Por Liszt Vieira, no site Carta Maior:
"Nem mesmo os mortos serão poupados do inimigo caso ele triunfe". (Walter Benjamin, Teses Sobre o Conceito de História)
O escritor francês Paul Valéry afirmou certa vez que "o problema do nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser". Há certos momentos na História, como o que vivemos hoje no Brasil, em que se torna mais agudo o conflito do presente com a tradição do passado e a utopia do futuro. Creio que os exemplos citados neste artigo podem ser úteis para a compreensão da conjuntura atual.
Em sua conhecida obra "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", Karl Marx afirmou que a História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. A frase cai como uma luva na história contemporânea do Brasil. A ditadura militar de 1964 foi a tragédia. O governo militar de Bolsonaro é a farsa.
Uma farsa adornada com goiabeiras, alegações esdrúxulas de marxismo cultural, negação da ciência, como o aquecimento global, tweet pornográfico, democracia como um “dom” dos militares, imposição nas escolas do hino nacional. Por ser ilegal, o ministro recuou do slogan da campanha de Bolsonaro. Só não recuou do "Brasil Acima de Tudo", imitação do lema nazista "Deutschland Über Alles".
Em matéria de recuo, em dois meses o atual Governo bateu o record: embaixada em Jerusalém, base militar americana no Brasil, caixa 2 no pacote contra o crime organizado, uma única arma em favor de quatro armas para cada indivíduo, nomeação de Ilona Szabó para suplente da Comissão de Política Criminal etc. Os generais controlam Bolsonaro que controla Moro que não controla ninguém. Anunciado como superministro, tornou-se hoje funcionário obediente.
Em uma passagem saborosa da obra citada acima, Marx explica o golpe que levou ao poder o medíocre sobrinho do famoso general Napoleão Bonaparte: "Em contrapartida, eu demonstro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar o papel do herói".
Ressalvadas as diferenças históricas, a frase pode bem se aplicar à vitória de Bolsonaro na última eleição. Mas, por detrás do medíocre e do grotesco do atual Governo, a política econômica neoliberal quer impor as chamadas "Reformas" para, no velho estilo dos Chicago Boys, enriquecer os ricos e punir os pobres, transferindo renda dos pobres para os bancos, as grandes empresas e os rentistas. Diz a lenda da Escola de Chicago que isso criaria empregos e riqueza, o que a experiência histórica mostrou que é falso, e ainda mais falso na atual era do capitalismo financeiro improdutivo. O passado desautoriza o presente.
No Brasil de hoje, o conceito e o destino do presente estão em disputa. Há cem anos, aproximadamente, o filósofo francês Henri Bergson definiu o presente como o passado projetando-se no futuro. A visão tradicionalista da extrema direita no poder parece inverter os termos da equação: o presente parece o futuro projetando-se no passado.
O quadro do pintor Paul Klee, Angelus Novus, que o filósofo alemão Walter Benjamin comprou em Munique no início dos anos 20 do século passado, foi citado na 9a. Tese de sua obra "Teses Sobre o Conceito de História" que vê o passado como uma paisagem de ruínas. O quadro mostra um anjo que parece querer afastar-se de algo que encara fixamente. É o "anjo da História", com o rosto dirigido para o passado, recebendo os ventos de uma "tempestade que o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso".
A perspectiva crítica de seu amigo e contemporâneo, o filósofo Theodor Adorno, via no olhar melancólico de Benjamin uma visão apocalíptica judaica combinada com a tendência de ver o presente transformado no passado remoto (Scholem, Walter Benjamin and His Angel). Mas, com os pés fincados no chão do seu exílio na França, pouco antes da invasão alemã, W. Benjamin, no início de 1940, escreveu a seu amigo Gershom Sholem:
"Cada linha que logramos publicar hoje - não importa quão incerto é o futuro no qual a despejamos - é uma vitória extraída dos poderes da escuridão". E em sua celebrada obra Teses Sobre o Conceito de História:
"Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie". Ou ainda:
"A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade".
