­ci­o­nais da con­dição de po­breza e de mi­séria e abrir es­paços para o acesso de jo­vens po­bres às uni­ver­si­dades. No en­tanto, que foi in­capaz de im­pedir a ascensão fas­cista na dis­puta por uma so­lução de­mo­crá­tica, po­pular e na­ci­onal dos pro­fundos problemas do país.

Isso impõe às forças po­pu­lares uma apre­ci­ação mais re­a­lista do ca­pi­ta­lismo bra­si­leiro. Um capitalismo que não cum­priu se­quer a ta­refa his­tó­rica de de­sen­volver as forças pro­du­tivas de forma in­de­pen­dente, so­be­rana e avan­çada, que man­teve sua in­dús­tria atra­sada ci­en­tí­fica e tec­no­lo­gi­ca­mente e tem seus prin­ci­pais seg­mentos oli­go­po­li­zados por em­presas es­tran­geiras. Como na época co­lo­nial, o Brasil con­tinua de­pen­dendo da ex­por­tação de pro­dutos mi­ne­rais e agrí­colas e da im­por­tação de insumos in­dus­triais pro­du­zidos fora do país.

Só uma classe ca­pi­ta­lista atra­sada, de­pen­dente e su­bor­di­nada seria capaz de aceitar o des­monte da rede fer­ro­viária e da rede de ca­bo­tagem ma­rí­tima do país em prol do trans­porte ro­do­viário im­posto pelas mon­ta­doras es­tran­geiras. Só uma classe do­mi­nante ide­o­ló­gica e po­li­ti­ca­mente atra­sada, de­pen­dente e su­bor­di­nada ao ca­pital trans­na­ci­onal co­lo­caria o Es­tado, ou seu Poder de Es­tado, a ser­viço de tal atraso, de­pen­dência e su­bor­di­nação.

Nas poucas vezes em que o Es­tado bra­si­leiro foi ocu­pado por cor­rentes bur­guesas com viés in­de­pen­dente, a exemplo de Vargas, nos anos 1950, e de Jango, nos anos 1960, os se­tores do­mi­nantes fi­zeram com que o Poder de Es­tado, ou parte dele, se in­cum­bisse de alijar tais cor­rentes. Ex­pe­ri­ência his­tó­rica que obriga as cor­rentes po­pu­lares e de­mo­crá­ticas a ana­li­sarem e en­fren­tarem a questão do Es­tado ou do Poder de Es­tado de forma di­fe­rente da re­a­li­zada nos úl­timos anos.

Por exemplo, não foram poucos os que acre­di­taram que a Cons­ti­tuição re­pu­bli­cana e de­mo­crá­tica de 1988 lhes per­mi­tiria ir muito além de par­ti­cipar de par­la­mentos e go­vernos, in­clu­sive do go­verno cen­tral. E que seria pos­sível, além de con­so­lidar a re­pú­blica e a de­mo­cracia, su­perar o atraso econô­mico e so­cial através de uma in­dus­tri­a­li­zação so­be­rana, de um de­sen­vol­vi­mento in­de­pen­dente e de uma dis­tri­buição menos de­si­gual da renda e da ri­queza.

Tal sonho es­tra­té­gico teve como pres­su­posto que parte da bur­guesia, ao apoiar a eleição de Lula e, de­pois, de Dilma, seria capaz de mudar sua na­tu­reza. Isso, apesar das ra­zões de sobra que apon­tavam tal si­tu­ação como uma ano­malia his­tó­rica, mesmo apenas em re­lação ao pe­ríodo “re­pu­bli­cano-de­mo­crá­tico”. Ano­malia que po­deria ter sido de­tec­tada se tal classe do­mi­nante (que in­clui fra­ções im­por­tantes de classes do­mi­nantes es­tran­geiras) ti­vesse sido ana­li­sada de forma con­sis­tente, co­lo­cando a nu a pre­do­mi­nância e o mo­no­pólio das suas fra­ções mais con­ser­va­doras e re­a­ci­o­ná­rias sobre o Poder de Es­tado.

Isso pou­paria dis­sa­bores e de­si­lu­sões, a exemplo da des­co­berta de que as me­didas que au­men­taram a força e a au­to­nomia das ins­ti­tui­ções do atual Es­tado bra­si­leiro con­tri­buíram para im­pedir a adoção de me­didas contra o oli­go­pólio da mídia, mas per­mi­tiram levar a efeito ope­ra­ções po­li­ciais e ju­di­ciais contra or­ga­ni­za­ções e meios de co­mu­ni­cação po­pu­lares. Uma aná­lise re­a­lista da classe bur­guesa per­mi­tiria des­nudar que ela con­vive mal com a de­mo­cracia, mesmo quando tal de­mo­cracia se ma­ni­festa no sin­gelo di­reito de po­bres po­derem vi­ajar de avião.

Além disso, per­mi­tiria co­locar a nu os elos, mesmo en­co­bertos por mil e um dis­farces, entre ela e as cor­po­ra­ções trans­na­ci­o­nais, prin­ci­pal­mente norte-ame­ri­canas. E o en­tre­la­ça­mento in­ces­tuoso e ilegal dos mem­bros dessa bur­guesia com pa­raísos fis­cais e or­ga­ni­za­ções fi­nan­ceiras in­ter­na­ci­o­nais. Em ou­tras pa­la­vras, te­riam aler­tado que, em algum mo­mento, as fra­ções he­gemô­nicas dessa bur­guesia vol­ta­riam a mo­bi­lizar toda a classe para atentar contra os di­reitos de­mo­crá­ticos, mesmo sim­ples­mente for­mais.

