Por Marcelo Zero
A participação do Brasil no SOUTHCOM dos EUA faz parte de um processo mais amplo, que se iniciou com o golpe de 2016.
A agressão à nossa soberania é bem mais grave do que se imagina.
Explico.
A projeção dos interesses de um país no complexo e competitivo cenário mundial dá-se, essencialmente, de duas formas: pela política externa e pela política de defesa.
A participação do Brasil no SOUTHCOM dos EUA faz parte de um processo mais amplo, que se iniciou com o golpe de 2016.
A agressão à nossa soberania é bem mais grave do que se imagina.
Explico.
A projeção dos interesses de um país no complexo e competitivo cenário mundial dá-se, essencialmente, de duas formas: pela política externa e pela política de defesa.
Assim, a plena projeção dos interesses estratégicos do Brasil no cenário internacional, embora dependa de uma política externa consistente, não pode prescindir, também, de uma política de defesa sólida.
Sem dúvida alguma, a persuasão diplomática deve ser o meio principal de afirmação dos interesses das nações, principalmente das nações pacíficas, como o Brasil.
No entanto, é forçoso reconhecer que tal persuasão funciona de forma mais eficaz quando complementada pela dissuasão estratégica.
Como assinalou o ex-ministro das Relações Exteriores e ex-ministro da Defesa Celso Amorim:
"Não se pode ser a sétima economia, ser membro do BRICS e do G-20, ter toda a importância que o Brasil assumiu e não ter Forças Armadas devidamente equipadas. A existência de forças equipadas e adestradas fortalece a capacidade diplomática e minimiza a possibilidade de agressões, permitindo que a política de defesa contribua com a política externa voltada para a paz e o desenvolvimento."
Com efeito, um país das dimensões geográficas, demográficas e econômicas do Brasil não pode prescindir de uma política defesa eficiente.
Mesmo no contexto de uma região pacífica, como a América do Sul, o Brasil, pela abundância de seus recursos estratégicos (água doce, biodiversidade, terras, pré-sal, etc.) e por sua recente projeção geopolítica internacional, desperta cobiça e rivalidades que tem de ser neutralizadas.
A política externa e a política de defesa são, pois, políticas complementares.
Ambas projetam que tipo de país que se pretende ser no cenário mundial.
E que tipo de país essas políticas projetam hoje?
Tanto a política externa quanto a política de defesa que vêm se delineando desde o golpe, e que agora se consolidam e se aprofundam com Bolsonaro, projetam um país menor, frágil, que se coloca, de forma submissa, na órbita dos interesses geopolíticos e geoestratégicos dos EUA.
Estamos nos transformando num grande Porto Rico.
Os retrocessos em política externa já se tornaram bastante evidentes.
Ao mesmo tempo em que se busca ansiosamente o alinhamento acrítico aos EUA e a alguns aliados, como Israel, se descontroem todas as vertentes exitosas anteriores de uma política externa que havia aumentado extraordinariamente nosso protagonismo internacional, tais como a do Mercosul e a integração regional, a cooperação Sul-Sul, a inserção no BRICS, as parcerias estratégicas com países emergentes, o investimento nos países árabes e africanos, a ênfase no multilateralismo e na geração de um mundo multipolar, etc.
Porém, os retrocessos, um pouco mais discretos e menos perceptíveis, também estão acontecendo na política de defesa. Eles vêm se processando também desde o golpe de 2016, mas agora adquiriram maior celeridade e profundidade com o governo que bate continência para os EUA.
Nos governos do PT, procurou-se articular a política externa "ativa e altiva", que projetava um país independente e forte no cenário mundial, com uma política de defesa consistente, que se propunha criar a dissuasão estratégica plena e contribuir ativamente para o desenvolvimento econômico e tecnológico do Brasil.
Desse modo, em 2005, foi lançada a nova Política de Defesa Nacional (PDN), que conferiu especial destaque à capacitação na produção de materiais e equipamentos com alto valor agregado em tecnologia, com vistas a diminuir a dependência externa do país nessa área estratégica.
