Por Silvio Caccia Bava, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
O primeiro passo é olhar para a situação real. Pelo lado do cidadão e da cidadã comuns, o que todos sentem na pele é o desemprego, a precarização do trabalho e das condições de vida, a violência, a discriminação, a frustração, a insegurança. Muitos estão endividados, angustiados, sem poder pagar suas contas.
Ao tratarmos da situação atual, não podemos nos esquecer de que o Brasil é dos países mais desiguais do planeta e que 60% dos brasileiros vivem com um salário mínimo. Temos uma desigualdade estrutural, que vem desde os tempos da Colônia e da escravidão, e que não se altera mesmo se a economia for bem.
A essa desigualdade estrutural se somam as políticas de austeridade, impostas em escala global pelo capitalismo financeirizado e que são a inspiração do atual governo brasileiro.
O segundo passo é olhar para as crenças dos eleitores. Houve uma rejeição aos partidos políticos que dominaram a cena pública nas últimas décadas expressa na pífia votação do PSDB e do MDB nas últimas eleições. Nenhum deles, à exceção do PT, ultrapassou 5% da preferência do eleitor.
A estigmatização do PT fazia parte da agenda de Bolsonaro, baseada nos elementos de corrupção denunciados desde o Mensalão e na acusação de que é um partido de esquerda (?). Mas a corrupção é generalizada. No conjunto, todos partidos grandes foram acusados de não atender ao que o povo precisa e de roubar descaradamente em prejuízo do bem comum.
O tema do combate à corrupção e a luta contra o crime foram centrais para eleger Bolsonaro. Como ficam então os eleitores quando descobrem que a corrupção é praticada há muito tempo pelos Bolsonaros, com todo seu laranjal, e que estes estão profundamente envolvidos com as milícias, incluindo aquela que se supõe que tenha matado Marielle?
A corrupção e o crime ocuparam um lugar central na campanha eleitoral para ocultar a imposição das políticas econômicas de austeridade que retiram direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. Somada às discriminações e desigualdades históricas que castigam negros, mulheres e pobres de maneira geral, temos uma situação explosiva que atualmente é contida pela imposição do terror por parte de um Estado policial e violento. Os assassinatos e a violência policial que estão sendo postos em prática nas favelas de São Paulo e Rio de Janeiro, assim como nos assentamentos rurais, são expressão dessas políticas do novo governo.
O governo atual tem como principal objetivo responsabilizar o PT e a esquerda de maneira geral pela situação de crise econômica e social que vivemos. Para ele, os grandes bancos não têm responsabilidade pela desigualdade existente, mesmo que quase a metade do orçamento público se destine a pagar apenas os juros da dívida pública. E conclama seus seguidores a considerar seus compatriotas que não pensam como eles como inimigos a serem combatidos e mesmo exterminados. Bolsonaro convoca uma luta fratricida, considerando que essa é uma guerra que precisam vencer contra todos os diferentes. E manipulam as informações, criam fake news, para alimentar o ódio: ódio de classe, ódio de gênero, ódio à diferença, ódio ao projeto popular e democrático [1].
Com a falência das expectativas e o colapso da confiança por parte das maiorias, ao que se soma o fechamento dos canais de diálogo, os atuais governantes destroem a política e a democracia como espaço de negociação de interesses entre os distintos grupos sociais, optam pela imposição, pela força, de suas políticas e abrem espaço para mais violência e opressão.
A TV e a grande imprensa, controladas pela elite, desencadearam há anos uma campanha que alimenta o ódio e ataca o PT. Seus programas abertos mostram um país constantemente ameaçado pelo crime organizado, com a população sendo vitimada todos os dias, com uma polícia que se torna a única salvação contra as ameaças cotidianas de quem sai todos os dias para trabalhar. Com medo, a população aceita a violência e os assassinatos praticados pelos policiais. E, como já não se acredita na política, nas verdades que levaram o povo a eleger seus representantes, então tanto faz se é verdade ou fake news, o que importa é que as falas reforcem sua visão e suas preferências.
Se a votação expressou que o povo não queria mais do mesmo, que há uma rejeição ao sistema político como um todo, como fica agora que a alternativa de apostar em Bolsonaro se revela um desastre?
