Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Ao incluir José de Alencar na lista de autores que os brasileiros deveriam ler em seu esforço "para não ter medo" de defenderem seu país, o ministro de Relações Internacionais Ernesto Araújo deu o conselho errado, para a plateia errada, com o personagem errado.
Além de romancista consagrado, José de Alencar (1829-1877) foi um dos mais duros e irredutíveis aliados da escravidão brasileira. Como deputado e como ministro da Justiça, cargo que ocupou por dois anos, travou uma luta, permanente contra a Abolição - o que torna sua indicação, num discurso de posse ministerial, um elemento vergonhoso para um país onde os afrodescendentes formam mais da metade da população, que construiu uma tradição de décadas de boas relações diplomáticas com as nações africanas.
Excluídos das obras completas de Alencar, possivelmente pelo constrangimento que poderiam provocar em familiares e descendentes, os artigos escravocratas do autor de Iracema saíram de circulação por mais de um 140 anos, o que permitiu que seu papel no principal debate político do país no século XIX permanecesse desconhecido.
Há mais de uma década, contudo, os textos foram reunidos num volume intitulado "Cartas a favor da escravidão" e hoje estão disponíveis em versão digital e impressa. Ali, Alencar se apresenta como um escravocrata assumido e irredutível. Tem ideias e formula. Mostra-se convencido tanto das necessidades do cativeiro para a preservação da ordem social e econômica do país, como chega a argumentar que o regime trazia benefícios para o próprio negro - a principal é que lhe daria acesso à "civilização", que seria incapaz de alcançar por seus próprios meios.
Num trabalho acadêmico de 2014, a cientista política Joyce Nathalia de Souza Trindade defendeu na Universidade Federal de São Paulo uma tese de mestrado com um título adequado a visão do personagem: " José de Alencar e a Escravidão: necessidade nacional e benfeitoria senhorial".
A professora registra que o escritor "acusa os defensores da abolição de pregarem uma falsa moral que ameaçava a sociedade brasileira e que inspirou o Imperador a se sentir um rei filantropo ao libertar uma centena de escravos, conceder títulos aos senhores que alforriassem escravos aptos para a Guerra do Paraguai".
Capaz de enxergar o movimento histórico, criado no país após a Guerra de Secessão americana, que encerrou o cativeiro nos Estados Unidos e reforçou o debate abolicionista no Continente, Alencar resiste as mudanças enquanto pode: "A escravidão caduca mas ainda não morreu". Insistindo na preservação do cativeiro por todos os meios, o autor se apega a uma visão social fatalista, a partir de uma tese que justificava a cativeiro sem deixar qualquer brecha para sua abolição: "Se a escravidão existia seria porque era necessária ao desenvolvimento da sociedade", explica a autora. "Ela seria útil até o momento em que a sociedade atingisse um nível de desenvolvimento que lhe permitisse não precisar mais dela".
Enfrentando um debate desfavorável, dentro e fora do país, Alencar fez uso frequente de um argumento infalível para quem se encontra em posição difícil: acusar o adversário de hipocrisia.
Numa das cartas, ele se dirige ao movimento abolicionista, que tinha raízes sólidas na Inglaterra, de onde partiam pressões frequentes contra o Brasil, para lembrar que no Velho Mundo também se consumia produtos de países que mantinham a escravidão na América: "o filantropo europeu, entre a fumaça do bom tabaco de Havana e da taça do excelente café do Brasil, se enleva em suas utopias humanitárias e arroja contra estes países uma aluvião de injúrias pelo ato de manterem o trabalho servil. Mas por que não repele o moralista com asco estes frutos do braço africano?"
A redescoberta desta face chocante de um autor obrigatório nos currículos escolares não é fruto do acaso.
Acompanhou o esforço dos movimentos contra o racismo no Brasil, que ganharam força nas décadas finais do século passado, colocando na ordem do dia a necessidade de conhecer as raízes - inclusive culturais - de uma ordem social excludente e preconceituosa que se tornou um dos traços marcantes do país de hoje.
Mesmo supondo que Ernesto Araújo fazia referência à obra de Alencar como ficcionista, as "Cartas a favor da escravidão" impedem que ele seja apresentado - sem qualquer ressalva - como autor recomendável às novas gerações e muito menos que seja apontado como referência por um ministro de Estado.
Como peça política e intelectual, as ideias contidas nas "Cartas" alimentam um dos mais nocivos textos já produzidos no país, enquanto a atuação política de José de Alencar ajuda a entender a desigualdade profunda do pais de hoje.
Dias depois de Jair Bolsonaro ter anunciado o fim do "politicamente correto" como um dos objetivos de seu governo, descobre-se que até hoje a maioria dos brasileiros não fez uma avaliação geral de um de seus romancistas mais conhecidos e divulgados.
