Por Cláudio Gonçalves Couto, no site da Fundação Maurício Grabois:
Em 2019, foram 570 os blocos de Carnaval oficialmente credenciados junto à prefeitura e que animaram foliões na cidade de São Paulo. O número poderia ultrapassar os 600, se não houvesse desistências. Há estimativas de 12 milhões de pessoas nas ruas – o que equivale à população da cidade. No Rio de Janeiro a estimativa é de 7 milhões. Outros tantos milhões se esbaldam na folia pelo resto do país em blocos, escolas de samba, bailes de clubes e assim por diante. A festa movimenta a produção cultural e o turismo, além de preponderar na cobertura da mídia.
Em festejos multitudinários dessas proporções, incidentes são inevitáveis – pode-se dizer que é uma fatalidade estatística. Há dois anos no Carnaval de Salvador, por exemplo, foram registradas 34 ocorrências de assalto e 174 atos de vandalismo. No Recife, nesse mesmo ano, foram 102 acidentes de trânsito e na vizinha, Olinda, 25 boletins de ocorrência por furtos, roubos e extravio. Noutras cidades o mesmo sucede. O problema não é simplesmente o Carnaval como festejo, mas a multidão: incidentes os mais variados acontecem. E, em particular, comportamentos desviantes da norma cívica ou legal advêm porque sempre haverá quem dela se desvie.
Ademais, o Carnaval historicamente tem um caráter transgressivo – em especial no que concerne à sexualidade. Em tempos mais conservadores do que os atuais (será?) chamava a atenção o baile do Gala Gay no Rio – o mero fato de ser um baile gay já era notado como uma forma de transgressão da moral sexual estabelecida e, por isso, chamava a atenção da mídia. Hoje, embora ele ainda ocorra, já não recebe a mesma atenção, pois a homossexualidade ganhou legitimidade e, assim, olha-se menos para um baile gay como algo pitoresco e que mereça consideração especial.
E para além do caráter talvez um dia transgressivo da orientação sexual, vale lembrar a série de histórias relativas às violações do pudor em lugares públicos (e aos olhos do público) envolvendo a nudez de foliões, tapa-sexos perdidos e até políticos em situações inusitadas. Em 1989, Enoli Lara foi a primeira mulher a desfilar totalmente nua no Carnaval do Rio de Janeiro; cinco anos depois, a modelo Lilian Ramos foi fotografada sem calcinha ao lado de Itamar Franco, na Sapucaí. Em 2015, um carro alegórico da Mocidade Independente de Padre Miguel trazia dezenas de componentes, homens e mulheres, nus e se agarrando. Antes disso, a hoje apoiadora do presidente e então modelo Andressa Urach participou do carnaval da Leandro de Itaquera usando apenas um tapa-sexo de esparadrapo. Nada mais velho do que esse tipo de coisa, portanto.
Tão velho que se retornarmos aos anos 1980 lembraremos das transmissões televisivas noturnas repletas de sexo em bailes de Carnaval. Em 1988, as TVs Bandeirantes e Manchete transmitiram cenas tão tórridas que ensejaram uma reação do governo Sarney, com ameaças até mesmo de lhes cassar as concessões. A Band, aliás, era considerada reincidente, pois já transmitira cenas quentes quatro ou cinco anos antes – ainda durante a Ditadura Militar, tão prezada pelo atual presidente. Tudo terminou em pizza, com amenas advertências e a continuidade dos programas por anos a fio. A propósito, um dos que capitaneava tais transmissões era Otávio Mesquita, também um apoiador de Bolsonaro.
Como essas coisas chamam a atenção, são documentadas pela imprensa e recebem dela menções especiais. Por isso mesmo foi fácil fazer esta recapitulação de eventos. Tudo isso para observar que pouco tem de excepcional ou novo a cena escatológica filmada em um bloco de rua paulistano e reproduzida pelo presidente em seu Twitter. O que há de novo é tal tipo de cena ganhar publicidade por meio do primeiro mandatário do país.
Face ao estupefato de tantos diante da atitude presidencial, as tropas de assalto virtual que lhe prestam sabujice partem para o ataque, questionando os críticos de seu mito sobre o conteúdo do vídeo – para eles o real problema. Ora, mas como foi aqui demonstrado, o “problema” é tão recorrente (inclusive entre apoiadores de Bolsonaro) que faz pouco sentido levar muito a sério o evento particular – e menos sentido ainda faria que um presidente perdesse tempo com esse tipo de coisa. Ademais, pelas dimensões do Carnaval – em particular o paulistano – a ocorrência de algo assim é estatisticamente esperada. Os responsáveis pela performance denunciada pelo presidente são apenas dois indivíduos em meio a dezenas de milhões de foliões Brasil afora. Já o presidente, que reproduz esse tipo de vídeo em sua rede social, é único. Por isso mesmo e pela liturgia de que sua posição se reveste, deveria ter mais compostura e decoro.
