Por Paulo Donizetti de Souza, na Rede Brasil Atual:
Economia sem embalagem
Além de expor a perseguição implacável a qualquer possibilidade de senso crítico – e nada mais parelho a isso do que o ataque do atual governo à pesquisa, à ciência e às universidades públicas – a novela transita pelas contradições econômicas da Nova Ordem. Kucinski foi um dos precursores do jornalismo econômico. Da técnica de traduzir para os leitores leigos os efeitos da economia na vida do país e dos cidadãos. Até que os cadernos de economia dos jornais passassem a ser dominados pela linguagem do mercado, e o assunto ficasse fora do alcance dos mortais.
Um dos personagens da A Nova Ordem é Angelino, engenheiro vítima da falência da indústria naval, que se tornou catador de materiais recicláveis. Os que restaram. Por meio dele, o autor dá uma aula indireta do que virou a economia de um país desindustrializado.
“Pelo lixo também dá para contar a história dessa maldita Nova Ordem. O sumiço repentino do papelão. Primeiro, ele pensou que era por causa dos retirantes que chegavam aos magotes depois que o governo decretou o fim do minifúndio. Esse povo montava barracos com papelão e embalagem de leite. Custou ele perceber que não era só isso. É que, com a Nova Ordem, foram fechando as metalúrgicas e, sem produção de fogão, geladeira, ventilador, enfim, essas coisas todas, não precisa de embalagem.”
Na falta de embalagens e outras sucatas, que as pessoas deixam de descartar por temer precisar delas amanhã, sobram no caminho do catador os livros. Peças que a Nova Ordem pretende exterminar.
Angelino será um dos personagens que ajudará o autor a conduzir a novela. Assim como o capitão Ariovaldo (Olavo de Carvalho?), cuja descoberta, um chip instalado no cérebro das pessoas que as coloca sob controle da Ordem, o projeta internacionalmente.
No Brasil da Nova Ordem, o mercado interno não precisa, para existir, de mais de 30 milhões de famílias. O excesso populacional terá de ser eliminado.
Autodeclarado pessimista por natureza, Bernardo Kucinski introduz, porém, em sua novela, uma teoria de autodestruição para a vilania. O sistema, ao pegar tão pesado com a humanidade, acaba por destruir um dos combustíveis de sua existência. As pessoas deixam de sonhar. Sem sonho, compromete-se a existência, inclusive a da Nova Ordem.
A inspiração em Audous Huxley é admitida pelo autor logo na apresentação do livro, com a citação de Admirável Mundo Novo: “O amor à servidão não pode ser instituído senão através de uma profunda reconstrução da mente e do corpo do ser humano”. George Orwell também é referenciado por seu 1984: “As massas nunca se revoltam por iniciativa própria e nunca apenas porque são oprimidas; enquanto não lhes for permitido comparar, nem sequer se darão conta de que são oprimidas”.
Ficção sem disfarces
A passagem de Bernardo Kucinski do jornalismo para a ficção não foi uma decisão, foi acontecendo, segundo ele próprio. Quando deixou a assessoria especial da Presidência da República no primeiro mandato de Lula, quis voltar às aula na EECA/USP, mas foi aposentado compulsoriamente.
Passou a escrever uma série de contos e crônicas, mais de uma centena, e alguns evoluíram para obras como o romance policial Alice e o celebrado K. – Relatos de Uma Busca. Embora tenha sido lançado primeiro, em 2011 (primeiro pela editora Expressão Popular, depois pela Companhia das Letras), K. foi concebido depois, baseado no processo de busca de pai – e dele mesmo – pelo corpo da irmã Ana Rosa Kucinski, sequestrada e morta pela ditadura em abril de 1974. Em Alice, ambienta a ocorrência de um crime e assassinato na Faculdade de Química da USP, onde estudara, em meio a um cenário de deplorável de roubo de produção científica.
Para quem ainda não compreendeu o que está acontecendo com o Brasil, o novo livro de ficção de Bernardo Kucinski desenha. Narrada em dois tempos – o ambiente de um país dominado pela canalhice e as explicações dessa canalhice em notas de rodapé – a novela A Nova Ordem (Editora Alameda, 180 páginas) é mais do que um enredo baseado em fatos reais, como os outros cinco lançados pelo ex-jornalista (se é que é possível deixar de sê-lo) e professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
É uma caricatura daquilo que a hipocrisia nacional – da imprensa, das instituições da República e daquela parcela da população que punha a camisa da CBF e batia panelas – transformou em governo Jair Bolsonaro.
B. Kucinski, assinatura adotada pelo jovem ficcionista de 82 anos, não achou difícil escrever A Nova Ordem. Trabalhoso foi garimpar o volumoso aparato de proteção social, ambiental, trabalhista e econômica que projetou o Brasil que viria depois da Constituição de 1988. E organizá-los nos “editos” desmanteladores que conduzem a Nova Ordem.