Essa bur­guesia é in­capaz de aceitar a su­pe­ração das imensas de­si­gual­dades so­ciais pre­sentes em nosso país. Não con­segue con­viver com a ex­tensão dos di­reitos hu­manos a todos. Não pode con­viver com a su­po­sição de que o Brasil pode ser so­be­rano e ter uma po­lí­tica ex­terna que, por exemplo, man­tenha re­la­ções de igual­dade com An­gola, Peru e Es­tados Unidos. E teria au­xi­liado a es­cla­recer que Go­verno e Poder são cons­tru­ções di­fe­rentes.

Di­ante de tais con­di­ções, a con­quista de go­vernos por forças po­pu­lares não pode ser mais do que um passo tá­tico numa es­tra­tégia de longo prazo para par­ti­cipar do Poder de Es­tado e di­re­ci­onar tal Poder no sen­tido de re­forçar a in­de­pen­dência e a so­be­rania na­ci­onal e co­locar a má­quina es­tatal a ser­viço de todo o povo e não de uma mi­noria. Na re­a­li­dade, ao supor que Go­verno e Es­tado eram a mesma coisa, grande parte da es­querda bra­si­leira, em es­pe­cial do PT, ela­borou uma es­tra­tégia que tinha como meta única ser eleita para a di­reção de go­vernos e go­vernar em be­ne­fício dos po­bres e mi­se­rá­veis.

Ao acre­ditar que os de­mais apa­re­lhos do Es­tado se­riam sim­pá­ticos àquela “causa nobre”, parte da es­querda es­queceu que a bur­guesia tem como meta bá­sica a ob­tenção de lu­cros má­ximos e se sen­tiria ul­tra­jada por po­lí­ticas pú­blicas que trans­fe­rissem para os po­bres parte da re­ceita, ou da mais-valia ou mais-valor ge­rada pelo pro­cesso pro­du­tivo co­man­dado por ela. Por­tanto, em algum mo­mento mo­bi­li­zaria ide­o­ló­gica e po­li­ti­ca­mente (e, se ne­ces­sário, mi­li­tar­mente) não só os se­tores so­ciais sob sua in­fluência (como se­tores da pe­quena-bur­guesia, que pu­xaram as ma­ni­fes­ta­ções de 2015), mas também o apa­rato de Es­tado sob o co­mando de seus re­pre­sen­tantes (como as par­celas do ju­di­ciário que mo­no­po­li­zaram a Ope­ração Lava Jato, e do par­la­mento, que re­a­li­zaram o golpe de 2016).

Em ou­tras pa­la­vras, po­demos con­si­derar a ne­ces­si­dade de con­viver por um tempo re­la­ti­va­mente longo com uma bur­guesia pro­pri­e­tária de meios de pro­dução. Afinal, o ca­pi­ta­lismo e a ex­plo­ração do homem pelo homem só podem ser ex­tintos quando ti­verem com­ple­tado duas ta­refas his­tó­ricas: 1) de­sen­vol­vidas as forças pro­du­tivas ao ponto de aten­derem a todas as ne­ces­si­dades so­ciais; 2) tal de­sen­vol­vi­mento se tornar in­com­pa­tível e ir­ra­ci­onal com a di­visão so­cial entre pro­pri­e­tá­rios e não-pro­pri­e­tá­rios, ge­rando de­sem­prego es­tru­tural e brutal re­dução da ca­pa­ci­dade de con­sumo (vide a si­tu­ação a que estão che­gando os Es­tados Unidos em vir­tude de seu de­sen­vol­vi­mento tec­no­ló­gico).

Para que essa tran­sição se dê de forma ci­vi­li­zada, a questão chave con­siste em fazer com que o Es­tado tenha todo o povo como seu man­dante e seu ob­je­tivo má­ximo. Ou seja, que o Es­tado tenha a ca­pa­ci­dade e o pro­pó­sito de in­verter o prin­cípio moral bá­sico da bur­guesia: ao invés de “ex­plo­ração má­xima com o mí­nimo de bem-estar, li­ber­dades e so­be­rania”, adote a má­xima de “ex­plo­ração mí­nima ou ne­nhuma com o má­ximo de bem-estar, li­ber­dades e so­be­rania”.

Para tanto é ne­ces­sária uma es­tra­tégia que tenha a con­quista elei­toral de go­vernos como ins­tru­mento para a re­forma e trans­for­mação do Es­tado, ou do Poder de Es­tado, num poder a ser­viço da so­be­rania na­ci­onal, da am­pli­ação da de­mo­cracia e do bem-estar de todo o povo. E que tal es­tra­tégia parta da con­dição bá­sica para sua re­a­li­zação: laços pro­fundos, só­lidos e in­que­bran­tá­veis com a base da so­ci­e­dade, em toda a sua di­ver­si­dade, in­cluindo va­ri­e­dade con­si­de­rável de formas de as­so­ci­ação e de re­sis­tência.

Em 2019, é o mí­nimo que se es­pera das forças po­pu­lares e de­mo­crá­ticas para en­fren­tarem a ofen­siva fas­cista já em curso e evi­tarem der­rotas ainda mais pro­fundas de que as de 2016 e 2018. A con­ferir.

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