O que merece análise são suas motivações para reproduzir o vídeo e para associar aquele evento específico aos blocos de Carnaval em geral. Ora, é sabido que o presidente foi o alvo preferido dos blocos carnavalescos por todo o país. Seu boneco foi vaiado em Olinda; em Belo Horizonte a Polícia Militar tentou censurar um bloco crítico ao presidente, ensejando uma contrarreação do Ministério Público em prol da liberdade de expressão; em São Paulo, foliões se fantasiaram de laranjas; no Rio, outros alaranjados promoveram folguedos nas cercanias da residência de Bolsonaro. Também na avenida as críticas ocorreram, como no desfile da Paraíso do Tuiuti, com suas coxinhas armadas.
Pouco abertos a qualquer tipo de contraditório (veja-se o caso de Ilona Szabó) ou crítica, os Bolsonaros e seus fãs servis reagem de forma iracunda. Vendo-se como alvo preferencial da irreverência carnavalesca, o presidente da República (ou, quem sabe, algum filho responsável por seu Twitter) resolveu desqualificar de forma generalizada os blocos, pinçando um episódio particular como “prova” de que tudo seria daquele jeito. Trata-se da clássica falácia da composição, em que se toma o todo pela parte: se num bloco de Carnaval paulistano há pessoas que promovem aquele tipo de performance, então muitos blocos são assim. Ao desqualificar seus críticos, desqualifica as críticas. O problema passa a ser a cena escatológica em lugar público e desaparecem as laranjas, os milicianos, a intolerância, o despreparo etc..
A questão é que esse episódio, por si só, reforça a imagem de despreparo e destempero do presidente e seu clã. Ao mesmo tempo, revela o quanto acusou o golpe do escárnio carnavalesco, o quanto é intolerante e o quanto é incapaz de perceber que certas atitudes são inadmissíveis para um presidente. Sua administração mal inicia o terceiro mês e já coleciona uma quantidade de disparates suficientes para solapar a credibilidade de um governo de oito anos. A transgressão dos foliões é parte inseparável do Carnaval, mas não cai bem a um chefe de Estado. A não ser, claro, que se trate de um Rei Momo.
Em festejos multitudinários dessas proporções, incidentes são inevitáveis – pode-se dizer que é uma fatalidade estatística. Há dois anos no Carnaval de Salvador, por exemplo, foram registradas 34 ocorrências de assalto e 174 atos de vandalismo. No Recife, nesse mesmo ano, foram 102 acidentes de trânsito e na vizinha, Olinda, 25 boletins de ocorrência por furtos, roubos e extravio. Noutras cidades o mesmo sucede. O problema não é simplesmente o Carnaval como festejo, mas a multidão: incidentes os mais variados acontecem. E, em particular, comportamentos desviantes da norma cívica ou legal advêm porque sempre haverá quem dela se desvie.
Ademais, o Carnaval historicamente tem um caráter transgressivo – em especial no que concerne à sexualidade. Em tempos mais conservadores do que os atuais (será?) chamava a atenção o baile do Gala Gay no Rio – o mero fato de ser um baile gay já era notado como uma forma de transgressão da moral sexual estabelecida e, por isso, chamava a atenção da mídia. Hoje, embora ele ainda ocorra, já não recebe a mesma atenção, pois a homossexualidade ganhou legitimidade e, assim, olha-se menos para um baile gay como algo pitoresco e que mereça consideração especial.
E para além do caráter talvez um dia transgressivo da orientação sexual, vale lembrar a série de histórias relativas às violações do pudor em lugares públicos (e aos olhos do público) envolvendo a nudez de foliões, tapa-sexos perdidos e até políticos em situações inusitadas. Em 1989, Enoli Lara foi a primeira mulher a desfilar totalmente nua no Carnaval do Rio de Janeiro; cinco anos depois, a modelo Lilian Ramos foi fotografada sem calcinha ao lado de Itamar Franco, na Sapucaí. Em 2015, um carro alegórico da Mocidade Independente de Padre Miguel trazia dezenas de componentes, homens e mulheres, nus e se agarrando. Antes disso, a hoje apoiadora do presidente e então modelo Andressa Urach participou do carnaval da Leandro de Itaquera usando apenas um tapa-sexo de esparadrapo. Nada mais velho do que esse tipo de coisa, portanto.