Alguma dúvida?
Além de romancista consagrado, José de Alencar (1829-1877) foi um dos mais duros e irredutíveis aliados da escravidão brasileira. Como deputado e como ministro da Justiça, cargo que ocupou por dois anos, travou uma luta, permanente contra a Abolição - o que torna sua indicação, num discurso de posse ministerial, um elemento vergonhoso para um país onde os afrodescendentes formam mais da metade da população, que construiu uma tradição de décadas de boas relações diplomáticas com as nações africanas.
Excluídos das obras completas de Alencar, possivelmente pelo constrangimento que poderiam provocar em familiares e descendentes, os artigos escravocratas do autor de Iracema saíram de circulação por mais de um 140 anos, o que permitiu que seu papel no principal debate político do país no século XIX permanecesse desconhecido.
Há mais de uma década, contudo, os textos foram reunidos num volume intitulado "Cartas a favor da escravidão" e hoje estão disponíveis em versão digital e impressa. Ali, Alencar se apresenta como um escravocrata assumido e irredutível. Tem ideias e formula. Mostra-se convencido tanto das necessidades do cativeiro para a preservação da ordem social e econômica do país, como chega a argumentar que o regime trazia benefícios para o próprio negro - a principal é que lhe daria acesso à "civilização", que seria incapaz de alcançar por seus próprios meios.
Num trabalho acadêmico de 2014, a cientista política Joyce Nathalia de Souza Trindade defendeu na Universidade Federal de São Paulo uma tese de mestrado com um título adequado a visão do personagem: " José de Alencar e a Escravidão: necessidade nacional e benfeitoria senhorial".
A professora registra que o escritor "acusa os defensores da abolição de pregarem uma falsa moral que ameaçava a sociedade brasileira e que inspirou o Imperador a se sentir um rei filantropo ao libertar uma centena de escravos, conceder títulos aos senhores que alforriassem escravos aptos para a Guerra do Paraguai".
Capaz de enxergar o movimento histórico, criado no país após a Guerra de Secessão americana, que encerrou o cativeiro nos Estados Unidos e reforçou o debate abolicionista no Continente, Alencar resiste as mudanças enquanto pode: "A escravidão caduca mas ainda não morreu". Insistindo na preservação do cativeiro por todos os meios, o autor se apega a uma visão social fatalista, a partir de uma tese que justificava a cativeiro sem deixar qualquer brecha para sua abolição: "Se a escravidão existia seria porque era necessária ao desenvolvimento da sociedade", explica a autora. "Ela seria útil até o momento em que a sociedade atingisse um nível de desenvolvimento que lhe permitisse não precisar mais dela".
Enfrentando um debate desfavorável, dentro e fora do país, Alencar fez uso frequente de um argumento infalível para quem se encontra em posição difícil: acusar o adversário de hipocrisia.
Numa das cartas, ele se dirige ao movimento abolicionista, que tinha raízes sólidas na Inglaterra, de onde partiam pressões frequentes contra o Brasil, para lembrar que no Velho Mundo também se consumia produtos de países que mantinham a escravidão na América: "o filantropo europeu, entre a fumaça do bom tabaco de Havana e da taça do excelente café do Brasil, se enleva em suas utopias humanitárias e arroja contra estes países uma aluvião de injúrias pelo ato de manterem o trabalho servil. Mas por que não repele o moralista com asco estes frutos do braço africano?"
A redescoberta desta face chocante de um autor obrigatório nos currículos escolares não é fruto do acaso.
Acompanhou o esforço dos movimentos contra o racismo no Brasil, que ganharam força nas décadas finais do século passado, colocando na ordem do dia a necessidade de conhecer as raízes - inclusive culturais - de uma ordem social excludente e preconceituosa que se tornou um dos traços marcantes do país de hoje.
Mesmo supondo que Ernesto Araújo fazia referência à obra de Alencar como ficcionista, as "Cartas a favor da escravidão" impedem que ele seja apresentado - sem qualquer ressalva - como autor recomendável às novas gerações e muito menos que seja apontado como referência por um ministro de Estado.
Como peça política e intelectual, as ideias contidas nas "Cartas" alimentam um dos mais nocivos textos já produzidos no país, enquanto a atuação política de José de Alencar ajuda a entender a desigualdade profunda do pais de hoje.
Dias depois de Jair Bolsonaro ter anunciado o fim do "politicamente correto" como um dos objetivos de seu governo, descobre-se que até hoje a maioria dos brasileiros não fez uma avaliação geral de um de seus romancistas mais conhecidos e divulgados.
Alguma dúvida?
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