Não é de hoje que se fala em “crise da democracia” ou em “crise de representatividade”. Consequência da natureza indeterminada e inacabada da democracia, o desencanto que ela desperta assim como as expectativas com seu aperfeiçoamento sempre andaram de mãos dadas. A democracia carrega consigo um “paradoxo de origem”, responsável pelas tensões que a estruturam, a saber, que a sua definição como “poder do povo” é irrealizável. Parece, entretanto, que vivemos uma época em que o desencanto vem prevalecendo, dando lugar a ideia de que a morte da democracia, inclusive nos países ditos centrais, é uma possibilidade real.
Quando contrastamos as expectativas de democratização hoje com aquelas de trinta anos atrás, as diferenças saltam aos olhos. Na virada da década de 1980 para a de 1990, a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética levaram a uma euforia com relação às expectativas da universalização da democracia sintetizada pela célebre fórmula de Francis Fukuyama sobre o fim da História. Segundo o cientista político da Universidade de Stanford, a democracia liberal e o modo de produção capitalista eram o ponto de chegada da história da humanidade. Estava-se, para citar outro célebre cientista político norte-americano, Samuel Huntington, em plena “terceira onda” de democratização. Esse polêmico acadêmico argumentava, num trabalho hoje clássico, que houve três momentos na história moderna em que ocorreu uma tendência mundial em direção a democratização. Essa “terceira onda”, iniciada com a Revolução dos Cravos em Portugal em 1974, e que se espalhou notadamente pela América Latina, ocorreu após uma “primeira onda”, bastante longa, entre 1828 e 1926; e uma “segunda onda”, mais breve, entre 1943 e 1962.
Em meados dos anos 2010, a ascensão dos populismos autoritários e particularmente a chegada de Donald Trump na Casa Branca em 2017 parecem indicar uma tendência global no sentido inverso. Esses dois movimentos, de consolidação e desconsolidação da democracia, podem ser atestados também por seus impactos no campo do conhecimento. Na Ciência Política, o tema das transições e da consolidação da democracia dominou a agenda de pesquisas ao longo dos anos 1980 e 1990. Já no último ano, entre os títulos que mais geraram debates entre os analistas políticos e no espaço público de uma forma geral estão “Como as democracias morrem” (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, 2018), “Como a democracia chega ao fim” (David Runciman, 2018) e “O povo contra a democracia” (Yasha Mounk, 2019). Eles ilustram e teorizam um sentimento difuso de apreensão com a possibilidade da morte da democracia e como essa morte, ao contrário dos golpes de Estado “clássicos”, pode advir lentamente e do interior do próprio regime democrático.
Há uma dimensão na retórica e na a práxis dos populistas autoritários de direita que merece alguns comentários. Essa dimensão é a dos ataques aos direitos, ataques que se inserem, por sua vez, num amplo movimento de reação a uma série de mudanças consideradas progressistas, sobretudo no campo dos costumes, advindas inicialmente no mundo desenvolvido a partir dos anos 1960 e em seguida em outros países do chamado Terceiro Mundo. Essas mudanças foram possibilitadas por fenômenos estruturais como substituição geracional, expansão do acesso à educação superior, urbanização e imigração. A consequência desse processo foi uma ampla difusão, a partir dos anos 1960, de valores “sociais liberais” que se traduziu em uma crescente pressão – depois pouco a pouco transformadas em políticas – por igualdade de gênero, garantia de direitos para as minorias, legalização do divórcio e do aborto (nos países mais desenvolvidos) e de popularização e expansão dos métodos contraceptivos.