Além disso, foram criados ou robustecidos vários projetos estratégicos de peso, como o submarino nuclear e o do novo caça, que tinham por objetivo promover a dissuasão estratégica em todos os cenários.
Por sua vez, a Estratégia Nacional de Defesa (END), lançada em 2008, estabeleceu a "revitalização da indústria de material de defesa" como um dos três eixos estruturantes para a defesa do país, ao lado da reorganização das Forças Armadas e de sua política de composição dos efetivos.
Dessa forma, a Estratégia afirmou o vínculo indissociável entre defesa e desenvolvimento. A BITD (Base Industrial de Defesa) passou a ser vista como indutora de inovações tecnológicas, com aplicações civis. A END também estimulou o desenvolvimento tecnológico independente, especialmente nos setores nuclear, cibernético e espacial.
A Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa complementavam, dessa forma, a política externa independente daquele tempo, tanto no que se referia à obtenção do armamento adequado e à promoção da dissuasão estratégica, quanto ao estímulo ao desenvolvimento econômico e tecnológico autônomo.
A política externa e a política de defesa apontavam, assim, para uma mesma direção: a construção de um país independente, com interesses geopolíticos e geoestratégicos próprios.
Agora, a política de defesa, complementando a desastrada política externa do governo Bolsonaro, aponta também para fragilização do país e para um aprofundamento da dependência econômica, política e tecnológica do Brasil.
Já em 2016, foi assestado o primeiro grande golpe contra a política defesa anterior.
Com efeito, a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que congelou as despesas primárias por longos 20 anos, significou inevitável constrangimento econômico à busca da dissuasão estratégica e do desenvolvimento de uma base industrial significativa de defesa.
Nas simulações realizadas, os investimentos em defesa deverão sofrer contrações brutais, pois a despesas constitucionais obrigatórias, somadas ao aumento populacional, deverão aumentar substancialmente, nos próximos anos.
Mesmo supondo que os gastos com defesa não sofram contração nominal ao longo desse período, uma hipótese altamente improvável, seu mero congelamento implicará, supondo que o Brasil volte a crescer a uma média anual de 2,5%, um decréscimo substancial do gasto como percentual do PIB.
Assim, cairíamos de 1,4% do PIB, em 2014, para 0,85% do PIB, em 2036.
Além desse dano que a Emenda Constitucional nº 95, de 2016 inevitavelmente ocasionará à Estratégia Nacional de Defesa, é preciso analisar também que a Lava Jato vem causando prejuízos consideráveis à Base Industrial de Defesa.
De fato, todas as firmas que vêm sendo paralisadas e fragilizadas pela Lava Jato desempenham papel crucial nessa Estratégia e nessa Base Industrial, já que estão fortemente presentes nos grandes projetos da área.
Não temos dúvida de que a combinação da Lava Jato, que está fragilizando o braço empresarial da Estratégia Nacional de Defesa, com a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que reduzirá drasticamente o investimento estatal nessa área, poderá fazer o Brasil retroceder à década de 1990, quando a tônica dada pelo neoliberalismo era a do desarmamento do país.
Ademais desses fatores econômicos, é preciso lembrar que o Exército dos EUA participou, a convite do governo brasileiro, de um exercício militar conjunto que foi realizado, em novembro de 2017, na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia.
Tal fato revela uma decisão política preocupante para a soberania nacional, no campo da defesa e da indústria de defesa.
Tratou-se de uma decisão inédita na história militar recente do Brasil, que causou estranheza.
O nosso país, até o golpe, vinha investindo na gestão soberana da Amazônia, em parcerias com países da América do Sul, estabelecidas em mecanismos de cooperação regionais, particularmente os da Unasul e os da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).
Assim, esse convite a uma superpotência estrangeira, que não faz parte da Bacia Hidrográfica da Amazônia, representou um "ponto fora da curva", na tradição de afirmação da soberania nacional numa região estratégica para o país.
Na realidade, esses exercícios vieram na esteira de uma série de iniciativas bilaterais que fazem parte de uma estratégia dos governos pós-golpe de reaproximação subalterna aos EUA, tanto no campo da política externa, quanto no campo da política de defesa.
