Por Cristiano Paixão, na revista CartaCapital:
Foi noticiado, com grande destaque, o fato de que os presidentes dos três poderes da República decidiram celebrar um “pacto”. No momento em que este artigo foi concluído, o texto do “pacto” não havia sido divulgado. Temos apenas afirmações genéricas e vagas, que falam de um certo “pacto federativo”, “pelas reformas” e “pelo crescimento econômico”.
A participação do presidente do Supremo Tribunal Federal na construção e celebração desse “pacto” gerou várias críticas, que eram previsíveis e quase óbvias. O judiciário é responsável pela apreciação da constitucionalidade de normas, o que significa afirmar que eventuais dispositivos constantes do “pacto” (como, por exemplo, partes da reforma da previdência) provavelmente serão objeto de ações judiciais após a aprovação das emendas constitucionais que veicularem as reformas. O controle prévio de constitucionalidade só é admissível, no direito brasileiro, em circunstâncias muito especiais. A aferição da pertinência da norma infraconstitucional com a Constituição se dá, em regra, ex post facto.
Caso seja subscrito o “pacto”, haverá uma situação paradoxal: um dos signatários do documento será o presidente do tribunal no qual será desafiada a constitucionalidade de normas que tenham sido aprovadas com o beneplácito (e estímulo) do mesmo documento.
Essa, contudo, não é a única objeção que se deve colocar em relação à iniciativa. Há outra, que tem origem histórica e revela um elemento particularmente perturbador: o tal “pacto” é um ato contrário à Constituição da República.
As constituições modernas trazem uma inovação importante. Na grande maioria dos casos – e na totalidade, quando se trata de democracias –, o titular do poder constituinte é o povo. Isso significa afirmar que, a partir da Modernidade, o povo é autor e destinatário dos textos constitucionais. É evidente que essa autoria se dá a partir de várias mediações: órgãos representativos, eleições, grupos e partidos políticos são integrantes de um processo complexo que envolve a escolha de integrantes de um corpo político destinado a redigir normas que vincularão a comunidade no futuro.
Essas mediações, contudo, têm um elemento comum: o titular do poder que se exerce é o povo. Assim conseguimos compreender a frase recorrente nas constituições modernas, que está na primeira delas, a dos Estados Unidos, promulgada em 1787: “Nós, o povo…”. A Constituição brasileira em vigor se inicia com uma fórmula similar: “Nós, representantes do povo brasileiro…”.
Entre as várias consequências provocadas pela titularidade do poder constituinte pelo povo, uma chama a atenção: ele não pode ser apropriado ou aprisionado pelos interesses de um grupo, uma parcela da população, uma elite política ou econômica.
As constituições modernas têm a marca da inclusão e da universalização de direitos. Elas são incompatíveis com pactos, cartas ou compromissos.
No chamado Antigo Regime, as coisas ocorriam de modo diferente. Numa sociedade que tinha a desigualdade como característica, que concentrava poder e riqueza num estrato que se colocava como superior, não seria viável um povo politicamente ativo. Era o tempo, então, das “cartas”, como a Magna Carta inglesa de 1215, documento de natureza contratual celebrado entre rei e barões para impedir a eclosão de uma guerra civil (entre setores divergentes da camada superior da sociedade). No período medieval e pré-moderno, o direito possuía essa dimensão contratual; ele era composto por uma sucessão interminável de acordos e compromissos de fidelidade, proteção e lealdade.
E essa mesma dimensão contratual reaparece nas constituições europeias do início do século XIX, momento de restauração, de reação contra a experiência francesa republicana e revolucionária. Assim é que, na própria França, a Constituição de 1814, outorgada pelo Rei Luís XVIII, da dinastia dos Bourbon, se intitulava “Carta Constitucional”. Ela não invocava o povo no preâmbulo, mas a “providência divina”. No desenho da Carta Constitucional, o rei exercia diretamente o poder executivo, participava do legislativo e dele emanava o poder judiciário. Havia uma câmara alta composta apenas por nobres (indicados pelo rei). Com esse arranjo, estava restabelecida a ordem anterior à Revolução Francesa, baseada na desigualdade, na “qualidade” da nobreza, no protagonismo da elite política e econômica.