Se cabe aos policiais enfrentar o crime, cabe à política enfrentar o ódio. Segundo Jacques Rancière, só elaborando o ódio se poderá disputar terreno com essa lógica de guerra. A politização dessa descrença, dessa situação de mal-estar, “é o melhor antídoto contra a sua instrumentalização por parte daqueles que querem encontrar bodes expiatórios entre os outros” [2].
O caminho que Rancière aponta é o de questionar as causas desse desencanto e frustração, os processos e discursos que alimentam o ódio, e combater de fato o desemprego, as desigualdades e as discriminações.
Ao lado disso precisamos encontrar novas formas de convivência, ampliando o espaço público, recuperando o lugar central da política como espaço de negociação, apresentando/construindo alternativas para que possamos viver bem entre nós e com os diferentes.
* Silvio Caccia Bava é editor chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.
Notas
1- Doris Rinaldi, “O discurso do ódio, uma paixão contemporânea”. In: Miriam Debieux Rosa, Ana Maria Medeiros da Costa e Sérgio Prudente (orgs.), As escritas do ódio – Psicanálise e política, Escuta/Fapesp, São Paulo, 2018.
2- Jacques Rancière, “Como sair do ódio?” – entrevista publicada no blog da Boitempo em 10 maio 2016.
Como entender e superar esta polarização e violência que marcam nossa convivência como brasileiros e brasileiras nos dias de hoje?
O primeiro passo é olhar para a situação real. Pelo lado do cidadão e da cidadã comuns, o que todos sentem na pele é o desemprego, a precarização do trabalho e das condições de vida, a violência, a discriminação, a frustração, a insegurança. Muitos estão endividados, angustiados, sem poder pagar suas contas.
Ao tratarmos da situação atual, não podemos nos esquecer de que o Brasil é dos países mais desiguais do planeta e que 60% dos brasileiros vivem com um salário mínimo. Temos uma desigualdade estrutural, que vem desde os tempos da Colônia e da escravidão, e que não se altera mesmo se a economia for bem.
A essa desigualdade estrutural se somam as políticas de austeridade, impostas em escala global pelo capitalismo financeirizado e que são a inspiração do atual governo brasileiro.
O segundo passo é olhar para as crenças dos eleitores. Houve uma rejeição aos partidos políticos que dominaram a cena pública nas últimas décadas expressa na pífia votação do PSDB e do MDB nas últimas eleições. Nenhum deles, à exceção do PT, ultrapassou 5% da preferência do eleitor.
A estigmatização do PT fazia parte da agenda de Bolsonaro, baseada nos elementos de corrupção denunciados desde o Mensalão e na acusação de que é um partido de esquerda (?). Mas a corrupção é generalizada. No conjunto, todos partidos grandes foram acusados de não atender ao que o povo precisa e de roubar descaradamente em prejuízo do bem comum.
O tema do combate à corrupção e a luta contra o crime foram centrais para eleger Bolsonaro. Como ficam então os eleitores quando descobrem que a corrupção é praticada há muito tempo pelos Bolsonaros, com todo seu laranjal, e que estes estão profundamente envolvidos com as milícias, incluindo aquela que se supõe que tenha matado Marielle?
A corrupção e o crime ocuparam um lugar central na campanha eleitoral para ocultar a imposição das políticas econômicas de austeridade que retiram direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. Somada às discriminações e desigualdades históricas que castigam negros, mulheres e pobres de maneira geral, temos uma situação explosiva que atualmente é contida pela imposição do terror por parte de um Estado policial e violento. Os assassinatos e a violência policial que estão sendo postos em prática nas favelas de São Paulo e Rio de Janeiro, assim como nos assentamentos rurais, são expressão dessas políticas do novo governo.
O governo atual tem como principal objetivo responsabilizar o PT e a esquerda de maneira geral pela situação de crise econômica e social que vivemos. Para ele, os grandes bancos não têm responsabilidade pela desigualdade existente, mesmo que quase a metade do orçamento público se destine a pagar apenas os juros da dívida pública. E conclama seus seguidores a considerar seus compatriotas que não pensam como eles como inimigos a serem combatidos e mesmo exterminados. Bolsonaro convoca uma luta fratricida, considerando que essa é uma guerra que precisam vencer contra todos os diferentes. E manipulam as informações, criam fake news, para alimentar o ódio: ódio de classe, ódio de gênero, ódio à diferença, ódio ao projeto popular e democrático [1].