Tão velho que se retornarmos aos anos 1980 lembraremos das transmissões televisivas noturnas repletas de sexo em bailes de Carnaval. Em 1988, as TVs Bandeirantes e Manchete transmitiram cenas tão tórridas que ensejaram uma reação do governo Sarney, com ameaças até mesmo de lhes cassar as concessões. A Band, aliás, era considerada reincidente, pois já transmitira cenas quentes quatro ou cinco anos antes – ainda durante a Ditadura Militar, tão prezada pelo atual presidente. Tudo terminou em pizza, com amenas advertências e a continuidade dos programas por anos a fio. A propósito, um dos que capitaneava tais transmissões era Otávio Mesquita, também um apoiador de Bolsonaro.
Como essas coisas chamam a atenção, são documentadas pela imprensa e recebem dela menções especiais. Por isso mesmo foi fácil fazer esta recapitulação de eventos. Tudo isso para observar que pouco tem de excepcional ou novo a cena escatológica filmada em um bloco de rua paulistano e reproduzida pelo presidente em seu Twitter. O que há de novo é tal tipo de cena ganhar publicidade por meio do primeiro mandatário do país.
Face ao estupefato de tantos diante da atitude presidencial, as tropas de assalto virtual que lhe prestam sabujice partem para o ataque, questionando os críticos de seu mito sobre o conteúdo do vídeo – para eles o real problema. Ora, mas como foi aqui demonstrado, o “problema” é tão recorrente (inclusive entre apoiadores de Bolsonaro) que faz pouco sentido levar muito a sério o evento particular – e menos sentido ainda faria que um presidente perdesse tempo com esse tipo de coisa. Ademais, pelas dimensões do Carnaval – em particular o paulistano – a ocorrência de algo assim é estatisticamente esperada. Os responsáveis pela performance denunciada pelo presidente são apenas dois indivíduos em meio a dezenas de milhões de foliões Brasil afora. Já o presidente, que reproduz esse tipo de vídeo em sua rede social, é único. Por isso mesmo e pela liturgia de que sua posição se reveste, deveria ter mais compostura e decoro.
O que merece análise são suas motivações para reproduzir o vídeo e para associar aquele evento específico aos blocos de Carnaval em geral. Ora, é sabido que o presidente foi o alvo preferido dos blocos carnavalescos por todo o país. Seu boneco foi vaiado em Olinda; em Belo Horizonte a Polícia Militar tentou censurar um bloco crítico ao presidente, ensejando uma contrarreação do Ministério Público em prol da liberdade de expressão; em São Paulo, foliões se fantasiaram de laranjas; no Rio, outros alaranjados promoveram folguedos nas cercanias da residência de Bolsonaro. Também na avenida as críticas ocorreram, como no desfile da Paraíso do Tuiuti, com suas coxinhas armadas.
Pouco abertos a qualquer tipo de contraditório (veja-se o caso de Ilona Szabó) ou crítica, os Bolsonaros e seus fãs servis reagem de forma iracunda. Vendo-se como alvo preferencial da irreverência carnavalesca, o presidente da República (ou, quem sabe, algum filho responsável por seu Twitter) resolveu desqualificar de forma generalizada os blocos, pinçando um episódio particular como “prova” de que tudo seria daquele jeito. Trata-se da clássica falácia da composição, em que se toma o todo pela parte: se num bloco de Carnaval paulistano há pessoas que promovem aquele tipo de performance, então muitos blocos são assim. Ao desqualificar seus críticos, desqualifica as críticas. O problema passa a ser a cena escatológica em lugar público e desaparecem as laranjas, os milicianos, a intolerância, o despreparo etc..
A questão é que esse episódio, por si só, reforça a imagem de despreparo e destempero do presidente e seu clã. Ao mesmo tempo, revela o quanto acusou o golpe do escárnio carnavalesco, o quanto é intolerante e o quanto é incapaz de perceber que certas atitudes são inadmissíveis para um presidente. Sua administração mal inicia o terceiro mês e já coleciona uma quantidade de disparates suficientes para solapar a credibilidade de um governo de oito anos. A transgressão dos foliões é parte inseparável do Carnaval, mas não cai bem a um chefe de Estado. A não ser, claro, que se trate de um Rei Momo.
* Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor do Departamento de Gestão Pública da FGV- Easp (Fundação Getúlio Vargas - Escola de Administração de Empresas de São Paulo).
* Fonte: Nexo Jornal.
* Fonte: Nexo Jornal.
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