Os“editos” têm na novela função semelhante à dos Atos Institucionais dos governos da ditadura civil-militar (1964-1985): desmontar as leis constituídas sob a vigência democrática e legalizar a barbárie decretada pelos ditadores. Assim o Brasil de bem-estar social desenhado pela Constituição de 1988 dá lugar a uma república sem projeto de nação, movido a uma agroindústria que não mais precisa da mão de obra dos trabalhadores para tocar a economia e tampouco precisa de povo. Exceto um povo desinformado, cego, submisso e servil.
“Me diverti escrevendo. É uma história engraçada. Trágica, mas engraçada. Mas trágica”, definiu Kucinski, durante o debate de lançamento de A Nova Ordem no auditório do Centro Universitário Maria Antônia, da USP, no último dia 18. Ele admite ter adicionado à sua pesquisa alguns textos, contos e crônicas anteriores, para compor o enredo da novela. E confessa perplexidade ao deparar, em sua pesquisa, com o potencial do Estado brasileiro pós-Constituição de conduzir o país para um avanço civilizatório. “É a sexta obra de ficção. Alguns textos foram aproveitados. É como uma sinfonia, em que trechos vão sendo compostos e depois se encaixam numa sequência lógica”, conta o autor.
O jornalista, crítico de arte, pesquisador, ilustrador e autor de todas as capas de livros de Bernardo Kucinski, Enio Squeff, exemplifica: “A Sinfonia nº 9 de Beethoven foi apresentada em 1824, mas começou a ser composta, em partes, seis anos antes”.
“Não foi trabalhoso”, observa o autor. “Os decretos destrutivos do Estado brasileiro eram previsíveis. Estão na lógica do governo Bolsonaro. E começaram antes, com o governo de Michel Temer, responsável pela ‘reforma trabalhista e pela emenda à Constituição que instituiu o congelamento de gastos públicos por até 20 anos.”
Para ele, desde o golpe que depôs Dilma Rousseff em 2016 ficou evidente a chegada ao poder de uma “lógica de desmantelamento” do Estado brasileiro.
O “Edito 2/2019”, por exemplo, cria a Econec – Economia Neoliberal Coercitiva – e determina: a extinção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e dos ministérios do Planejamento, de Minas e Energia e da Indústria e Comércio. Privatiza empresas estatais, autarquias e bancos; leiloa reservas minerais e petrolíferas; zera alíquotas de importação; extingue a Zona Franca de Manaus, a Sudam e a Sudene; reduz a 10% o Imposto de Renda e elimina a isenção aos detentores de renda baixa; extingue o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), estabelece a idade mínima de 80 anos para aposentadoria e substitui o regime único por contas individuais de capitalização; extingue a estabilidade do servidor público, o Bolsa Família, os benefícios sociais ao idoso pobre e ao deficiente físico, o Auxílio Doença e o Seguro Defeso; extingue também o Sistema S (Senai, Senac, Sebrae e Sesc), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e as agências reguladoras.
É uma caricatura daquilo que a hipocrisia nacional – da imprensa, das instituições da República e daquela parcela da população que punha a camisa da CBF e batia panelas – transformou em governo Jair Bolsonaro.
B. Kucinski, assinatura adotada pelo jovem ficcionista de 82 anos, não achou difícil escrever A Nova Ordem. Trabalhoso foi garimpar o volumoso aparato de proteção social, ambiental, trabalhista e econômica que projetou o Brasil que viria depois da Constituição de 1988. E organizá-los nos “editos” desmanteladores que conduzem a Nova Ordem.
Os“editos” têm na novela função semelhante à dos Atos Institucionais dos governos da ditadura civil-militar (1964-1985): desmontar as leis constituídas sob a vigência democrática e legalizar a barbárie decretada pelos ditadores. Assim o Brasil de bem-estar social desenhado pela Constituição de 1988 dá lugar a uma república sem projeto de nação, movido a uma agroindústria que não mais precisa da mão de obra dos trabalhadores para tocar a economia e tampouco precisa de povo. Exceto um povo desinformado, cego, submisso e servil.
“Me diverti escrevendo. É uma história engraçada. Trágica, mas engraçada. Mas trágica”, definiu Kucinski, durante o debate de lançamento de A Nova Ordem no auditório do Centro Universitário Maria Antônia, da USP, no último dia 18. Ele admite ter adicionado à sua pesquisa alguns textos, contos e crônicas anteriores, para compor o enredo da novela. E confessa perplexidade ao deparar, em sua pesquisa, com o potencial do Estado brasileiro pós-Constituição de conduzir o país para um avanço civilizatório. “É a sexta obra de ficção. Alguns textos foram aproveitados. É como uma sinfonia, em que trechos vão sendo compostos e depois se encaixam numa sequência lógica”, conta o autor.
O jornalista, crítico de arte, pesquisador, ilustrador e autor de todas as capas de livros de Bernardo Kucinski, Enio Squeff, exemplifica: “A Sinfonia nº 9 de Beethoven foi apresentada em 1824, mas começou a ser composta, em partes, seis anos antes”.