Com a falência das expectativas e o colapso da confiança por parte das maiorias, ao que se soma o fechamento dos canais de diálogo, os atuais governantes destroem a política e a democracia como espaço de negociação de interesses entre os distintos grupos sociais, optam pela imposição, pela força, de suas políticas e abrem espaço para mais violência e opressão.
A TV e a grande imprensa, controladas pela elite, desencadearam há anos uma campanha que alimenta o ódio e ataca o PT. Seus programas abertos mostram um país constantemente ameaçado pelo crime organizado, com a população sendo vitimada todos os dias, com uma polícia que se torna a única salvação contra as ameaças cotidianas de quem sai todos os dias para trabalhar. Com medo, a população aceita a violência e os assassinatos praticados pelos policiais. E, como já não se acredita na política, nas verdades que levaram o povo a eleger seus representantes, então tanto faz se é verdade ou fake news, o que importa é que as falas reforcem sua visão e suas preferências.
Se a votação expressou que o povo não queria mais do mesmo, que há uma rejeição ao sistema político como um todo, como fica agora que a alternativa de apostar em Bolsonaro se revela um desastre?
Se cabe aos policiais enfrentar o crime, cabe à política enfrentar o ódio. Segundo Jacques Rancière, só elaborando o ódio se poderá disputar terreno com essa lógica de guerra. A politização dessa descrença, dessa situação de mal-estar, “é o melhor antídoto contra a sua instrumentalização por parte daqueles que querem encontrar bodes expiatórios entre os outros” [2].
O caminho que Rancière aponta é o de questionar as causas desse desencanto e frustração, os processos e discursos que alimentam o ódio, e combater de fato o desemprego, as desigualdades e as discriminações.
Ao lado disso precisamos encontrar novas formas de convivência, ampliando o espaço público, recuperando o lugar central da política como espaço de negociação, apresentando/construindo alternativas para que possamos viver bem entre nós e com os diferentes.
* Silvio Caccia Bava é editor chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.
Notas
1- Doris Rinaldi, “O discurso do ódio, uma paixão contemporânea”. In: Miriam Debieux Rosa, Ana Maria Medeiros da Costa e Sérgio Prudente (orgs.), As escritas do ódio – Psicanálise e política, Escuta/Fapesp, São Paulo, 2018.
2- Jacques Rancière, “Como sair do ódio?” – entrevista publicada no blog da Boitempo em 10 maio 2016.
"Precisamos encontrar novas formas de convivência...". Trata-se de uma frase com sujeito oculto? Quem seria essa segunda pessoa do plural? Os simpatizantes de esquerda confinados nos espaços virtuais, lendo matérias e artigos cheios de dados e análises críticas, que circulam viciosamente pelas suas cabeças orgulhosas de se considerarem progressistas, defensoras de uma sociedade mais justa, enquanto a maioria esmagadora do povo prossegue no circuito vicioso de segunda classe, reservado aos que se remetem aos processos alienatórios mais consistentes, indo e vindo do trabalho para a casa, sentando-se defronte da TV comercial, ingressando como zumbis em transe em Igrejas operadoras da lobotomia evangélica pentecostal? Quem são (ou serão) os sujeitos da luta contra os que instituem entre nós o Estado Policial Protofascista Neoliberal Neopentecostal? Nós? Os que somos de esquerda?... Não daremos nem para a saída. A única força capaz de derrotar a força unida da direita são os que aparentam ser indiferentes, a massa humana submetida a cotidianos processos de alienação/despolitização. "Nós", nossos atos políticos, só faremos sentido se saírmos dos espaços que nos confinam separados, distanciados do povo, nos fazendo apenas alienados de primeira classe, para ir em direção a ampla maioria do povo, com o propósito de ajudar a romper as cadeias de sua alienação. Senão, seguiremos ameaçados de morte pelos milicianos fascistas determinados em nos eliminar, seguros da impunidade de que desfrutam à sombra do Estado Policial, que jamais revelará os nomes dos mandantes e executores de quem matou Marielle ou de quem nos virá a matar futuramente.
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