Essas mudanças e conquistas foram consideradas revolucionárias por vários autores. O cientista político Ronald Inglehart, ainda na década de 1970, dedicou um estudo às mudanças nos valores e atitudes nas sociedades ocidentais que intitulou The silent revolution (1977). Já Eric Hobsbawm, em A era dos extremos (1994), falou em revolução social e revolução cultural. Agora em 2019, o mesmo Inglehart, com a colaboração de outra importante cientista política, Pippa Norris, acaba de publicar um trabalho magistral sobre os populismos autoritários intitulado Cultural Backlash. Trump, Brexit, and Authoritarian Populism (Cambridge University Press, 2019). Os autores explicam a ascensão dos populismos autoritários a partir da “teoria da reação cultural” [Cultural Backlash Theory]. Em poucas palavras, o argumento dos autores é que, se há razões econômicas para a ascensão de Trump, da Frente Nacional francesa, da Liga do Norte e do Movimento 5 Estrelas italianos, de Geert Wilders e seu Partido para a Liberdade holandês, assim como para o Brexit (crise econômica, desindustrialização, desemprego em massa), esse fenômeno é sobretudo uma reação conservadora às transformações no campo dos valores e costumes e às conquistas elencadas acima. Há, portanto, da parte dos populistas autoritários de direita e dos seus eleitores o desejo de um retorno a um momento anterior ao início dessa “revolução cultural”, para empregarmos a definição de Hobsbawm. Os discursos dos diferentes líderes populistas, assim como seus slogans de campanha são, nesse sentido, bastante ilustrativos: “Make America Great Again”, no caso de Trump; “Take Back Control”, no caso do Brexit; “Au nom du peuple” no caso da Frente Nacional francesa. O que esses slogans dizem? Que os Estados Unidos já foram grandes e deixaram de ser; que o Reino Unido “detinha o controle” (sobre suas fronteiras, sua economia) que foi perdido com sua entrada na União Europeia; que o povo francês era soberano e deixou de ser também em benefício dos “tecnocratas de Bruxelas”, completamente “cortados do povo”. Ora, tornar a América grande novamente, tomar de volta o controle no Reino Unido ou devolver a soberania ao povo francês revela o desejo de voltar a (ou restaurar uma) época anterior à “decadência”, num caso, ou à construção da União Europeia, no outro.
Nesse contexto global de ascensão dos populismos autoritários, de desconsolidação democrática e de reação cultural às transformações e valores considerados progressistas, o Brasil passou a ocupar um lugar de destaque desde a destituição de Dilma Rousseff em 2016, e sobretudo com a campanha eleitoral de 2018 que levou um candidato populista de extrema direita ao poder. Como sabemos, o atual presidente da República, produto da extrema direita militar e paramilitar dos anos 1960 e 1970, construiu a sua carreira política com uma retórica autoritária e de total desprezo com relação aos princípios do regime democrático. Como parte dessa retórica autoritária e antidemocrática, estão seus constantes ataques aos direitos humanos, em geral, e ao direito das minorias em particular e um desejo de restauração de uma época desaparecida. A absurdidade, a cretinice e a idiotia das declarações oriundas do bolsonarismo deram vazão a piadas, deboches e memes que escondem um desejo e um projeto político levado muito a sério por seus autores. Quando o atual presidente da República qualifica direitos humanos de “esterco de vagabundagem” ou quando afirma que pessoas homoafetivas formariam uma “classe privilegiada”; quando o ministro da Educação afirma que as universidades deviam ser reservadas a uma elite; quando a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos fala que “a partir de agora meninos vestem azul e meninas vestem rosa”; ou ainda quando a atriz bolsonarista Regina Duarte afirma que “quando conheci Bolsonaro encontrei um cara doce, um homem dos anos 1950, como meu pai, que faz brincadeiras homofóbicas da boca para fora [...] que chamava o brasileiro de preguiçoso e que dizia que lugar de negro é na cozinha; sem nenhuma maldade”, é exatamente esse mundo dos anos 1950 que se tenta restaurar. A lógica bolsonarista é, nesse sentido, a mesma dos populistas autoritários de direita europeus. O problema é que para muitos deles, a restauração de um mundo perdido implica desfazer as conquistas consideradas progressistas dos últimos sessenta anos.
Apesar de haver um forte elo entre conservadorismo social e valores autoritários, como colocaram Ronald Inglehart e Pippa Norris (Cultural Backlash, 2019), não se deve incorrer no erro de considerar o conservadorismo como um bloco homogêneo e “fascista”. É certo que estes existem e se abrigam sob a etiqueta de conservadores, junto com conservadores moderados e liberais. Mas o campo conservador é plural e heterogêneo. É forçoso constatar, porém, que os populistas autoritários colocam um problema para os conservadores ditos moderados e/ou liberais, sobretudo àqueles que se pretendem democráticos: o paradoxo do desejo de restaurar um mundo perdido sem cair na tentação de tentar revogar direitos conquistados, direitos esses que são os pilares da democracia.