Nesse diapasão, o Ministério da Defesa do Brasil e o Departamento de Defesa dos EUA assinaram o Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento, ou MIEA (Master Information Exchange Agreement), na sigla em inglês.
Com tal decisão, os governos pós-golpe investirão na cooperação com os EUA, como forma de "desenvolver" nossa indústria de defesa.
Na prática, isso significa renunciar a ter real autonomia no campo do desenvolvimento industrial e tecnológico da defesa nacional.
Ao que tudo indica, setores das Forças Armadas, renunciaram ao desenvolvimento tecnológico relativamente autônomo, previsto na Estratégia Nacional de Defesa, e, agora, apostam equivocadamente numa relação de dependência com os EUA para o seu reaparelhamento.
No mesmo sentido, a anunciada renegociação do famigerado Acordo de Alcântara com os EUA, que impediria o desenvolvimento do nosso veículo lançador e propiciaria a criação de uma base militar norte-americana em solo pátrio, denuncia a retomada de uma nova relação de dependência com aquele país.
A compra da Embraer pela Boeing, face ao uso dual, civil e militar, da tecnologia aeronáutica, deverá também comprometer projetos militares de relevo, bem como inviabilizar o desenvolvimento tecnológico autônomo, num campo sensível e estratégico.
Esses retrocessos, verificados a partir de 2016, agora se aprofundaram claramente com o governo Bolsonaro.
A oferta, anunciada pelo próprio Bolsonaro e por seu chanceler templário, para a instalação de uma base militar norte-americana em território brasileiro, embora temporariamente desmentida por Mourão, nos equipararia a países como Honduras, que são, em seus atuais governos, meros satélites dos EUA.
A participação abjeta do Brasil no plano belicoso e perigoso dos EUA para desestabilizar o governo da Venezuela é outro indicador de uma subserviência que contraria frontalmente os interesses do nosso país na região, os quais estariam muito melhor servidos com uma estratégia de negociação que preservasse a integração regional e a paz no subcontinente.
E agora surge a notícia que joga uma pá-de-cal nas esperanças de quem ainda apostava na preservação da soberania do Brasil.
A anúncio, feito pelo Almirante Craig Faller, chefe do UNITED STATES SOUTHERN COMMAND (SOUTHCOM), ante o Senado dos EUA, de que o Brasil participará do SPMAGTF (Special Purpose Marine Air-Ground Task Force) daquele comando e liderará o exercício naval multinacional UNITAS AMPHIB, significa que o nosso país se engajará ativa e diretamente em operações militares concebidas e lideradas pelos EUA. Ou seja, o Brasil se colocará voluntariamente numa posição de subordinação militar aos EUA, em suas ações em nossa região.
Além disso, o almirante Craig Faller também anunciou, no documento oficial dirigido ao Senado norte-americano, que o Brasil enviará um general para servir como Vice-Comandante para Interoperabilidade do SOUTHCOM.
Os fatos são graves, muito graves.
Os EUA estão fortemente empenhados no combate à influência da China e da Rússia em nossa região e identificam países como Venezuela, Nicarágua e Cuba como aliados desses "inimigos", que precisam ser duramente combatidos.
Portanto, o SOUTHCOM deverá ser usado de forma ofensiva na América Latina para cumprir com esse objetivo geopolítico norte-americano. Não se trata, como poderiam imaginar os panglossianos, apenas de meros exercícios de treinamento com objetivos humanitários, mas também de ações militares que visariam desestabilizar governos da região e estabelecer vínculos de dependência com as forças armadas de "países amigos".
Os EUA não gostariam de envolver suas tropas em terra nessas operações, mas estimulariam de bom grado o envolvimento de tropas brasileiras, colombianas, etc. Faríamos o trabalho sujo.
Há também a intenção de assegurar o acesso privilegiado aos recursos estratégicos de nossa região.
Deve-se lembrar que a Quarta Frota dos EUA, a força naval do SOUTHCOM, foi recriada, após 58 anos, justamente em 2008, coincidentemente ou não, após o Brasil anunciar as fantásticas descobertas do pré-sal.