Mais uma vez, sentimos a proximidade com a realidade brasileira de hoje. Na conjuntura atual, dois grandes planos se entrecruzam e sobredeterminam os conflitos políticos. O primeiro plano configura o conflito entre uma democracia enfraquecida e o que se poderia chamar de "tirania colegiada" que até agora substituiu a conhecida democracia de coalizão, uma vez que o presidente da república é controlado, pelo menos parcialmente, por um grupo de generais, de um lado, e pelo ministro a serviço do mercado, de outro. Responde também à sua "base" no twitter e à pressão dos evangélicos.
O segundo plano mostra o conflito entre a soberania nacional e o projeto do Governo de transformar o Brasil numa colônia americana ou numa província associada. A retórica patriótica do presidente e seus apoiadores se limita aos costumes tradicionais, aos símbolos, como a bandeira ou as cores verde e amarela, e às fronteiras territoriais. Essa visão "patriótica" apoia a privatização de empresas públicas e dos recursos naturais em favor das empresas transnacionais.
Esse tipo de patriotismo não leva em conta os direitos da população e silencia ou mesmo aprova a transferência de renda dos pobres para os ricos mediante as chamadas "reformas", como a da Previdência, entre outras. Não existe cidadania no patriotismo da direita. Quem discorda é considerado "estrangeiro", visto como diferente, e as diferenças são rechaçadas pelo atual Governo que rejeita a diversidade, seja humana ou biológica. Pior ainda: o diferente é visto como inimigo.
Lembrando a famosa metáfora de Shakespeare em sua obra Julio Cesar, utilizada por Ingmar Bergman no título de seu filme, o "Ovo da Serpente" já começou a chocar. Se não for morto enquanto estiver na casca, sabemos o que vai acontecer se vier à luz.
Para o teórico da economia Albert Hischman, o que move o mundo são as paixões e os interesses. Isso parece contrariar a tese de que “os mortos governam os vivos” (Auguste Comte), ou seja, são as ideias que governam o mundo.
Hegel considerava o presente como antítese do passado, visto como um peso que a humanidade carrega como um fardo. Para Marx, que via a História como conflito entre interesses de classe, “a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. E, para o poeta inglês Chesterton, “tradição não significa estarem os vivos mortos, mas sim os mortos vivos”.
No Prefácio de seu livro Entre o Passado e o Futuro, a filósofa Hannah Arendt cita o escritor americano Faulkner: "O passado nunca está morto, ele nem mesmo é passado".
E acrescenta a autora:
"Esse passado ... ao invés de puxar para trás, empurra para frente e, ao contrário do que seria de esperar, é o futuro que nos impele de volta ao passado".
O tempo não é contínuo e o passado não é um fardo, mas uma força viva. É como força que o passado da escravidão permanece vivo no subconsciente e na cultura da elite dominante e também de boa parte da classe média brasileira, que se sente ameaçada quando os pobres, em maioria negros, melhoram de vida e se aproximam, como ocorreu no governo Lula. Isso é um divisor de águas a ser considerado na luta democrática no Brasil, uma vez que essa classe média ambiciona o nível de renda das camadas superiores e prefere governos autoritários que mantenham a desigualdade social.
Para enfrentar essa política que favorece os ricos em detrimento dos pobres, as forças vivas da sociedade civil devem cerrar fileiras para defender a democracia e a autonomia nacional ameaçadas pela política oficial de regressão e de alinhamento automático com os EUA. Ou caminhamos para o futuro, ampliando os espaços de liberdade e fortalecendo direitos, ou regredimos ao passado patriarcal do Brasil colônia.
Assim, o presente é hoje objeto de acirrada disputa entre as ruínas do nosso passado e os ventos do futuro, entre liberdade e autoridade, entre democracia e ditadura, cujos contornos e proporções só a luta política poderá definir.
* Liszt Vieira é professor, advogado e Defensor Público no Rio de Janeiro.