É interessante notar que antes de ser alvo dos conservadores, especialmente dos populistas autoritários dos dias atuais, houve um tempo em que o desprezo por direitos vinha de uma parte da esquerda, herança de um pensamento marxista segundo o qual falar em direitos era falar em direitos do “homem egoísta, do homem separado do homem e da coletividade”, em uma palavra, de direitos burgueses (Karl Marx, A Questão Judaica). Em um clássico da filosofia política do século XX, A invenção democrática, Claude Lefort deu uma das contribuições mais importantes para pensarmos a relação entre direito e política e, mais especificamente, entre direitos do homem e democracia. O contexto da publicação dessa obra era a França do final dos anos 1970, quando o mundo intelectual daquele país tinha acabado de sofrer “abalo sísmico” da publicação de O Arquipélago Gulag, de Soljenítsin, momento também em que a ação dos dissidentes do bloco comunista não podia mais ser ignorada ou minimizada e que ex-comunistas franceses se tornavam os novos campeões do anticomunismo e da democracia liberal. Lefort propunha uma reflexão muito mais profunda, que permitisse ir além da denúncia dos crimes soviéticos e mostrou como uma democracia não pode prescindir do reconhecimento dos direitos do homem.
Lefort, ele mesmo um filósofo de esquerda, faz isso a partir de uma crítica profunda a Karl Marx, mostrando como o autor do Capital fora cego à importância da Declaração dos Direitos do Homem e aos artigos das Constituições americana de 1789 e francesas de 1791, 1793 e 1795. Além dessa cegueira, a recusa de Marx em pensar o político – centrado que estava nas relações de produção e na luta de classes e para quem a emancipação política era apenas uma etapa da emancipação humana – o impediu de conceber a mutação histórica com a qual o direito se torna uma exterioridade do poder. Como se deu esse processo? Com a desincorporação do poder e a desincorporação do direito que acompanhou a desaparição do “corpo do rei”, no qual se encarnava a comunidade e se materializava a justiça; e simultaneamente, um fenômeno de desincorporação da sociedade, cuja identidade, apesar de já figurada na Nação, não se separava da pessoa do monarca. Esse foi o acontecimento mais marcante da “revolução democrática” da virada do século XVIII para o XIX: o desintricamento simultâneo do princípio do poder, do princípio da lei e do princípio do saber. Para compreender essa afirmação de Claude Lefort é necessário remontarmos ao período moderno, que precede a Revolução Francesa, momento em que o Estado monárquico precisava respeitar direitos múltiplos e particulares adquiridos. Esses direitos dependiam de um pacto que se enraizava em um passado imemorial e que o monarca não podia abolir. Ao mesmo tempo, embora estivesse submetido a esses direitos, o príncipe os carregava consigo, eles estavam consubstanciados em sua pessoa. O traço revolucionário e sem precedentes da democracia é que o lugar do poder, antes representado no corpo do rei, torna-se vazio. Interdita-se o governante de incorporar o poder e seu exercício é submetido a procedimentos periódicos, fenômeno que implica a institucionalização do conflito. Portanto, o direito como exterioridade do poder é um dos pilares da democracia.
Essa afirmação se torna ainda mais clara quando refletimos sobre a sociedade totalitária. O totalitarismo é justamente uma tentativa de reincorporação (ou “reintricamento” ou “recondensamento”) das esferas do poder, do direito e do saber. Ou seja, o conhecimento dos fins últimos da sociedade e das normas que regem as práticas sociais, tornam-se propriedades do poder. Este, incorporado em um homem, se combina com um saber igualmente incorporado. Graças a onipresença do Partido que difunde em todo lugar a ideologia dominante e as diretrizes do poder, Estado e sociedade se confundem. O poder totalitário é, portanto, um poder que reina como se não houvesse nada fora dele. Daí a frase de Claude Lefort, segundo a qual “o totalitarismo se edifica sobre a ruína dos direitos do homem” (A invenção totalitária, p. 44).