Na realidade, desde que o Brasil se empenhou na constituição da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), criada pela Resolução 41/11 da ONU, de 27 de outubro de 1986, que os EUA vêm tentando opor-se à projeção do Brasil nesse oceano.
Assim, em 2008, mesmo ano da recriação da Quarta Frota, os EUA criaram também o Comando Africano (USAFRICOM), com a intenção clara de contrapor-se à projeção de interesses sino-brasileiros naquele continente.
Aliás, em 2010, tanto o Pentágono como a OTAN pressionaram o governo brasileiro a apoiar a extensão da jurisdição da OTAN ao Atlântico Sul.
Contudo, o governo da época manifestou, com vigor, a oposição brasileira à pretensão dos EUA e da OTAN.
O então ministro da Defesa, Nélson Jobim, afirmou que considerava como distintas "as questões de segurança das duas metades desse oceano", e que, após a Guerra Fria, a OTAN havia passado "a servir de instrumento de seu membro exponencial, os EUA, e dos aliados europeus". Bons tempos.
Agora, com essa decisão vergonhosa, o Brasil tende a perder projeção geoestratégica própria no Atlântico Sul e na Amazônia Azul, onde está o pré-sal.
Observe-se que, já há alguns anos, a Marinha dos EUA (US Navy) realiza exercícios multinacionais reunindo países membros da OTAN e africanos, para "manobras de patrulhamento no Golfo da Guiné", área onde se situa contraparte africana do pré-sal.
Todas essas medidas e ações convergem para um só cenário: estão sendo minadas as bases econômicas e institucionais da Política de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa e estão sendo tomadas decisões políticas que colocam nossas forças armadas como meras forças auxiliares e subalternas dos EUA.
Essas decisões políticas em matéria de defesa, somadas à política externa de subordinação geopolítica aos EUA, que tanto agrado causa ao capitão sôfrego por continências e ao chanceler templário, nos transformam em lamentável cão vira-lata do Império.
Já a destruição da Base Industrial de Defesa e os constrangimentos econômicos aos investimentos em Defesa Nacional, que deverão ser agravados com a aposta no ultraneoliberalismo, apontam para o desarmamento, a fragilização dos grandes projetos estratégicos, a dependência tecnológica e a absorção de material militar obsoleto.
Assim sendo, não seremos apenas um vira-lata.
Seremos um vira-lata desdentado, a latir para os inimigos dos nossos donos.
E o Atlântico Sul será dominado pela OTAN.
Sem dúvida alguma, a persuasão diplomática deve ser o meio principal de afirmação dos interesses das nações, principalmente das nações pacíficas, como o Brasil.
No entanto, é forçoso reconhecer que tal persuasão funciona de forma mais eficaz quando complementada pela dissuasão estratégica.
Como assinalou o ex-ministro das Relações Exteriores e ex-ministro da Defesa Celso Amorim:
"Não se pode ser a sétima economia, ser membro do BRICS e do G-20, ter toda a importância que o Brasil assumiu e não ter Forças Armadas devidamente equipadas. A existência de forças equipadas e adestradas fortalece a capacidade diplomática e minimiza a possibilidade de agressões, permitindo que a política de defesa contribua com a política externa voltada para a paz e o desenvolvimento."
Com efeito, um país das dimensões geográficas, demográficas e econômicas do Brasil não pode prescindir de uma política defesa eficiente.
Mesmo no contexto de uma região pacífica, como a América do Sul, o Brasil, pela abundância de seus recursos estratégicos (água doce, biodiversidade, terras, pré-sal, etc.) e por sua recente projeção geopolítica internacional, desperta cobiça e rivalidades que tem de ser neutralizadas.
A política externa e a política de defesa são, pois, políticas complementares.
Ambas projetam que tipo de país que se pretende ser no cenário mundial.
E que tipo de país essas políticas projetam hoje?
Tanto a política externa quanto a política de defesa que vêm se delineando desde o golpe, e que agora se consolidam e se aprofundam com Bolsonaro, projetam um país menor, frágil, que se coloca, de forma submissa, na órbita dos interesses geopolíticos e geoestratégicos dos EUA.