"Nem mesmo os mortos serão poupados do inimigo caso ele triunfe". (Walter Benjamin, Teses Sobre o Conceito de História)
O escritor francês Paul Valéry afirmou certa vez que "o problema do nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser". Há certos momentos na História, como o que vivemos hoje no Brasil, em que se torna mais agudo o conflito do presente com a tradição do passado e a utopia do futuro. Creio que os exemplos citados neste artigo podem ser úteis para a compreensão da conjuntura atual.
Em sua conhecida obra "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", Karl Marx afirmou que a História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. A frase cai como uma luva na história contemporânea do Brasil. A ditadura militar de 1964 foi a tragédia. O governo militar de Bolsonaro é a farsa.
Uma farsa adornada com goiabeiras, alegações esdrúxulas de marxismo cultural, negação da ciência, como o aquecimento global, tweet pornográfico, democracia como um “dom” dos militares, imposição nas escolas do hino nacional. Por ser ilegal, o ministro recuou do slogan da campanha de Bolsonaro. Só não recuou do "Brasil Acima de Tudo", imitação do lema nazista "Deutschland Über Alles".
Em matéria de recuo, em dois meses o atual Governo bateu o record: embaixada em Jerusalém, base militar americana no Brasil, caixa 2 no pacote contra o crime organizado, uma única arma em favor de quatro armas para cada indivíduo, nomeação de Ilona Szabó para suplente da Comissão de Política Criminal etc. Os generais controlam Bolsonaro que controla Moro que não controla ninguém. Anunciado como superministro, tornou-se hoje funcionário obediente.
Em uma passagem saborosa da obra citada acima, Marx explica o golpe que levou ao poder o medíocre sobrinho do famoso general Napoleão Bonaparte: "Em contrapartida, eu demonstro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar o papel do herói".
Ressalvadas as diferenças históricas, a frase pode bem se aplicar à vitória de Bolsonaro na última eleição. Mas, por detrás do medíocre e do grotesco do atual Governo, a política econômica neoliberal quer impor as chamadas "Reformas" para, no velho estilo dos Chicago Boys, enriquecer os ricos e punir os pobres, transferindo renda dos pobres para os bancos, as grandes empresas e os rentistas. Diz a lenda da Escola de Chicago que isso criaria empregos e riqueza, o que a experiência histórica mostrou que é falso, e ainda mais falso na atual era do capitalismo financeiro improdutivo. O passado desautoriza o presente.
No Brasil de hoje, o conceito e o destino do presente estão em disputa. Há cem anos, aproximadamente, o filósofo francês Henri Bergson definiu o presente como o passado projetando-se no futuro. A visão tradicionalista da extrema direita no poder parece inverter os termos da equação: o presente parece o futuro projetando-se no passado.
O quadro do pintor Paul Klee, Angelus Novus, que o filósofo alemão Walter Benjamin comprou em Munique no início dos anos 20 do século passado, foi citado na 9a. Tese de sua obra "Teses Sobre o Conceito de História" que vê o passado como uma paisagem de ruínas. O quadro mostra um anjo que parece querer afastar-se de algo que encara fixamente. É o "anjo da História", com o rosto dirigido para o passado, recebendo os ventos de uma "tempestade que o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso".
A perspectiva crítica de seu amigo e contemporâneo, o filósofo Theodor Adorno, via no olhar melancólico de Benjamin uma visão apocalíptica judaica combinada com a tendência de ver o presente transformado no passado remoto (Scholem, Walter Benjamin and His Angel). Mas, com os pés fincados no chão do seu exílio na França, pouco antes da invasão alemã, W. Benjamin, no início de 1940, escreveu a seu amigo Gershom Sholem:
"Cada linha que logramos publicar hoje - não importa quão incerto é o futuro no qual a despejamos - é uma vitória extraída dos poderes da escuridão". E em sua celebrada obra Teses Sobre o Conceito de História:
"Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie". Ou ainda:
"A tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade".
