segunda-feira, 4 de março de 2019

Argentina: crise econômica ou política?

Por Damián Paikin, na revista Teoria e Debate:

A crise econômica e social que a Argentina atravessa hoje e que possivelmente custará a não reeleição do presidente Mauricio Macri tem suas causas em diversos fatores, tais como o endividamento desmedido, a destruição do consumo interno, a abertura indiscriminada das importações, a fuga de capitais etc.

Entretanto, se observarmos o fenômeno detidamente, poderemos descobrir que as verdadeiras razões da crise estão ligadas principalmente ao modelo de representação política do macrismo e sua forma, persistentemente errada, de observar o mundo e as relações internacionais em que a Argentina se insere.

O Cambiemos [Mudemos] ganhou as eleições com base na rejeição de um setor da sociedade ao kirchnerismo após 12 anos de governo, apoiado em algumas diretrizes e na existência de problemas concretos, como a inflação, que hoje transbordou. As diretrizes, além das questões mais panfletárias como “unir os argentinos” ou “pobreza 0”, baseavam-se na necessidade de favorecer o clima de negócios no país, deixando para trás anos de forte confronto com os grandes grupos econômicos locais, de um lado, e o reencontro da Argentina com o mercado financeiro e o poder econômico internacionais, de outro. Dessa forma, dizia-se, os investimentos fluiriam, a economia cresceria e se voltaria ao mundo – eufemismo para defender nova aproximação dos Estados Unidos e da Europa Ocidental.

Essa proposta não é nova na política latino-americana. Segundo Devés Valdés (1997), a alternância que ocorre entre o kirchnerismo e o macrismo, ou a que ocorre atualmente no Brasil, pode se situar no que o autor define como a dinâmica da modernização – identidade sob a qual transcorre o pensamento político latino-americano do último século. De modo simplificado, o autor chileno define o modelo da modernização como aquele que se descreve a partir de: “1) seu empenho para seguir os países desenvolvidos; 2) acentuação do tecnológico, do mecânico, em detrimento do social e do humanista; 3) ênfase na abertura ao mundo, entendendo a ingerência externa como possibilidade, mais que como ameaça”, enquanto o modelo identitário reforça as ideias de que: “1) existe um modo de ser próprio latino-americano, diferente do europeu; 2) reforço dos conteúdos sociais e do humanista; e 3) o não intervencionismo dos países mais desenvolvidos da América Latina, a reivindicação da ‘independência’ e da ‘libertação’ ou ‘autonomia’” (Devés Valdés, p. 14).

Um olhar semelhante sobre a relação com o mundo e a lógica das próprias economias latino-americanas também se fará presente na análise de Amado Cervo (2003) do globalismo benigno1 ou do proposto por Russell e Tokatlian (2013) como uma das formas históricas da política externa latino-americana, a lógica da aquiescência ou do seguidismo, como forma contrária à lógica da autonomia2.

Isto é, na proposta não se encontram formas muito originais de pensar a realidade nacional. No entanto, o macrismo, por sua própria construção político-ideológica, incorporará algumas novidades que levarão diretamente ao naufrágio de seu modelo em apenas três anos de governo. Como dizíamos, essa originalidade se situa no modo da representação política do macrismo e seu olhar persistentemente errado sobre a política internacional.

A representação corporativa do macrismo

Construída principalmente a partir da oposição ao kirchnerismo, a premissa inicial do novo governo foi desenvolver uma lógica de representação oposta à do período anterior. Assim, diante da preeminência do peronismo e seus dirigentes nos espaços de poder do governo precedente, a reação do macrismo, cuja base de dirigentes, de outro lado, era muito limitada, foi convocar extrapartidários para ocupar postos no novo elenco governamental.

Formou-se assim o governo dos CEOs, a partir da chegada aos ministérios de pessoas que antes foram diretores de grandes grupos econômicos. Essa ideia se baseava em dois preceitos centrais. Primeiro: já que era preciso promover o investimento e terminar com o confronto, nada melhor que entregar as decisões aos próprios atores do setor, que além disso conheciam muito a dinâmica do mesmo. Segundo: todos eram suficientemente ricos, portanto não precisavam roubar e a corrupção acabaria.