Estamos nos transformando num grande Porto Rico.
Os retrocessos em política externa já se tornaram bastante evidentes.
Ao mesmo tempo em que se busca ansiosamente o alinhamento acrítico aos EUA e a alguns aliados, como Israel, se descontroem todas as vertentes exitosas anteriores de uma política externa que havia aumentado extraordinariamente nosso protagonismo internacional, tais como a do Mercosul e a integração regional, a cooperação Sul-Sul, a inserção no BRICS, as parcerias estratégicas com países emergentes, o investimento nos países árabes e africanos, a ênfase no multilateralismo e na geração de um mundo multipolar, etc.
Porém, os retrocessos, um pouco mais discretos e menos perceptíveis, também estão acontecendo na política de defesa. Eles vêm se processando também desde o golpe de 2016, mas agora adquiriram maior celeridade e profundidade com o governo que bate continência para os EUA.
Nos governos do PT, procurou-se articular a política externa "ativa e altiva", que projetava um país independente e forte no cenário mundial, com uma política de defesa consistente, que se propunha criar a dissuasão estratégica plena e contribuir ativamente para o desenvolvimento econômico e tecnológico do Brasil.
Desse modo, em 2005, foi lançada a nova Política de Defesa Nacional (PDN), que conferiu especial destaque à capacitação na produção de materiais e equipamentos com alto valor agregado em tecnologia, com vistas a diminuir a dependência externa do país nessa área estratégica.
Além disso, foram criados ou robustecidos vários projetos estratégicos de peso, como o submarino nuclear e o do novo caça, que tinham por objetivo promover a dissuasão estratégica em todos os cenários.
Por sua vez, a Estratégia Nacional de Defesa (END), lançada em 2008, estabeleceu a "revitalização da indústria de material de defesa" como um dos três eixos estruturantes para a defesa do país, ao lado da reorganização das Forças Armadas e de sua política de composição dos efetivos.
Dessa forma, a Estratégia afirmou o vínculo indissociável entre defesa e desenvolvimento. A BITD (Base Industrial de Defesa) passou a ser vista como indutora de inovações tecnológicas, com aplicações civis. A END também estimulou o desenvolvimento tecnológico independente, especialmente nos setores nuclear, cibernético e espacial.
A Política Nacional de Defesa e a Estratégia Nacional de Defesa complementavam, dessa forma, a política externa independente daquele tempo, tanto no que se referia à obtenção do armamento adequado e à promoção da dissuasão estratégica, quanto ao estímulo ao desenvolvimento econômico e tecnológico autônomo.
A política externa e a política de defesa apontavam, assim, para uma mesma direção: a construção de um país independente, com interesses geopolíticos e geoestratégicos próprios.
Agora, a política de defesa, complementando a desastrada política externa do governo Bolsonaro, aponta também para fragilização do país e para um aprofundamento da dependência econômica, política e tecnológica do Brasil.
Já em 2016, foi assestado o primeiro grande golpe contra a política defesa anterior.
Com efeito, a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que congelou as despesas primárias por longos 20 anos, significou inevitável constrangimento econômico à busca da dissuasão estratégica e do desenvolvimento de uma base industrial significativa de defesa.
Nas simulações realizadas, os investimentos em defesa deverão sofrer contrações brutais, pois a despesas constitucionais obrigatórias, somadas ao aumento populacional, deverão aumentar substancialmente, nos próximos anos.
Mesmo supondo que os gastos com defesa não sofram contração nominal ao longo desse período, uma hipótese altamente improvável, seu mero congelamento implicará, supondo que o Brasil volte a crescer a uma média anual de 2,5%, um decréscimo substancial do gasto como percentual do PIB.
Assim, cairíamos de 1,4% do PIB, em 2014, para 0,85% do PIB, em 2036.
Além desse dano que a Emenda Constitucional nº 95, de 2016 inevitavelmente ocasionará à Estratégia Nacional de Defesa, é preciso analisar também que a Lava Jato vem causando prejuízos consideráveis à Base Industrial de Defesa.