Mais uma vez, sentimos a proximidade com a realidade brasileira de hoje. Na conjuntura atual, dois grandes planos se entrecruzam e sobredeterminam os conflitos políticos. O primeiro plano configura o conflito entre uma democracia enfraquecida e o que se poderia chamar de "tirania colegiada" que até agora substituiu a conhecida democracia de coalizão, uma vez que o presidente da república é controlado, pelo menos parcialmente, por um grupo de generais, de um lado, e pelo ministro a serviço do mercado, de outro. Responde também à sua "base" no twitter e à pressão dos evangélicos.
O segundo plano mostra o conflito entre a soberania nacional e o projeto do Governo de transformar o Brasil numa colônia americana ou numa província associada. A retórica patriótica do presidente e seus apoiadores se limita aos costumes tradicionais, aos símbolos, como a bandeira ou as cores verde e amarela, e às fronteiras territoriais. Essa visão "patriótica" apoia a privatização de empresas públicas e dos recursos naturais em favor das empresas transnacionais.
Esse tipo de patriotismo não leva em conta os direitos da população e silencia ou mesmo aprova a transferência de renda dos pobres para os ricos mediante as chamadas "reformas", como a da Previdência, entre outras. Não existe cidadania no patriotismo da direita. Quem discorda é considerado "estrangeiro", visto como diferente, e as diferenças são rechaçadas pelo atual Governo que rejeita a diversidade, seja humana ou biológica. Pior ainda: o diferente é visto como inimigo.
Lembrando a famosa metáfora de Shakespeare em sua obra Julio Cesar, utilizada por Ingmar Bergman no título de seu filme, o "Ovo da Serpente" já começou a chocar. Se não for morto enquanto estiver na casca, sabemos o que vai acontecer se vier à luz.
Para o teórico da economia Albert Hischman, o que move o mundo são as paixões e os interesses. Isso parece contrariar a tese de que “os mortos governam os vivos” (Auguste Comte), ou seja, são as ideias que governam o mundo.
Hegel considerava o presente como antítese do passado, visto como um peso que a humanidade carrega como um fardo. Para Marx, que via a História como conflito entre interesses de classe, “a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. E, para o poeta inglês Chesterton, “tradição não significa estarem os vivos mortos, mas sim os mortos vivos”.
No Prefácio de seu livro Entre o Passado e o Futuro, a filósofa Hannah Arendt cita o escritor americano Faulkner: "O passado nunca está morto, ele nem mesmo é passado".
E acrescenta a autora:
"Esse passado ... ao invés de puxar para trás, empurra para frente e, ao contrário do que seria de esperar, é o futuro que nos impele de volta ao passado".
O tempo não é contínuo e o passado não é um fardo, mas uma força viva. É como força que o passado da escravidão permanece vivo no subconsciente e na cultura da elite dominante e também de boa parte da classe média brasileira, que se sente ameaçada quando os pobres, em maioria negros, melhoram de vida e se aproximam, como ocorreu no governo Lula. Isso é um divisor de águas a ser considerado na luta democrática no Brasil, uma vez que essa classe média ambiciona o nível de renda das camadas superiores e prefere governos autoritários que mantenham a desigualdade social.
Para enfrentar essa política que favorece os ricos em detrimento dos pobres, as forças vivas da sociedade civil devem cerrar fileiras para defender a democracia e a autonomia nacional ameaçadas pela política oficial de regressão e de alinhamento automático com os EUA. Ou caminhamos para o futuro, ampliando os espaços de liberdade e fortalecendo direitos, ou regredimos ao passado patriarcal do Brasil colônia.
Assim, o presente é hoje objeto de acirrada disputa entre as ruínas do nosso passado e os ventos do futuro, entre liberdade e autoridade, entre democracia e ditadura, cujos contornos e proporções só a luta política poderá definir.
* Liszt Vieira é professor, advogado e Defensor Público no Rio de Janeiro.
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