Apenas naquela estrutura autoritária, elitista e arcaica havia lugar para “pactos” celebrados por executivo, legislativo e judiciário. Isso só é possível quando a política e o governo são passíveis de apropriação e privatização, quando se tornam dependentes da vontade dos ocupantes das cúpulas dos poderes constituídos.
A Constituição da República brasileira é democrática, inclusiva e universalizante. Ela foi redigida entre 1987 e 1988, mas sua gênese é anterior, e está ligada à resistência à ditadura militar, à luta pela redemocratização, ao protagonismo da sociedade civil. Os poderes do Estado são constituídos e limitados pela Constituição. E ela não autoriza os ocupantes ou gestores dos poderes a celebrar “pactos” que comprometam a estrutura prevista na Constituição e as atribuições dos poderes constituídos, sob o risco de dissolução e fragmentação da própria arquitetura constitucional.
Há vários tempos que se sobrepõem na experiência do mundo em que vivemos. O tempo instantâneo das redes sociais, o tempo curto da política, o tempo de duração média dos ciclos econômicos; há também o tempo da constituição, que em certas situações não deve coincidir com os demais tempos. Em períodos de instabilidade institucional, de ameaças à democracia, de crescimento dos discursos de ódio, é fundamental que a constituição opere como uma barreira, um obstáculo contra iniciativas desdemocratizantes.
Numa ordem constitucional democrática, não há lugar para “pactos” subscritos por gestores efêmeros, especialmente quando se trata de magistrados. Numa democracia, o Poder Judiciário é um local de afirmação de direitos, particularmente em tempos de tentações autoritárias e opressivas. Assim, espera-se que, num momento grave como o atual, o Supremo Tribunal Federal atue nos limites de suas atribuições constitucionais e reafirme o primado do Estado do Direito. Para tanto, terá que rejeitar eventual “pacto” que venha ameaçar a vigência da Constituição da República.
Foi noticiado, com grande destaque, o fato de que os presidentes dos três poderes da República decidiram celebrar um “pacto”. No momento em que este artigo foi concluído, o texto do “pacto” não havia sido divulgado. Temos apenas afirmações genéricas e vagas, que falam de um certo “pacto federativo”, “pelas reformas” e “pelo crescimento econômico”.
A participação do presidente do Supremo Tribunal Federal na construção e celebração desse “pacto” gerou várias críticas, que eram previsíveis e quase óbvias. O judiciário é responsável pela apreciação da constitucionalidade de normas, o que significa afirmar que eventuais dispositivos constantes do “pacto” (como, por exemplo, partes da reforma da previdência) provavelmente serão objeto de ações judiciais após a aprovação das emendas constitucionais que veicularem as reformas. O controle prévio de constitucionalidade só é admissível, no direito brasileiro, em circunstâncias muito especiais. A aferição da pertinência da norma infraconstitucional com a Constituição se dá, em regra, ex post facto.
Caso seja subscrito o “pacto”, haverá uma situação paradoxal: um dos signatários do documento será o presidente do tribunal no qual será desafiada a constitucionalidade de normas que tenham sido aprovadas com o beneplácito (e estímulo) do mesmo documento.
Essa, contudo, não é a única objeção que se deve colocar em relação à iniciativa. Há outra, que tem origem histórica e revela um elemento particularmente perturbador: o tal “pacto” é um ato contrário à Constituição da República.
As constituições modernas trazem uma inovação importante. Na grande maioria dos casos – e na totalidade, quando se trata de democracias –, o titular do poder constituinte é o povo. Isso significa afirmar que, a partir da Modernidade, o povo é autor e destinatário dos textos constitucionais. É evidente que essa autoria se dá a partir de várias mediações: órgãos representativos, eleições, grupos e partidos políticos são integrantes de um processo complexo que envolve a escolha de integrantes de um corpo político destinado a redigir normas que vincularão a comunidade no futuro.