Não estou sugerindo que caminhamos rumo a uma sociedade totalitária. Mas as reflexões de Claude Lefort nos ajudam a entender, no plano teórico, a impossibilidade de uma democracia sem direitos. Algumas décadas após Lefort, Pierre Rosanvallon chamou a atenção para uma segunda dimensão do elo democracia-direitos: o das discriminações. Em Notre histoire intellectuelle et politique (2018), ele mostra como a singularidade dos indivíduos se afirma em relação a outras que a cercam e elas só são possíveis numa “democracia de reconhecimento”. A falta de reconhecimento das singularidades mina a democracia, sendo a discriminação a expressão mais evidente. Uma discriminação se define, portanto, como um tratamento desigual das pessoas em função de sua origem, religião, convicções, orientação sexual, gênero ou ainda deficiências físicas. A causa do tratamento desigual, e que o torna ilegítimo, é a assimilação negativa de uma pessoa a uma de suas características. O sujeito da discriminação é o “indivíduo-categoria”: mulher, negro, homossexual. Nesse sentido, a discriminação é uma dupla negação, cruzada, de similaridade e singularidade. Essa dupla dimensão lhe dá sua centralidade como forma de negação da igualdade no mundo contemporâneo. O que esse aparente paradoxo quer dizer? Por um lado, a discriminação é uma patologia da singularidade, na medida em que atribui ao indivíduo uma “classe de singularidade” julgada depreciativa. O indivíduo é então reduzido à sua origem étnica ou ao seu sexo, por exemplo, e todas as outras características da sua personalidade são apagadas. Como consequência, a pessoa discriminada não é mais reconhecida em sua singularidade plena, ela não é considerada como alguém. Por outro lado, recusa-se à pessoa discriminada a qualidade de um indivíduo qualquer, pois ela está socialmente fechada em uma categoria. É nesse sentido que ela é duplamente excluída. Assim, voltamos a discussão sobre direitos e democracia: a luta contra a discriminação pode consistir na atribuição de direitos a uma categoria específica ou em ações compensatórias a determinados grupos. Esse movimento é salutar na medida em que a discriminação é a forma propriamente moderna de produzir desigualdade.
A crise política iniciada em 2013 abriu a caixa de Pandora do conservadorismo mais tacanho cujos valores e atitudes se escancararam com a instauração da República Bolsonaresca. Mas não nos enganemos: se a caixa de pandora foi aberta em 2013, ela sempre esteve lá. Essa virada conservadora não é o resultado de um acidente histórico que ameaçou fazer todo o edifício da Nova República vir a baixo; as forças conservadoras, da extrema direita aos conservadores moderados, não desapareceram com o fim do regime militar e a Constituição de 1988. Elas refluíram por um período, mas continuaram existindo. Uma possível explicação para esse refluxo está na difusão (e no que se pensava ser uma ampla aceitação) de valores progressistas, de demanda por democracia e rejeição da ditadura quando esta se encontrava em seus estertores. O que explica o silêncio (ou a vergonha?) dos conservadores mais radicais, entre as décadas de 1980 e 2010? Recorro uma última vez a Ronald Inglehart e Pippa Norris. Eles explicam, a partir da “teoria da espiral de silêncio” de Elisabeth Noelle-Neumann, que as pessoas têm uma tendência a permanecerem em silêncio quando pressentem que suas visões são minoritárias (The Spiral of Silence: Public Opinion – Our Social Skin, 1984). Elas temem sofrer com penalidades sociais tais como isolamento, desaprovação, perda de status e posições. Ou seja, quando as minorias percebem que são minorias, elas tendem à autocensura. Tocqueville já alertava para esse fenômeno na década de 1830: era o que ele via como uma espécie de “tirania intelectual e espiritual” da democracia fundada na “teoria da igualdade aplicada às inteligências”, que exige submissão não apenas às decisões da maioria, mas também às suas ideias.
Acredito que houve no Brasil, no período que se situa entre meados da década de 1980 e início dos anos 2010, uma hegemonia de valores, ideias e atitudes socialmente progressistas e que isso mudou a partir do primeiro governo Dilma Rousseff, quando entramos num processo inverso de ascensão conservadora e autoritária, também em termos de valores e atitudes. Analisar as razões dessas mudanças demandaria muitas páginas de reflexão, muito além dos limites desse texto. Importa destacar, contudo, que esse conservadorismo não é um fenômeno passageiro e certamente sobreviverá ao bolsonarismo. O grande desafio das instituições – notadamente o STF como poder contramajoritário – e dos setores mais progressistas da sociedade é impedir que a agenda conservadora não leve junto consigo os direitos conquistados no último meio século e, com eles, os pilares da nossa democracia.
* Diogo Cunha é doutor em história (Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne), pós-doutorando em Ciência Política e Professor Substituto de Teoria Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi professor na Université Charles-de-Gaulle Lille 3 (França) e no Institut d’Études Politiques (SciencesPo-Poitiers) (França).
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