“Não foi trabalhoso”, observa o autor. “Os decretos destrutivos do Estado brasileiro eram previsíveis. Estão na lógica do governo Bolsonaro. E começaram antes, com o governo de Michel Temer, responsável pela ‘reforma trabalhista e pela emenda à Constituição que instituiu o congelamento de gastos públicos por até 20 anos.”
Para ele, desde o golpe que depôs Dilma Rousseff em 2016 ficou evidente a chegada ao poder de uma “lógica de desmantelamento” do Estado brasileiro.
O “Edito 2/2019”, por exemplo, cria a Econec – Economia Neoliberal Coercitiva – e determina: a extinção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e dos ministérios do Planejamento, de Minas e Energia e da Indústria e Comércio. Privatiza empresas estatais, autarquias e bancos; leiloa reservas minerais e petrolíferas; zera alíquotas de importação; extingue a Zona Franca de Manaus, a Sudam e a Sudene; reduz a 10% o Imposto de Renda e elimina a isenção aos detentores de renda baixa; extingue o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), estabelece a idade mínima de 80 anos para aposentadoria e substitui o regime único por contas individuais de capitalização; extingue a estabilidade do servidor público, o Bolsa Família, os benefícios sociais ao idoso pobre e ao deficiente físico, o Auxílio Doença e o Seguro Defeso; extingue também o Sistema S (Senai, Senac, Sebrae e Sesc), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e as agências reguladoras.
Economia sem embalagem
Além de expor a perseguição implacável a qualquer possibilidade de senso crítico – e nada mais parelho a isso do que o ataque do atual governo à pesquisa, à ciência e às universidades públicas – a novela transita pelas contradições econômicas da Nova Ordem. Kucinski foi um dos precursores do jornalismo econômico. Da técnica de traduzir para os leitores leigos os efeitos da economia na vida do país e dos cidadãos. Até que os cadernos de economia dos jornais passassem a ser dominados pela linguagem do mercado, e o assunto ficasse fora do alcance dos mortais.
Um dos personagens da A Nova Ordem é Angelino, engenheiro vítima da falência da indústria naval, que se tornou catador de materiais recicláveis. Os que restaram. Por meio dele, o autor dá uma aula indireta do que virou a economia de um país desindustrializado.
“Pelo lixo também dá para contar a história dessa maldita Nova Ordem. O sumiço repentino do papelão. Primeiro, ele pensou que era por causa dos retirantes que chegavam aos magotes depois que o governo decretou o fim do minifúndio. Esse povo montava barracos com papelão e embalagem de leite. Custou ele perceber que não era só isso. É que, com a Nova Ordem, foram fechando as metalúrgicas e, sem produção de fogão, geladeira, ventilador, enfim, essas coisas todas, não precisa de embalagem.”
Na falta de embalagens e outras sucatas, que as pessoas deixam de descartar por temer precisar delas amanhã, sobram no caminho do catador os livros. Peças que a Nova Ordem pretende exterminar.
Angelino será um dos personagens que ajudará o autor a conduzir a novela. Assim como o capitão Ariovaldo (Olavo de Carvalho?), cuja descoberta, um chip instalado no cérebro das pessoas que as coloca sob controle da Ordem, o projeta internacionalmente.
No Brasil da Nova Ordem, o mercado interno não precisa, para existir, de mais de 30 milhões de famílias. O excesso populacional terá de ser eliminado.
Autodeclarado pessimista por natureza, Bernardo Kucinski introduz, porém, em sua novela, uma teoria de autodestruição para a vilania. O sistema, ao pegar tão pesado com a humanidade, acaba por destruir um dos combustíveis de sua existência. As pessoas deixam de sonhar. Sem sonho, compromete-se a existência, inclusive a da Nova Ordem.
A inspiração em Audous Huxley é admitida pelo autor logo na apresentação do livro, com a citação de Admirável Mundo Novo: “O amor à servidão não pode ser instituído senão através de uma profunda reconstrução da mente e do corpo do ser humano”. George Orwell também é referenciado por seu 1984: “As massas nunca se revoltam por iniciativa própria e nunca apenas porque são oprimidas; enquanto não lhes for permitido comparar, nem sequer se darão conta de que são oprimidas”.
Ficção sem disfarces
A passagem de Bernardo Kucinski do jornalismo para a ficção não foi uma decisão, foi acontecendo, segundo ele próprio. Quando deixou a assessoria especial da Presidência da República no primeiro mandato de Lula, quis voltar às aula na EECA/USP, mas foi aposentado compulsoriamente.
Passou a escrever uma série de contos e crônicas, mais de uma centena, e alguns evoluíram para obras como o romance policial Alice e o celebrado K. – Relatos de Uma Busca. Embora tenha sido lançado primeiro, em 2011 (primeiro pela editora Expressão Popular, depois pela Companhia das Letras), K. foi concebido depois, baseado no processo de busca de pai – e dele mesmo – pelo corpo da irmã Ana Rosa Kucinski, sequestrada e morta pela ditadura em abril de 1974. Em Alice, ambienta a ocorrência de um crime e assassinato na Faculdade de Química da USP, onde estudara, em meio a um cenário de deplorável de roubo de produção científica.
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