sábado, 23 de fevereiro de 2019

Democracia de fachada. Que país é esse?

Charge: André Dahmer
Por Joaquim Ernesto Palhares, no site Carta Maior:

Você anda pelas ruas, apesar dos milhares de sem teto, e a sensação é a de que vivemos na mais pura e genuína democracia. Parece que o país não sofreu nenhum ataque ao estado democrático de direito, vale dizer, não houve golpe. É como se nossa economia surfasse em ondas de crescimento, com pleno emprego, confirmados por amplas pesquisas e total vigência de direitos sociais e trabalhistas.

A Petrobras e a Embraer ainda parecem nossas. Brumadinho? Nada a ver com o lucro pelo lucro das privatizações. Reforma trabalhista? Nem pensar. Justiça do Trabalho? Não será extinta. Reforma da Previdência? Suicídio de idosos no Chile? Que calúnia! Mortes de garotos futebolistas? Chacinas? Tudo invenção dos comunistas ou do marxismo cultural.

No Brasil do faz de conta, o presidente da República tem uma equipe ministerial coesa, competente, escolhida exclusivamente por critérios técnicos e não políticos ou ideológicos. Seu vice é um político nato, leal parceiro, um democrata e ambos falam a mesma língua. O governo não volta atrás após uma decisão anunciada e inexistem declarações estapafúrdias, muito menos ministros aconselhando pais a retirarem seus filhos do país.

Os filhos do presidente – 01, 02 e 03 – não exercem nenhuma influência política, afinal não fazem parte do governo.

Você anda pelas ruas e é como se houvesse segurança plena, sem balas perdidas e um projeto de país e, pior, como se as pessoas soubessem que projeto é este, porque ele foi amplamente debatido na campanha eleitoral. O que sabemos é que no tripé – economia, segurança e fundamentalistas – figuram dois superministros:

O da economia que, naturalmente, nunca foi investigado pela Polícia Federal por má gestão em fundos de pensão, jamais foi sócio de Daniel Dantas, nunca trabalhou para o Pinochet, nem foi diretor de um banco com quase quarenta filiais em paraísos fiscais.

O da Justiça e dos "etceteras", ao tempo que era Juiz de Direito Federal da República de Curitiba, jamais determinou uma condução coercitiva ilegal ou deu uma sentença destituída de provas, fundamentada exclusivamente em delações premiadas de criminosos. Em sua brilhante carreira, enquanto juiz garantista e isento, ouviu muitos testemunhos, dezenas dos quais de criminosos confessos, em procedimentos de delação premiada, exceto um a quem, sem sentença, declarou tratar-se de um criminoso, contrariando inclusive decisões da Corte espanhola.

Da mesma forma, jamais vazou conversas de uma Presidenta da República; jamais interferiu em eleições prendendo a principal liderança popular do país e, por acaso, o principal concorrente do atual presidente, seu chefe. Um servidor público tão exemplar e cioso de suas obrigações que mesmo em férias e fora do país interfere em decisões de autoridades superiores.

Um ministro pop, ícone de uma legião de juízes (existem exceções) que jamais diferenciaria amigos de inimigos, brancos de negros, pobres de ricos. O país parece não lembrar, apesar da transmissão ao vivo e em rede nacional, da apresentação de certo Power Point, produzido pela força tarefa do Ministério Público Federal, onde foi "decretada" a culpa de um ex-presidente, sem nenhuma prova concreta, apenas CONVICÇÕES, mas que serviu de fundamentação para a apresentação de uma denúncia criminal contra o ex-presidente.

Um primeiro parêntese: esse Power Point, é parte integrante e fundamental de mais um processo contra o ex-presidente, na fila do forno condenatório. Teria sido ele produzido e utilizado exclusivamente para fundamentar uma denúncia ou para obter resultados eleitorais? A verdade é que ele foi apresentado no dia 15 de setembro de 2016 (pasmem!), apenas 17 dias antes do 1º turno das eleições para as prefeituras de todo o país.

Um segundo parêntese: a denúncia fundamentada nesse Power Point adotou a teoria do domínio do fato para acusar o ex-presidente. Segundo a denúncia, como mandatário da nação, ele deveria conhecer todos os "malfeitos praticados por servidores públicos e por membros de seu partido".

Estranho, muito estranho.

No nosso país existem determinadas acusações, investigações, denúncias, instalação de procedimentos judiciais e decretação de prisões de servidores e membros de outros partidos políticos, por envolvimento em escândalos de propina, que não geram o mesmo efeito. Por exemplo, os escândalos do Cartel de trens e metrô de São Paulo, assumido pela própria corruptora; obras civis de grande porte; licitações de transporte público; desvios em merenda escolar; crimes de caixa 2, denunciados em 2006 por Carta Capital, envolvendo campanhas de três dos principais candidatos do PSDB e outros tantos estão perdidos nos escaninhos da Justiça, alguns até mesmo com investigações policiais parados há mais de cinco anos.