Dessa forma, para o setor energético se colocou o CEO de uma das principais petroleiras, a Shell; na área agrícola, o dirigente dos grandes proprietários de terras; no comércio, o presidente dos supermercados; e finalmente, no comando da economia, os gerentes argentinos dos principais bancos de investimentos, como JP Morgan, entre outros.

Assim, rapidamente, cada setor começou a lutar por seus próprios interesses, desmontando os regulamentos estatais. O problema que o governo enfrentou é que em muitas ocasiões tais interesses eram contraditórios entre si, provocando desajustes muito fortes na macroeconomia e na própria sustentabilidade política do macrismo. Por exemplo, enquanto o campo lutava por uma forte desvalorização, o setor financeiro brigava pela estabilidade monetária para aproveitar as altas taxas de juros em pesos.

Em todas e em cada uma das disputas, finalmente o governo se posicionou do lado do setor financeiro, não só por convicção ideológica, e por pertencimento fático de seus ministros ao setor, como pela dependência existente da dívida externa para o pagamento dos créditos cotidianos do Estado.

Esse vínculo com o setor financeiro internacional foi sustentado a partir de fortes incentivos à sua chegada ao país. Livre movimentação de capitais e altas taxas internas em pesos e inclusive em dólares.

No entanto, as bases do modelo rapidamente mostraram sua fragilidade com a luta entre setores do poder. Entre as principais causas, pode-se citar o colapso do consumo produzido principalmente pelo aumento desmedido dos preços dos serviços públicos (eletricidade, gás, transporte). Preços regulados pelo Estado, mas liberados à cobiça das companhias que, como já se disse, estavam à frente dos ministérios de Energia, Transportes e outros. Ao elevar os preços regulamentados, atuaram imediatamente sobre o consumo, de duas maneiras. Diretamente sobre o bolso dos consumidores e indiretamente a partir do aumento de preços dos bens produzidos internamente.

Diante disso, o paliativo buscado para combater a inflação e a queda do consumo foi a liberalização das importações, e, sobretudo, a grande aposta do governo, o setor externo, ponto em que entramos no segundo nó estrutural que havíamos definido para entender a crise.

O setor externo

Nesse contexto já complicado, a aposta do governo do Cambiemos foi organizar a economia a partir de um boom das exportações que desse à economia um superavit em dólares, capaz de pagar os créditos que iam sendo tomados e além disso atrair investimentos estrangeiros para setores específicos, como mineração ou energia, voltados para o mercado mundial. A frase de Macri, muito arraigada no inconsciente coletivo argentino, foi passar de ser o celeiro do mundo a ser o supermercado do mundo, quer dizer, agregar valor aos produtos primários.

Entretanto, em 2017, ano previsto para a consolidação do modelo, o déficit comercial argentino foi o mais alto da história, e 2018 caminhava para superá-lo em muito até que a crise destruiu o consumo interno, e o déficit comercial foi contido principalmente com a queda acentuada das importações. O que levou a esse tremendo fracasso?

Obviamente, há questões muito objetivas, uma delas a queda do consumo no Brasil, que afetou fortemente as exportações argentinas, sendo esse o principal destino das vendas ao exterior. Mas o que realmente falhou foi a visão política do funcionamento do mundo.

Macri chegou ao governo, como se disse, com o mantra do retorno ao mundo e das benesses do livre mercado e da abertura comercial. Atrás disso, o que se escondia na verdade era a destruição da gestão política das relações comerciais que o governo anterior levava adiante com mais ou menos sorte, o fim da aproximação com a China e a Rússia, o enfraquecimento do Mercosul e a recomposição das relações com os EUA, ao mesmo tempo que se buscava um acordo de livre comércio sem condições com a União Europeia.