Essas mediações, contudo, têm um elemento comum: o titular do poder que se exerce é o povo. Assim conseguimos compreender a frase recorrente nas constituições modernas, que está na primeira delas, a dos Estados Unidos, promulgada em 1787: “Nós, o povo…”. A Constituição brasileira em vigor se inicia com uma fórmula similar: “Nós, representantes do povo brasileiro…”.
Entre as várias consequências provocadas pela titularidade do poder constituinte pelo povo, uma chama a atenção: ele não pode ser apropriado ou aprisionado pelos interesses de um grupo, uma parcela da população, uma elite política ou econômica.
As constituições modernas têm a marca da inclusão e da universalização de direitos. Elas são incompatíveis com pactos, cartas ou compromissos.
No chamado Antigo Regime, as coisas ocorriam de modo diferente. Numa sociedade que tinha a desigualdade como característica, que concentrava poder e riqueza num estrato que se colocava como superior, não seria viável um povo politicamente ativo. Era o tempo, então, das “cartas”, como a Magna Carta inglesa de 1215, documento de natureza contratual celebrado entre rei e barões para impedir a eclosão de uma guerra civil (entre setores divergentes da camada superior da sociedade). No período medieval e pré-moderno, o direito possuía essa dimensão contratual; ele era composto por uma sucessão interminável de acordos e compromissos de fidelidade, proteção e lealdade.
E essa mesma dimensão contratual reaparece nas constituições europeias do início do século XIX, momento de restauração, de reação contra a experiência francesa republicana e revolucionária. Assim é que, na própria França, a Constituição de 1814, outorgada pelo Rei Luís XVIII, da dinastia dos Bourbon, se intitulava “Carta Constitucional”. Ela não invocava o povo no preâmbulo, mas a “providência divina”. No desenho da Carta Constitucional, o rei exercia diretamente o poder executivo, participava do legislativo e dele emanava o poder judiciário. Havia uma câmara alta composta apenas por nobres (indicados pelo rei). Com esse arranjo, estava restabelecida a ordem anterior à Revolução Francesa, baseada na desigualdade, na “qualidade” da nobreza, no protagonismo da elite política e econômica.
Apenas naquela estrutura autoritária, elitista e arcaica havia lugar para “pactos” celebrados por executivo, legislativo e judiciário. Isso só é possível quando a política e o governo são passíveis de apropriação e privatização, quando se tornam dependentes da vontade dos ocupantes das cúpulas dos poderes constituídos.
A Constituição da República brasileira é democrática, inclusiva e universalizante. Ela foi redigida entre 1987 e 1988, mas sua gênese é anterior, e está ligada à resistência à ditadura militar, à luta pela redemocratização, ao protagonismo da sociedade civil. Os poderes do Estado são constituídos e limitados pela Constituição. E ela não autoriza os ocupantes ou gestores dos poderes a celebrar “pactos” que comprometam a estrutura prevista na Constituição e as atribuições dos poderes constituídos, sob o risco de dissolução e fragmentação da própria arquitetura constitucional.
Há vários tempos que se sobrepõem na experiência do mundo em que vivemos. O tempo instantâneo das redes sociais, o tempo curto da política, o tempo de duração média dos ciclos econômicos; há também o tempo da constituição, que em certas situações não deve coincidir com os demais tempos. Em períodos de instabilidade institucional, de ameaças à democracia, de crescimento dos discursos de ódio, é fundamental que a constituição opere como uma barreira, um obstáculo contra iniciativas desdemocratizantes.
Numa ordem constitucional democrática, não há lugar para “pactos” subscritos por gestores efêmeros, especialmente quando se trata de magistrados. Numa democracia, o Poder Judiciário é um local de afirmação de direitos, particularmente em tempos de tentações autoritárias e opressivas. Assim, espera-se que, num momento grave como o atual, o Supremo Tribunal Federal atue nos limites de suas atribuições constitucionais e reafirme o primado do Estado do Direito. Para tanto, terá que rejeitar eventual “pacto” que venha ameaçar a vigência da Constituição da República.
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