Um terceiro parêntese: um ex-Senador de Minas, criador do crime que passou a ser conhecido como mensalão tucano, delitos praticados em 1998 durante sua gestão como governador, somente em 2017, ou seja, 19 anos depois, foi julgado e o réu preso.

O estranho é que vários envolvidos nestes crimes recentes foram presos e estão sendo processados, porém, dos figurões do PSDB somente um está sendo processado, mas ele próprio e os demais não sofreram nenhum outro tipo de constrangimento, além de breves notícias da imprensa e todos detêm o domínio do fato.

Não é estranho? Um dos principais envolvidos, tido e havido como "capa preta" do PSDB acaba de ser libertado por ordem do "soltador mor" e o crime corre para a prescrição.

Agora, Brumadinho, onde engenheiros e técnicos são presos e o presidente da empresa, também detentor do domínio do fato, até agora nada...talvez por ter sido indicado para o cargo pelo Mineirinho.

Falando em bandidos...

É como se as milícias não existissem e nada tivessem a ver com a família real e com assassinatos de uma vereadora e lideranças sociais. Calúnia também é afirmar que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) teria grampeado representantes do Papa, chefe do Estado do Vaticano e autoridade máxima da Igreja Católica.

Você anda pelas ruas e leva um susto porque, apesar de tudo, as ruas estão vazias. Impossível não lembrar de 2013, 2014, 2016... E você se pergunta "o que está acontecendo"? E observa a verdadeira queda de braços, por privilégios, entre mídia e governo.

Que país é esse?

Até parece que a grande mídia é investigativa, movida pelo afã da verdade, pelo compromisso com a comunicação. Vejam o sossego que deram para o motorista da família Presidencial que, apesar dos "rolos", é excelente pé de valsa e passa bem, muito obrigado, quem sabe um dia, quando der na telha, ele aparece lá Ministério Público...

Mas isso tem explicação: pode ser porque ele não é um petralha.

Na verdade, o atual governo é isento de suspeitas. Nada pesa contra o Presidente da República, sua família, partido e base de apoio. Chegou ao Planalto numa disputa totalmente dentro das regras democráticas, um WhatsApp aqui outro ali, tudo sem muita importância, tanto que foi investigado pelo TSE que nada encontrou de ilegal.

No geral, trata-se de um governo composto por um fantástico quadro de ministérios que não tem, de jeito nenhum, uma suposta sequestradora de uma criança indígena; um detrator de Chico Mendes; um defensor de milícias; um acusado de fraude ambiental; um suspeito de desviar fundo de pensão; suspeitos de desvios de recursos do Fundo Partidário (suspeita-se que o dinheiro foi transferido para uma senhora, dois dias antes do final da campanha, ela já se encontra no exterior).

Também não tem, de jeito nenhum, aquele bando de urubus engravatados a serviço das corporações estrangeiras, ocupando cargos de ponta. Nem juiz acostumado à fama, acusado de abuso de poder, com as Nações Unidas no pescoço. Na Pátria Amada, não tem nada disso e a polícia só pode matar em legítima defesa.

Você anda pelas ruas e é como se no poder Judiciário, ninguém tivesse rabo preso. Vide a Suprema Corte, contra a qual não pesa nenhuma suspeita. Que digam as mútuas acusações feitas em plenário, ao vivo e a cores, para todo o país assistir. Aliás, o sentimento é de que as instituições operam normalmente. É por isso que, no Brasil, golpes são impossíveis de serem armados e executados.

Ante qualquer ameaça ao regime democrático, a imprensa, o STF, o STJ, o TSE, TRFs, o MP e própria PF atuam em socorro da democracia. Seus membros jamais operam por interesses próprios ou políticos. É por isso que essas instituições são tão ilibadas. Os agentes de justiça zelam, dia após dia, pela proteção do Estado Democrático de Direito. Tudo do povo, pelo povo e para o povo, frase consagrada por Abraham Lincoln.

Um golpe também seria impossível porque temos um conjunto, diversificado e representativo da pluralidade que é o país, de empresas de comunicação. Comprometidas com a liberdade de expressão essas empresas estão preocupadas em informar bem as pessoas. Não manipulam o debate, trabalham com o contraditório, criam dúvidas saudáveis em seis leitores ou telespectadores, verdadeiramente botam o país para pensar.

Aliás, seriam as primeiras a denunciar conspirações ou golpes de estado. Nacionais e internacionais, em respeito à soberania dos povos e temor à iminência de uma guerra, pauta impensável, afinal, estamos seguros no Brasil. É cada vez menos importante o conteúdo que vem da imprensa mundial, não vem ao caso o que afirmam ou escrevem, afinal, são dominados por comunistas e impregnados de marxismo cultural.


É fake news que mais de 60 milhões de brasileiros estejam com seus nomes "sujos" nos cadastros de controle de crédito.

O atual governo está tão ciente de que nosso pior inimigo é a desigualdade social, que passaremos a fazer justiça na cobrança de impostos. Estamos seguros de que nosso sistema bancário jamais apostará contra o país na ciranda financeira. O Banco Central está fortalecido, mais precisamente sobre o controle do lucro (spread) dos bancos, impedindo que ele seja o mais alto do mundo e em boas mãos, um economista de Chicago, neto do pai do neoliberalismo brasileiro.


Você anda pelas ruas e é como se vivêssemos em um país soberano. Um Brasil que jamais permitiria a instalação de bases militares do império em território pátrio, muito menos entraria ou facilitaria uma guerra contra um país irmão, como é o caso da Venezuela.

Aliás, seria impensável um general brasileiro assumir o subcomando no Comando Sul dos Estados Unidos. O atual governo, inclusive, deu provas de total consciência de que isso seria incompatível com nossa política nacional de defesa, até porque isso foi decidido no Congresso Americano e não no brasileiro, basta procurar vídeo no youtube.

Além disso, temos um chanceler que é exemplo de estratégia e inteligência. Sem dúvidas, ele saberá aproveitar as oportunidades abertas na disputa pela hegemonia entre Estados Unidos e China. Até porque tem sido inspirado pelo guru da República. Um homem verdadeiramente sábio, conhecedor dos mistérios dos astros e das principais teorias filosóficas que nos guiaram até este verdadeiro paraíso na terra.

Tanto que na Educação, ministério de tão grande relevo, existe outro pupilo por ele ungido. Um ministro que mostra ter plena consciência da importância da universidade pública. Privatizar o ensino superior? Militarização total, em todas as esferas do ensino? Controle ideológico de professor? Escola Sem Partido? Questões que passam longe das preocupações de alunos e professores.

Não nos enganemos: o que ouvimos de críticas não passam de calúnias, afinal, a ONU é comunista, o Papa é comunista, até Obama, para quem Lula é o cara, é comunista. E que ninguém aqui nos acuse de falsa ironia! Trata-se de ironia verdadeira e assumida, porque você anda pelas ruas, praias, parques, shoppings e a sensação é a de que nada de grave está acontecendo.

Falando sério...

Marielle e seu motorista foram assassinados e até agora, passados mais de 11 meses de "investigação" sequer suspeitos foram efetivamente apontados. Um escândalo pior do que outro surge na mídia e desaparece, sem consequência alguma. Nada funciona e aumentam represálias e ameaças contra parlamentares, artistas, professores, cientistas, jornalistas.

Agora, após a morte dos meninos no Flamengo, descobriu-se que o local não tinha "Habite-se". E pior: a prefeitura do Rio de Janeiro, segunda cidade em importância da América do Sul, também não tem "Habite-se".

Aliás, certamente, o Brasil não tem "Habite-se".

Fake news continuam a todo vapor disseminando ondas e ondas de desinformação e, ninguém, até agora, impediu isso. Nenhuma voz é forte o bastante – seja do meio político, jurídico ou da sociedade civil – para alertar o risco imenso que corremos.

Risco de entrarmos em uma guerra que justifique o Estado de exceção e policialesco que, ao fim e ao cabo, é o que está aparecendo no horizonte, porque, como afirma Manolo Monero - editor de El Viejo Topo de Madri –, em Crisis de las ideologías e ideologías de crisis, nós estamos vivendo um anticomunismo sem comunistas, um anti-socialismo sem socialistas, uma contrarrevolução sem revolucionários.

As elites dominantes sentem que não têm inimigo. Não precisam mais pactuar seu modo de vida, seus privilégios, suas crenças, com uma plebe que não possui um projeto, um partido, um movimento social e sindical forte, portanto com baixa capacidade de resposta, vide o silêncio constrangedor das ruas. O que está em questão é o reformismo.

Falar do programa do PT como o programa de uma força comunista, socialista, revolucionária é um exagero histórico. O que o sistema não admite hoje é o reformismo em fortes ou débeis versões. O que aparece é uma elite com aspiração e poder de impor seus pré-juízos a toda a sociedade.

O que resta à democracia? Somente seu aspecto mais formal, um procedimento para selecionar as elites governantes. Desaparece a democracia entendida como meio para conseguir justiça social, igualdade substancial entre homens e mulheres e desenvolvimento das liberdades públicas.

Sobra, portanto, essa democracia que estamos vivendo:

Uma democracia que não decide nada de fundamental, capturada pelas determinações dos poderes econômicos que colocaram o Estado brasileiro a seu serviço. Na prática, uma espécie de "stalinismo neoliberal que depende exclusivamente do Estado para viver e dominar a plebe."

E mal chegamos a 50 dias de governo...

* Joaquim Ernesto Palhares é diretor da Carta Maior.

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