De fato, todas as firmas que vêm sendo paralisadas e fragilizadas pela Lava Jato desempenham papel crucial nessa Estratégia e nessa Base Industrial, já que estão fortemente presentes nos grandes projetos da área.
Não temos dúvida de que a combinação da Lava Jato, que está fragilizando o braço empresarial da Estratégia Nacional de Defesa, com a Emenda Constitucional nº 95, de 2016, que reduzirá drasticamente o investimento estatal nessa área, poderá fazer o Brasil retroceder à década de 1990, quando a tônica dada pelo neoliberalismo era a do desarmamento do país.
Ademais desses fatores econômicos, é preciso lembrar que o Exército dos EUA participou, a convite do governo brasileiro, de um exercício militar conjunto que foi realizado, em novembro de 2017, na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia.
Tal fato revela uma decisão política preocupante para a soberania nacional, no campo da defesa e da indústria de defesa.
Tratou-se de uma decisão inédita na história militar recente do Brasil, que causou estranheza.
O nosso país, até o golpe, vinha investindo na gestão soberana da Amazônia, em parcerias com países da América do Sul, estabelecidas em mecanismos de cooperação regionais, particularmente os da Unasul e os da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).
Assim, esse convite a uma superpotência estrangeira, que não faz parte da Bacia Hidrográfica da Amazônia, representou um "ponto fora da curva", na tradição de afirmação da soberania nacional numa região estratégica para o país.
Na realidade, esses exercícios vieram na esteira de uma série de iniciativas bilaterais que fazem parte de uma estratégia dos governos pós-golpe de reaproximação subalterna aos EUA, tanto no campo da política externa, quanto no campo da política de defesa.
Nesse diapasão, o Ministério da Defesa do Brasil e o Departamento de Defesa dos EUA assinaram o Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento, ou MIEA (Master Information Exchange Agreement), na sigla em inglês.
Com tal decisão, os governos pós-golpe investirão na cooperação com os EUA, como forma de "desenvolver" nossa indústria de defesa.
Na prática, isso significa renunciar a ter real autonomia no campo do desenvolvimento industrial e tecnológico da defesa nacional.
Ao que tudo indica, setores das Forças Armadas, renunciaram ao desenvolvimento tecnológico relativamente autônomo, previsto na Estratégia Nacional de Defesa, e, agora, apostam equivocadamente numa relação de dependência com os EUA para o seu reaparelhamento.
No mesmo sentido, a anunciada renegociação do famigerado Acordo de Alcântara com os EUA, que impediria o desenvolvimento do nosso veículo lançador e propiciaria a criação de uma base militar norte-americana em solo pátrio, denuncia a retomada de uma nova relação de dependência com aquele país.
A compra da Embraer pela Boeing, face ao uso dual, civil e militar, da tecnologia aeronáutica, deverá também comprometer projetos militares de relevo, bem como inviabilizar o desenvolvimento tecnológico autônomo, num campo sensível e estratégico.
Esses retrocessos, verificados a partir de 2016, agora se aprofundaram claramente com o governo Bolsonaro.
A oferta, anunciada pelo próprio Bolsonaro e por seu chanceler templário, para a instalação de uma base militar norte-americana em território brasileiro, embora temporariamente desmentida por Mourão, nos equipararia a países como Honduras, que são, em seus atuais governos, meros satélites dos EUA.
A participação abjeta do Brasil no plano belicoso e perigoso dos EUA para desestabilizar o governo da Venezuela é outro indicador de uma subserviência que contraria frontalmente os interesses do nosso país na região, os quais estariam muito melhor servidos com uma estratégia de negociação que preservasse a integração regional e a paz no subcontinente.
E agora surge a notícia que joga uma pá-de-cal nas esperanças de quem ainda apostava na preservação da soberania do Brasil.
A anúncio, feito pelo Almirante Craig Faller, chefe do UNITED STATES SOUTHERN COMMAND (SOUTHCOM), ante o Senado dos EUA, de que o Brasil participará do SPMAGTF (Special Purpose Marine Air-Ground Task Force) daquele comando e liderará o exercício naval multinacional UNITAS AMPHIB, significa que o nosso país se engajará ativa e diretamente em operações militares concebidas e lideradas pelos EUA. Ou seja, o Brasil se colocará voluntariamente numa posição de subordinação militar aos EUA, em suas ações em nossa região.