O problema é que esse mundo multilateral, pró-livre mercado que Macri esperava não existia mais. E se essa visão era fortemente discutível em 2016 com o governo Obama, com a chegada ao poder de Trump sua sustentação se transformou realmente em um gigantesco erro, que só pode ser atribuído a uma visão extremamente ideologizada das relações entre os países.

Essa distância entre o que se quer e o que é ajudou a gerar alguns traços próprios do atual estado do país, fazendo que aquilo que deveria ter ajudado a estabilizar a economia (como o comércio exterior e os investimentos) tenha se voltado contra ela.

Com o déficit histórico de 2017 e sua continuação em 2018, com uma inflação galopante que obrigava a aumentar as taxas internas a níveis inimagináveis para sustentar os capitais especulativos, e com um mercado interno em recessão, gerando queda da arrecadação fiscal e aumento do déficit, em abril-maio de 2018 os fundos especulativos estrangeiros decidiram que o risco era muito alto, que tinham ganhado o suficiente e se retiraram da praça, trocando seus pesos por dólares e levando-os do país sem qualquer restrição.

Dessa forma, em três meses o peso se desvalorizou 100%, as reservas internacionais evaporaram, pois foram usadas para pagar a fuga de capitais, a confiança dos investidores caiu a zero, a Argentina ficou sem dólares e o governo saiu correndo a chamar o Fundo Monetário Internacional (FMI), instituição que tem uma péssima imagem no país.

A política do FMI foi clara. Empréstimo histórico de dólares, voltado principalmente para o repagamento da dívida contraída, profunda recessão e contração do mercado interno para evitar excedentes de pesos que pudessem pressionar a taxa de câmbio, redução dos gastos do Estado e pouco mais. Como benefício associado, segundo seus interesses, a destruição da atividade econômica trouxe consigo a queda das importações e portanto a recuperação de um pequeno excedente comercial, que também deverá ser usado para pagar a dívida.

O fim do modelo

Em consequência dessa situação, o consenso geral, inclusive dos economistas e comunicadores que apoiam o governo, é que o modelo econômico proposto pelo macrismo está acabado. Isso não quer dizer que necessariamente vá perder as eleições, embora seja o esperado se o processo eleitoral de outubro ocorrer de forma democrática. Outros fatores, de tom político ou judicial, podem ainda jogar suas cartas no cenário da votação.

Mas a verdade é que hoje a situação não parece ter solução. Os interesses corporativos continuam pressionando pelo aumento dos preços regulamentados, o governo continua aceitando essas pressões, e a economia real, comprimida entre a queda brutal do consumo, o aumento do preço dos serviços públicos e das importações, começa a mostrar fortes problemas em termos de emprego, pobreza e, finalmente, paz social. O tempo e a política dirão se serão reeleitos ou não. Mas mesmo que o sejam deverão modificar seu modelo econômico, sob o risco de que a perseverança nesse rumo leve a Argentina a uma crise semelhante à de 2001.

* Damián Paikin é professor e pesquisador na Universidade de Buenos Aires. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Referências

- Cervo, Amado Luiz (2003). “Política exterior e relações internacionais do Brasil: enfoque paradigmático”. In: Revista Brasileña de Política Internacional, Brasília, Instituto Brasileño de Relaciones Internacionales.

- Déves Valdez, E. (1997). “El pensamiento latinoamericano a comienzos del siglo XX. La reivindicación de la identidad”. Anuario de la Filosofía Argentina y Americana, n° 14, Universidad de Cuyo, Mendoza.

- Russell, R.; Tokatlian, J. G. (2013). “América Latina y su gran estrategia: entre la aquiescencia y la autonomía”. In: Revista CIDOB d’Afers Internacionals, n° 104, Barcelona, Centre for International Affairs.

Notas

1. O autor afirma que sob a premissa do globalismo benigno os interesses nacionais se diluem na ordem criada pelo multilateralismo das relações internacionais, a chamada governança global.

2. Os autores definem a lógica da aquiescência (em contraposição à lógica da autonomia) como aquela que aceita conscientemente a condição de subordinação aos Estados Unidos e de quem se espera conseguir vantagens materiais ou simbólicas pela assimilação dessa condição.

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