Além disso, o almirante Craig Faller também anunciou, no documento oficial dirigido ao Senado norte-americano, que o Brasil enviará um general para servir como Vice-Comandante para Interoperabilidade do SOUTHCOM.
Os fatos são graves, muito graves.
Os EUA estão fortemente empenhados no combate à influência da China e da Rússia em nossa região e identificam países como Venezuela, Nicarágua e Cuba como aliados desses "inimigos", que precisam ser duramente combatidos.
Portanto, o SOUTHCOM deverá ser usado de forma ofensiva na América Latina para cumprir com esse objetivo geopolítico norte-americano. Não se trata, como poderiam imaginar os panglossianos, apenas de meros exercícios de treinamento com objetivos humanitários, mas também de ações militares que visariam desestabilizar governos da região e estabelecer vínculos de dependência com as forças armadas de "países amigos".
Os EUA não gostariam de envolver suas tropas em terra nessas operações, mas estimulariam de bom grado o envolvimento de tropas brasileiras, colombianas, etc. Faríamos o trabalho sujo.
Há também a intenção de assegurar o acesso privilegiado aos recursos estratégicos de nossa região.
Deve-se lembrar que a Quarta Frota dos EUA, a força naval do SOUTHCOM, foi recriada, após 58 anos, justamente em 2008, coincidentemente ou não, após o Brasil anunciar as fantásticas descobertas do pré-sal.
Na realidade, desde que o Brasil se empenhou na constituição da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), criada pela Resolução 41/11 da ONU, de 27 de outubro de 1986, que os EUA vêm tentando opor-se à projeção do Brasil nesse oceano.
Assim, em 2008, mesmo ano da recriação da Quarta Frota, os EUA criaram também o Comando Africano (USAFRICOM), com a intenção clara de contrapor-se à projeção de interesses sino-brasileiros naquele continente.
Aliás, em 2010, tanto o Pentágono como a OTAN pressionaram o governo brasileiro a apoiar a extensão da jurisdição da OTAN ao Atlântico Sul.
Contudo, o governo da época manifestou, com vigor, a oposição brasileira à pretensão dos EUA e da OTAN.
O então ministro da Defesa, Nélson Jobim, afirmou que considerava como distintas "as questões de segurança das duas metades desse oceano", e que, após a Guerra Fria, a OTAN havia passado "a servir de instrumento de seu membro exponencial, os EUA, e dos aliados europeus". Bons tempos.
Agora, com essa decisão vergonhosa, o Brasil tende a perder projeção geoestratégica própria no Atlântico Sul e na Amazônia Azul, onde está o pré-sal.
Observe-se que, já há alguns anos, a Marinha dos EUA (US Navy) realiza exercícios multinacionais reunindo países membros da OTAN e africanos, para "manobras de patrulhamento no Golfo da Guiné", área onde se situa contraparte africana do pré-sal.
Todas essas medidas e ações convergem para um só cenário: estão sendo minadas as bases econômicas e institucionais da Política de Defesa e da Estratégia Nacional de Defesa e estão sendo tomadas decisões políticas que colocam nossas forças armadas como meras forças auxiliares e subalternas dos EUA.
Essas decisões políticas em matéria de defesa, somadas à política externa de subordinação geopolítica aos EUA, que tanto agrado causa ao capitão sôfrego por continências e ao chanceler templário, nos transformam em lamentável cão vira-lata do Império.
Já a destruição da Base Industrial de Defesa e os constrangimentos econômicos aos investimentos em Defesa Nacional, que deverão ser agravados com a aposta no ultraneoliberalismo, apontam para o desarmamento, a fragilização dos grandes projetos estratégicos, a dependência tecnológica e a absorção de material militar obsoleto.
Assim sendo, não seremos apenas um vira-lata.
Seremos um vira-lata desdentado, a latir para os inimigos dos nossos donos.
E o Atlântico Sul será dominado pela OTAN.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comente: