Por Leonardo Wexell Severo, de Santa Cruz, Bolívia:
A presidenta do Senado da Bolívia, a jovem Adriana Salvatierra, de 29 anos, afirmou que mais do que uma disputa eleitoral, as eleições do próximo dia 20 de outubro em seu país serão “um marco”, “refletindo as tensões vividas nos processos da América Latina entre o aprofundamento da democracia política e econômica ou as limitações que pode deixar a administração de um novo modelo”. Em entrevista exclusiva dada à nossa reportagem em Santa Cruz de la Sierra, a líder boliviana lembrou que o “período neoliberal, de 1985 a 2005, largou o Produto Interno Bruto com US$ 9,5 bilhões, enquanto este ano, sob o comando do presidente Evo Morales, será encerrado com um PIB de US$ 43 bilhões.
A presidenta do Senado da Bolívia, a jovem Adriana Salvatierra, de 29 anos, afirmou que mais do que uma disputa eleitoral, as eleições do próximo dia 20 de outubro em seu país serão “um marco”, “refletindo as tensões vividas nos processos da América Latina entre o aprofundamento da democracia política e econômica ou as limitações que pode deixar a administração de um novo modelo”. Em entrevista exclusiva dada à nossa reportagem em Santa Cruz de la Sierra, a líder boliviana lembrou que o “período neoliberal, de 1985 a 2005, largou o Produto Interno Bruto com US$ 9,5 bilhões, enquanto este ano, sob o comando do presidente Evo Morales, será encerrado com um PIB de US$ 43 bilhões.
Salvatierra frisou que isso só foi possível pelo “resgate da soberania nacional”, que “passou pela recuperação do controle dos recursos naturais estratégicos, pela recuperação das empresas do Estado que desde 1985 haviam sido privatizadas e capitalizadas”. Logo depois, progressivamente, assinalou, “com os excedentes gerados a partir de três grandes áreas, a grande indústria, a mineração e os hidrocarbonetos, dinamizamos a economia, o processo de substituição de importações e fortalecemos o mercado interno”. São esses números, enfatizou, que tornam possível “que sigamos sendo pelo sexto ano consecutivo o país que mais cresce na América Latina, com uma média de 4,5% do PIB”. Boa leitura!
Na sua avaliação, qual a importância da juventude para a continuidade e o aprofundamento deste processo?
A juventude terá uma importância central, na medida em que seja uma geração que possa continuar apostando nos grandes pilares deste processo de transformação, deste processo de mudanças. Eu vejo que existem jovens que têm um pensamento bastante conservador, que naturalizaram as grandes transformações que se vivem no país. São jovens para quem o comum da sua vida é o acesso à educação, o acesso aos serviços públicos básicos, à moradia, que os veem como direitos garantidos, mas que provavelmente não tiveram contato com a luta que houve por detrás destas conquistas e que hoje são desafiados por outras coisas, por demandas mais vinculadas ao urbano, ao meio ambiente e com outras sensibilidades democráticas. Isso só é possível porque têm garantido neste momento elementos chaves que os nossos pais, os nossos avós não tiveram, principalmente o acesso à educação, à democratização da riqueza, às condições que tornam a vida digna. Então, se falamos de uma juventude que tem arraigada em si mesma direitos conquistados, princípios que foram centrais em nossa revolução democrática e cultural, falamos de uma juventude que pode garantir a continuidade e o aprofundamento deste processo. Porém existem correntes internacionais que não vão neste sentido e pelas quais os jovens estão sendo permanentemente influenciados, e das quais não sei se são vítimas ou sujeitos de um cerco ideológico.
Há uma intensa luta política e ideológica por detrás destas diferentes visões de mundo. Em relação a este ponto de vista, crês que o processo poderia ter feito ou possa fazer mais, particularmente no que diz respeito ao papel dos meios de comunicação?
Acredito que cometemos erros, inclusive do Estado, no processo educativo e na interpretação dos nossos próprios resultados. O professor argentino Ricardo Foster diz que temos nos equivocado no momento de interpretar o impacto das políticas públicas e o impacto do processo de transformação. Por exemplo, ele dizia: nós, em nossos governos, seguimos avaliando o ser humano a partir da capacidade de consumo e não a partir dos direitos conquistados. Avaliamos se podes comprar um televisor, quanto tens na tua conta bancária, se tens ou não acesso à educação desde a perspectiva de um serviço e não de um direito. Ao haver dado um enfoque mais administrativo às conquistas sociais temos esvaziado o conteúdo ideológico existente por trás disso.
Um indígena não tinha facilmente acesso à educação porque era uma escola com parede de barro e teto de palha, ou porque ficava a três quilômetros, ou porque seus professores não necessariamente tinham um grau educativo que lhes permitisse melhorar seu nível de instrução.
Todas essas melhoras foram avaliadas desde a capacidade de consumo e não desde os direitos conquistados e isso desmobiliza. Desmobiliza porque naturalizava as grandes transformações. Então ficou normal para o jovem, sempre foi assim.
Na verdade, vemos milhares de jovens serem os primeiros a concluírem o ciclo básico de estudos na sua família, não no seu pequeno núcleo, mãe e pai, mas até atrás, historicamente. Quantos jovens neste governo são os primeiros profissionais, os primeiros a conquistar um diploma universitário, o mais distante que as gerações anteriores avançaram? E, claro, naturalizando, não se mede a responsabilidade por detrás de tornar-se o orgulho familiar.
Não é somente uma batalha que tem que ser dada com os meios de comunicação, mas também desde o sistema educativo. Quando o sistema educativo ocidentaliza os parâmetros a partir dos quais se avalia o acesso à educação, não lê a si mesmo, sua própria história para encontrar as respostas, a interpretação adequada ao contexto atual que estamos vivendo. Creio que há uma mescla de interpretações em relação aos meios de comunicação, em que na realidade o equilíbrio não chegou, como no caso argentino, onde uma lei tentou estabelecer critérios. Na Bolívia, neste momento, a situação está bem para os meios de comunicação, como está bem para os bancos, para o empresariado privado, para a senhora que tem sua tenda na esquina ou para o sindicalista, vai bem para todos. Porém, por trás disso há um processo de naturalização e temos de combater não somente o aspecto comunicacional, como do ponto de vista educativo. Qual é o sistema de ideias que se converte no marco interpretativo dos direitos conquistados até o momento?
Estava lendo um conto do começo do século passado que narra o enorme preconceito em relação à participação feminina dentro das minas, e isso numa economia historicamente mineradora como a boliviana significava condenar as mulheres a ser apêndice, a isolar, a anular metade da população. Como avalias as conquistas obtidas de 2006 até aqui?
As mulheres tiveram participação destacada no processo boliviano: Juana Azurduy, nas guerrilhas pela independência, Ana Bárbara, nos movimentos independentistas aqui em Santa Cruz, desde o movimento indígena também, Bartolina Sisa, lutando para eliminar a exploração que existia no sistema colonial. Acontece que quando é assinada a ata de independência não havia uma única mulher, um só afrodescendente do exército dos pardos livres de Ignacio Warnes ou um só indígena. Então nos damos conta de que quando se consolida a independência e se começa a construir a República da Bolívia, todos esses setores que participaram do processo de libertação ficam excluídos. O mesmo aconteceu com as mulheres. Na imagem que registra o ato de independência não há uma só mulher, indígena, camponês ou afrodescendente. São os mesmos trajes e gravatas, ao lado do poder da igreja, obviamente.
A primeira vez que as mulheres votaram foi em 1949, a primeira vez que fizemos exercício do voto. Foram muitas décadas em que as mulheres ficaram à margem, da mesma forma que os camponeses e indígenas. Eram os tempos do voto qualificado, dos que tinham propriedades, dos que sabiam ler e escrever, dos que tinham certa relevância na sociedade, deixando a grande maioria excluída.
Com a revolução do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), em 1952, por decreto supremo se estabelece o voto universal, porém a mulher tinha um século de atraso na participação, mas não só, na construção do poder, na conquista do poder político, na reprodução do poder político. A isso se soma que somente em 1999 se falou de dar uma cota de participação à mulher que tenha minimamente 30%, então se procuravam mulheres simplesmente para cumprir formalmente os espaços de representação.
Então na década de 90 as mulheres bolivianas já tinham garantido 30% de participação no parlamento?
Teoricamente. Houve até um escândalo na época de um candidato travesti. Isso porque quando medes desde a perspectiva histórica vê que a mulher esteve relegada em tudo o que diz respeito à disputa do poder político. Em 2009, com a nova Constituição Política do Estado se estabelece na nossa norma principal e fundamental do país, que a equidade de gênero é um princípio. E a esse princípio constitucional se fizeram ajustes, produto da mobilização das mulheres, mas também da vontade política. Porque Evo Morales, desde que era dirigente sindical tinha esta compreensão e este compromisso.
É reconhecido o compromisso histórico do presidente com a luta das mulheres.
Desde muito cedo Evo estimulava e impulsionava para que a lista do Movimento Ao Socialismo (MAS), especialmente no trópico de Cochabamba, fosse paritária entre homens e mulheres. Ou seja, há uma construção por detrás disso. Foram constitucionalizados os princípios de paridade e equidade de gênero e no período constitucional seguinte, somente em 2014, conseguimos uma paridade efetiva: 51% da Assembleia são mulheres, entre deputadas e senadoras. A partir de então começaram aflorar outros tipos de preocupações.
A mulher disputa metade da representação política e começa a ser vítima do assédio e da violência. Há casos gravíssimos em que se chegou inclusive a assassinar mulheres vereadoras, a incendiar a casa de prefeitas aqui em Santa Cruz. São práticas violentas que buscam amedrontá-las no serviço da representação. Aí se protege a mulher com a lei contra o assédio e a violência política.
Como este avanço na representação política tem se traduzido em melhoras efetivas na situação da mulher em geral?
Em 2015 tínhamos 15,5% dos títulos agrários nas mãos de mulheres, agora são 46% e isso é super importante porque com isso também se modifica a estrutura de propriedade, pelo vínculo que tem a mulher com a terra, com a produção. Se prioriza o subsídio às mulheres que sejam mães, todas ganham. O Estado dá atenção à mulher. Há o Bônus Juana Azurduy, os planos de moradia especial para as mães solteiras.
Como funciona o bônus Juana Azurduy?
Há um montante econômico que é distribuído durante o acompanhamento do pré-natal, possibilitando que as mulheres possam comprar vitaminas e alimentos, melhorando a qualidade da gravidez e permitindo ao Estado um controle periódico. O que antes era um privilégio das mulheres que tinham um trabalho formal ou que eram esposas, hoje é algo que beneficia a todas. Isso também é uma conquista.
Começamos a discutir a partir do movimento feminino como enfrentar o problema da desigualdade salarial entre homens e mulheres, trabalhar a questão da corresponsabilidade da casa, e como o Estado possa contribuir para que realmente a mulher seja independente e possa construir o seu próprio destino.
Esta é uma das principais preocupações que têm o presidente Evo e que temos avançado muito. É algo produto da luta das mulheres, óbvio, mas também produto da vontade política, porque quando olhas para o mundo, apenas dois países têm resultados similares ao nosso: Cuba, a partir das eleições legislativas recentes, e Ruanda. Porém se olhas Paraguai, Brasil, Argentina, Chile, não há representação paritária de mulheres. E pior ainda, os organismos internacionais falam como se tivesse que haver uma espécie de movimento ascendente da história. Assim, em cada apresentação das Nações Unidas dizem: país xis, não vou citar nenhum em especial, antes tinha 45 parlamentares e hoje tem 53. Que orgulho. Expõem como se fosse um processo ascendente, ao que todos transitamos naturalmente, sem avaliar que há uma profunda disputa ideológica. E processos que retornam para o conservadorismo, como o Brasil, demonstram que o que temos conquistado nestes 13 anos de governo não pode ser perdido, que um patrimônio das mulheres bolivianas como a paridade está em jogo, que a luta deve estar acompanhada de um projeto político de transformação. Se Bolívia e Cuba alcançamos a paridade não é somente pela luta feminina, mas por uma revolução que entendeu que as mulheres, que metade de cada povo deve ter direito à metade da sua representação.
Como vês a importância da ampliação do investimento na educação pública – que o governo Evo vem realizando ao longo dos anos – e a relação da injeção de recursos na formação técnico-científica para o processo de industrialização e a libertação nacional?
Veja, a Bolívia, depois de Cuba, é o que mais investe na América Latina em educação: 8% do nosso Produto Interno Bruto. Antes a educação era considerada um serviço ao qual quem pagava tinha acesso e quem não pagava era privado ou adquiria em condições sumamente precárias. Portanto o primeiro que necessitamos fazer foi que num país onde 10% da população era analfabeta todos soubessem ler e escrever. Não podíamos falar de democracia em um país em que 10% da população não tinha acesso a um direito como esse. Para nós o conceito de democracia é algo muito mais profundo, não é somente ir às urnas a cada período de cinco anos. É um pouco o que dizia Samir Amim sobre o processo de democratização da riqueza, consiste em construir condições de igualdade para todos. Porque não podemos falar de democracia se alguns podem pagar o direito à saúde e outros têm que morrer nos corredores esperando serem atendidos. Não podemos falar de um país com centenas de milhares de analfabetos onde as crianças da área rural necessitavam caminhar horas para chegar à escola e provavelmente só tinham acesso à educação primária. Nossa tarefa principal nos primeiros anos de governo foi dar às crianças escolas em que elas e seus cadernos não ficassem ensopados quando chovesse, que ficassem próximas das suas comunidades, que seus professores tivessem um grau real de formação que lhes possibilitasse adquirir o mesmo nível de instrução de outras crianças. Hoje tens escolas no campo muito mais bonitas do que as privadas de quando eu era estudante; unidades educativas públicas muito maiores do que os colégios privados, e isso marca a melhoria na qualidade do acesso à educação. A segunda questão é o estágio da desnutrição infantil, em que tivemos avanços, mas ainda falta.
Em que pé está o combate à fome, especificamente?
Em um país onde 60% da população era pobre e 38% extremamente pobre conseguimos reduzir a pobreza moderada para 35% e a extrema para 15%. E precisamos falar de uma criança que vai à escola e está desnutrida. É necessário garantir aos professores um nível de instrução adequado. Hoje todos os professores têm acesso a um computador, são licenciados em pedagogia, há mais e melhores escolas e condições de ensino. Estas eram as questões objetivas e materiais que tivemos de melhorar.
E daqui para frente, quais são os novos desafios?
Os desafios deste novo período são distintos, porque entra em discussão o processo de industrialização do país, o papel que passará a jogar. E te colocas o desafio de implantar o bachalerado técnico-humanístico para que o jovem assim que conclua o curso tenha acesso a uma fonte de trabalho. Estamos progressivamente implementando este bacharelado com laboratórios, dotando de sete ou oito especialidades, dos equipamentos necessários para que os jovens tenham melhores condições de ensino.
Aonde seguimos tendo conflitos é no sistema educativo, que ainda não responde aos desafios da industrialização do país. Os jovens provavelmente sabem que estamos industrializando o lítio, que estamos industrializando o ferro em Mutún para obter o aço, que estamos industrializando o gás e que hoje temos derivados de gás, produtos da industrialização, com a Bolívia caminhando para converter-se em coração energético da América Latina.
Assim começa a ser um pouco desesperante que o sistema universitário ainda não invista todos os seus esforços para preparar os jovens que vão assumir a nova Bolívia industrializada, e isso preocupa. Mas estamos neste desafio também, é parte dos novos desafios.
Quando estive aqui em Santa Cruz em 2008 documentei a ação de uma elite fascista e seu profundo ódio “contra o índio”, alinhada abertamente com as propostas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, e que se mantém na oposição, manifestando sua completa aversão ao processo. Como se sustenta esse setor?
Acredito que todos foram beneficiados pelo crescimento econômico, porém ainda têm latente o medo de que imponhamos situações de privilégio de classe, de identidade regional, não gosto desta palavra racial, não creio que seja a palavra adequada. Acredito que as famílias que estiveram acostumadas a deter o poder têm ainda o medo de que outros possam se igualar a eles e que para isso afetem seus privilégios. No fundo não acredito que em 13 anos consigamos superar essas coisas enquanto sociedade. Sabemos que se avançou, mas são aspectos muito mais lentos. Nesse período, sim, foi como se colocássemos uma mordaça na boca daqueles que adjetivavam de forma muito simples, com o racismo, o regionalismo, o desprezo pelo pobre, porém faltou transformar a cabeça, faltou ainda mudar o sistema educativo e isso faz com que esse reacionarismo sobreviva no mais íntimo das pessoas. Isso subsiste ao ponto de quando se exacerbam posições no seio da sociedade, por estar tão à flor da pele, tão interiorizado, surgem na forma de um conflito regional. Isso demonstra que ainda há um caminho a ser percorrido, que ainda falta muito.
Do ponto de vista cultural o governo do MAS tem investido numa visão de mundo mais humanista, mais coletivista?
Sim, obviamente, o simples fato de que hoje uma criança numa escola pública esteja obrigada a compartilhar com outra de uma condição socioeconômica mais baixa faz parte deste processo educacional.
Qual o papel da industrialização para a consolidação da soberania nacional?
Primeiro é preciso compreender que lutar pela soberania passou por recuperar o controle dos recursos naturais estratégicos, recuperar as empresas do Estado que desde 1985 haviam sido privatizadas e capitalizadas. E também recuperar o papel do Estado na economia porque o período neoliberal implicou a redução da participação estatal nas diferentes áreas, por isso não brindava educação, saúde, serviços. Um período em que os trabalhadores estavam expostos às imposições do mercado, o que incidia na piora das condições de vida.
O período neoliberal, de 1985 a 2005, nos deixou com um Produto Interno Bruto de US$ 9,5 bilhões. Este ano estamos encerrando com US$ 43 bilhões, multiplicamos mais de quatro vezes o PIB.
No início foi preciso colocar a casa em ordem, recuperar a soberania, recuperar a participação estratégica do Estado. Depois, progressivamente, com os excedentes gerados a partir de três grandes áreas, a grande indústria, a mineração e os hidrocarbonetos, dinamizamos a economia, o processo de substituição de importações e fortalecemos o mercado interno.
Isso implicou também em fixarmos o tipo de câmbio. A moeda nacional em relação ao dólar está desde 2013 em 6,96 bolivianos. Tudo isso contribuiu para que sigamos sendo pelo sexto ano consecutivo o país que mais cresce na América Latina, com uma média de 4,5%, 4,6% do PIB.
Com a recuperação, começamos a industrialização de áreas estratégicas da economia como o setor de hidrocarbonetos, impulsionar a indústria do lítio, impulsionar a indústria do aço, impulsionar uma relação mais equilibrada com a agroindústria. E hoje em dia isso é possível porque a fábrica de ureia e amoníaco custou US$ 980 milhões. É possível porque tivemos um Produto Interno Bruto superior a US$ 40 bilhões em 2018, mas não teria sido possível em 2005, pois uma indústria desta magnitude teria comido 10% do PIB.
A industrialização é viável porque temos uma economia melhor, que cresce e que pode ampliar investimentos. Estamos agora em um debate a respeito das parcerias público-privadas, sobre o pêndulo que sempre existiu nos investimentos, entre maior participação e concentração do Estado na economia ou a liberação. A ideia são alianças com o setor privado sob a direção estratégica e a planificação do Estado e dessa forma exercer a soberania.
Fale um pouco sobre a redistribuição de riqueza possibilitada com a aplicação do décimo quarto salário, pago aos trabalhadores todas as vezes que a economia do país alcança um crescimento de 4,5% do PIB.
Temos a repartição de riquezas como um princípio e, naturalmente, existem problemas práticos para a sua implementação. Nossa economia ainda tem uma forte base informal, há pequenas empresas que enfrentam problemas para pagar o décimo quarto salário. Então temos como um princípio, mas que tem suas particularidades no momento de materializar-se como um direito efetivo para todos. Por isso, neste ano, tivemos que estabelecer como teto para o pagamento do décimo quarto salário os que recebem até 15 mil bolivianos mensais (US$ 1.915). Isso contribuiu para democratizar a riqueza, crescer e dinamizar o mercado interno, para fortalecer preferencialmente a indústria nacional.
Temos uma eleição no próximo dia 20 de outubro em que candidatos como Carlos Mesa escondem abertamente seu vínculo com um passado reacionário e sangrento e seus atuais compromissos com um projeto de dilapidação e desconstrução do que foi conquistado. O que fazer?
O primeiro é mostrar para o eleitor que o que está em jogo não é a administração do Estado tão somente. Votamos por modelos e se pode avançar ou retroceder. Exemplo disso são as eleições da Argentina e do Brasil. Ou quando não se tem um projeto político suficientemente sólido para dar continuidade, como ocorreu no Equador. Então não é algo tão simples como o rosto de quem vai ser o próximo presidente, mas quantas famílias podem ter que deixar de comer, quantas famílias podem ficar sem casa, como na Argentina, ou quantas famílias podem ficar sem poder pagar a luz, a água, o telefone… Quantas famílias podem cair na pobreza caso se decida por uma mudança de modelo econômico. E é isso que precisamos valorizar. De todas as maneiras esta eleição é como um marco, um momento muito importante porque terminará de enterrar partidos tradicionais que não obtenham o percentual mínimo.
Há uma clara opção entre dois caminhos: avançar ou retroceder.
São as tensões que sempre estão vivendo os processos na América Latina, entre o aprofundamento da democracia ou as limitações que podem surgir com a administração de um novo modelo. Não é algo tão simples. Há uma tensão entre o velho que não termina de morrer e o novo que não termina de nascer. Há candidatos que são reflexo do velho: Mesa foi presidente e foi presidente da Bolívia dos 60% pobres, da Bolívia que tinha de optar pela caridade internacional, da Bolívia dos US$ 9,5 bilhões, da Bolívia que não tinha soberania sobre seus recursos naturais, que havia terminado de entregar as empresas do Estado. Da Bolívia que efetivamente começou a morrer em 1985 e demonstrou o fracasso do modelo neoliberal em nossa região. Nosso problema não são as pessoas, são os modelos. Nós não lutamos individualmente contra os sujeitos, lutamos contra sistemas que reproduziram privilégios em detrimento das grandes maiorias. O problema é que existe uma tensão no que ainda não terminou de se materializar. Estamos em um processo de industrialização, estamos em um processo de redução da pobreza. Hoje não comparam nosso país com o Haiti em termos de pobreza ou de fome, mas há uma tensão enorme. Nesta eleição temos algo de orgulho para afirmar que vamos ganhar, porque governamos bem, porque há pessoas que pensam no crédito dado à moradia, no carro que recém adquiriu. As pessoas sabem que estão melhores do que há 13 anos. Mas há coisas que as pessoas não gostam e precisamos ser autocríticos com os erros que cometemos.
Por exemplo…
Não terminamos de transformar a Justiça, recém começamos a estruturar o Sistema Único de Saúde, pois a saúde esteve sequestrada nas mãos de grupos de poderes. E fortalecer a saúde pública é democracia.
Acredito que precisamos fazer ajustes e ter novas leituras sobre a juventude e suas aspirações. Hoje, por mais humilde, um jovem goza do acesso aos serviços básicos, tem o seu celular e quer ter um computador, está no campo e quer chegar à universidade. E todas essas são aspirações legítimas. Porém temos que fazer com que sejam acessíveis a todos, é assim que garantimos que se efetive a democracia.
Estamos nesta tensão. Oxalá possamos ganhar, Oxalá possamos consolidar o que temos construído, Oxalá possamos continuar acompanhando vários países e consolidando com quase toda nossa América Latina esta rede de fraternidade, solidariedade e de amor. Oxalá possamos seguir gozando dessa simpatia internacional.
Somos conscientes de que o exemplo boliviano se reproduz pela América Latina e pelo mundo. Há indígenas que veem a Bolívia e dizem: sim, é possível. E esta possibilidade, tornada exemplo, pode ser o pequeno aporte que daremos desde nossa história e vivência à construção de um mundo mais justo.
Na sua avaliação, qual a importância da juventude para a continuidade e o aprofundamento deste processo?
A juventude terá uma importância central, na medida em que seja uma geração que possa continuar apostando nos grandes pilares deste processo de transformação, deste processo de mudanças. Eu vejo que existem jovens que têm um pensamento bastante conservador, que naturalizaram as grandes transformações que se vivem no país. São jovens para quem o comum da sua vida é o acesso à educação, o acesso aos serviços públicos básicos, à moradia, que os veem como direitos garantidos, mas que provavelmente não tiveram contato com a luta que houve por detrás destas conquistas e que hoje são desafiados por outras coisas, por demandas mais vinculadas ao urbano, ao meio ambiente e com outras sensibilidades democráticas. Isso só é possível porque têm garantido neste momento elementos chaves que os nossos pais, os nossos avós não tiveram, principalmente o acesso à educação, à democratização da riqueza, às condições que tornam a vida digna. Então, se falamos de uma juventude que tem arraigada em si mesma direitos conquistados, princípios que foram centrais em nossa revolução democrática e cultural, falamos de uma juventude que pode garantir a continuidade e o aprofundamento deste processo. Porém existem correntes internacionais que não vão neste sentido e pelas quais os jovens estão sendo permanentemente influenciados, e das quais não sei se são vítimas ou sujeitos de um cerco ideológico.
Há uma intensa luta política e ideológica por detrás destas diferentes visões de mundo. Em relação a este ponto de vista, crês que o processo poderia ter feito ou possa fazer mais, particularmente no que diz respeito ao papel dos meios de comunicação?
Acredito que cometemos erros, inclusive do Estado, no processo educativo e na interpretação dos nossos próprios resultados. O professor argentino Ricardo Foster diz que temos nos equivocado no momento de interpretar o impacto das políticas públicas e o impacto do processo de transformação. Por exemplo, ele dizia: nós, em nossos governos, seguimos avaliando o ser humano a partir da capacidade de consumo e não a partir dos direitos conquistados. Avaliamos se podes comprar um televisor, quanto tens na tua conta bancária, se tens ou não acesso à educação desde a perspectiva de um serviço e não de um direito. Ao haver dado um enfoque mais administrativo às conquistas sociais temos esvaziado o conteúdo ideológico existente por trás disso.
Um indígena não tinha facilmente acesso à educação porque era uma escola com parede de barro e teto de palha, ou porque ficava a três quilômetros, ou porque seus professores não necessariamente tinham um grau educativo que lhes permitisse melhorar seu nível de instrução.
Todas essas melhoras foram avaliadas desde a capacidade de consumo e não desde os direitos conquistados e isso desmobiliza. Desmobiliza porque naturalizava as grandes transformações. Então ficou normal para o jovem, sempre foi assim.
Na verdade, vemos milhares de jovens serem os primeiros a concluírem o ciclo básico de estudos na sua família, não no seu pequeno núcleo, mãe e pai, mas até atrás, historicamente. Quantos jovens neste governo são os primeiros profissionais, os primeiros a conquistar um diploma universitário, o mais distante que as gerações anteriores avançaram? E, claro, naturalizando, não se mede a responsabilidade por detrás de tornar-se o orgulho familiar.
Não é somente uma batalha que tem que ser dada com os meios de comunicação, mas também desde o sistema educativo. Quando o sistema educativo ocidentaliza os parâmetros a partir dos quais se avalia o acesso à educação, não lê a si mesmo, sua própria história para encontrar as respostas, a interpretação adequada ao contexto atual que estamos vivendo. Creio que há uma mescla de interpretações em relação aos meios de comunicação, em que na realidade o equilíbrio não chegou, como no caso argentino, onde uma lei tentou estabelecer critérios. Na Bolívia, neste momento, a situação está bem para os meios de comunicação, como está bem para os bancos, para o empresariado privado, para a senhora que tem sua tenda na esquina ou para o sindicalista, vai bem para todos. Porém, por trás disso há um processo de naturalização e temos de combater não somente o aspecto comunicacional, como do ponto de vista educativo. Qual é o sistema de ideias que se converte no marco interpretativo dos direitos conquistados até o momento?
Estava lendo um conto do começo do século passado que narra o enorme preconceito em relação à participação feminina dentro das minas, e isso numa economia historicamente mineradora como a boliviana significava condenar as mulheres a ser apêndice, a isolar, a anular metade da população. Como avalias as conquistas obtidas de 2006 até aqui?
As mulheres tiveram participação destacada no processo boliviano: Juana Azurduy, nas guerrilhas pela independência, Ana Bárbara, nos movimentos independentistas aqui em Santa Cruz, desde o movimento indígena também, Bartolina Sisa, lutando para eliminar a exploração que existia no sistema colonial. Acontece que quando é assinada a ata de independência não havia uma única mulher, um só afrodescendente do exército dos pardos livres de Ignacio Warnes ou um só indígena. Então nos damos conta de que quando se consolida a independência e se começa a construir a República da Bolívia, todos esses setores que participaram do processo de libertação ficam excluídos. O mesmo aconteceu com as mulheres. Na imagem que registra o ato de independência não há uma só mulher, indígena, camponês ou afrodescendente. São os mesmos trajes e gravatas, ao lado do poder da igreja, obviamente.
A primeira vez que as mulheres votaram foi em 1949, a primeira vez que fizemos exercício do voto. Foram muitas décadas em que as mulheres ficaram à margem, da mesma forma que os camponeses e indígenas. Eram os tempos do voto qualificado, dos que tinham propriedades, dos que sabiam ler e escrever, dos que tinham certa relevância na sociedade, deixando a grande maioria excluída.
Com a revolução do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), em 1952, por decreto supremo se estabelece o voto universal, porém a mulher tinha um século de atraso na participação, mas não só, na construção do poder, na conquista do poder político, na reprodução do poder político. A isso se soma que somente em 1999 se falou de dar uma cota de participação à mulher que tenha minimamente 30%, então se procuravam mulheres simplesmente para cumprir formalmente os espaços de representação.
Então na década de 90 as mulheres bolivianas já tinham garantido 30% de participação no parlamento?
Teoricamente. Houve até um escândalo na época de um candidato travesti. Isso porque quando medes desde a perspectiva histórica vê que a mulher esteve relegada em tudo o que diz respeito à disputa do poder político. Em 2009, com a nova Constituição Política do Estado se estabelece na nossa norma principal e fundamental do país, que a equidade de gênero é um princípio. E a esse princípio constitucional se fizeram ajustes, produto da mobilização das mulheres, mas também da vontade política. Porque Evo Morales, desde que era dirigente sindical tinha esta compreensão e este compromisso.
É reconhecido o compromisso histórico do presidente com a luta das mulheres.
Desde muito cedo Evo estimulava e impulsionava para que a lista do Movimento Ao Socialismo (MAS), especialmente no trópico de Cochabamba, fosse paritária entre homens e mulheres. Ou seja, há uma construção por detrás disso. Foram constitucionalizados os princípios de paridade e equidade de gênero e no período constitucional seguinte, somente em 2014, conseguimos uma paridade efetiva: 51% da Assembleia são mulheres, entre deputadas e senadoras. A partir de então começaram aflorar outros tipos de preocupações.
A mulher disputa metade da representação política e começa a ser vítima do assédio e da violência. Há casos gravíssimos em que se chegou inclusive a assassinar mulheres vereadoras, a incendiar a casa de prefeitas aqui em Santa Cruz. São práticas violentas que buscam amedrontá-las no serviço da representação. Aí se protege a mulher com a lei contra o assédio e a violência política.
Como este avanço na representação política tem se traduzido em melhoras efetivas na situação da mulher em geral?
Em 2015 tínhamos 15,5% dos títulos agrários nas mãos de mulheres, agora são 46% e isso é super importante porque com isso também se modifica a estrutura de propriedade, pelo vínculo que tem a mulher com a terra, com a produção. Se prioriza o subsídio às mulheres que sejam mães, todas ganham. O Estado dá atenção à mulher. Há o Bônus Juana Azurduy, os planos de moradia especial para as mães solteiras.
Como funciona o bônus Juana Azurduy?
Há um montante econômico que é distribuído durante o acompanhamento do pré-natal, possibilitando que as mulheres possam comprar vitaminas e alimentos, melhorando a qualidade da gravidez e permitindo ao Estado um controle periódico. O que antes era um privilégio das mulheres que tinham um trabalho formal ou que eram esposas, hoje é algo que beneficia a todas. Isso também é uma conquista.
Começamos a discutir a partir do movimento feminino como enfrentar o problema da desigualdade salarial entre homens e mulheres, trabalhar a questão da corresponsabilidade da casa, e como o Estado possa contribuir para que realmente a mulher seja independente e possa construir o seu próprio destino.
Esta é uma das principais preocupações que têm o presidente Evo e que temos avançado muito. É algo produto da luta das mulheres, óbvio, mas também produto da vontade política, porque quando olhas para o mundo, apenas dois países têm resultados similares ao nosso: Cuba, a partir das eleições legislativas recentes, e Ruanda. Porém se olhas Paraguai, Brasil, Argentina, Chile, não há representação paritária de mulheres. E pior ainda, os organismos internacionais falam como se tivesse que haver uma espécie de movimento ascendente da história. Assim, em cada apresentação das Nações Unidas dizem: país xis, não vou citar nenhum em especial, antes tinha 45 parlamentares e hoje tem 53. Que orgulho. Expõem como se fosse um processo ascendente, ao que todos transitamos naturalmente, sem avaliar que há uma profunda disputa ideológica. E processos que retornam para o conservadorismo, como o Brasil, demonstram que o que temos conquistado nestes 13 anos de governo não pode ser perdido, que um patrimônio das mulheres bolivianas como a paridade está em jogo, que a luta deve estar acompanhada de um projeto político de transformação. Se Bolívia e Cuba alcançamos a paridade não é somente pela luta feminina, mas por uma revolução que entendeu que as mulheres, que metade de cada povo deve ter direito à metade da sua representação.
Como vês a importância da ampliação do investimento na educação pública – que o governo Evo vem realizando ao longo dos anos – e a relação da injeção de recursos na formação técnico-científica para o processo de industrialização e a libertação nacional?
Veja, a Bolívia, depois de Cuba, é o que mais investe na América Latina em educação: 8% do nosso Produto Interno Bruto. Antes a educação era considerada um serviço ao qual quem pagava tinha acesso e quem não pagava era privado ou adquiria em condições sumamente precárias. Portanto o primeiro que necessitamos fazer foi que num país onde 10% da população era analfabeta todos soubessem ler e escrever. Não podíamos falar de democracia em um país em que 10% da população não tinha acesso a um direito como esse. Para nós o conceito de democracia é algo muito mais profundo, não é somente ir às urnas a cada período de cinco anos. É um pouco o que dizia Samir Amim sobre o processo de democratização da riqueza, consiste em construir condições de igualdade para todos. Porque não podemos falar de democracia se alguns podem pagar o direito à saúde e outros têm que morrer nos corredores esperando serem atendidos. Não podemos falar de um país com centenas de milhares de analfabetos onde as crianças da área rural necessitavam caminhar horas para chegar à escola e provavelmente só tinham acesso à educação primária. Nossa tarefa principal nos primeiros anos de governo foi dar às crianças escolas em que elas e seus cadernos não ficassem ensopados quando chovesse, que ficassem próximas das suas comunidades, que seus professores tivessem um grau real de formação que lhes possibilitasse adquirir o mesmo nível de instrução de outras crianças. Hoje tens escolas no campo muito mais bonitas do que as privadas de quando eu era estudante; unidades educativas públicas muito maiores do que os colégios privados, e isso marca a melhoria na qualidade do acesso à educação. A segunda questão é o estágio da desnutrição infantil, em que tivemos avanços, mas ainda falta.
Em que pé está o combate à fome, especificamente?
Em um país onde 60% da população era pobre e 38% extremamente pobre conseguimos reduzir a pobreza moderada para 35% e a extrema para 15%. E precisamos falar de uma criança que vai à escola e está desnutrida. É necessário garantir aos professores um nível de instrução adequado. Hoje todos os professores têm acesso a um computador, são licenciados em pedagogia, há mais e melhores escolas e condições de ensino. Estas eram as questões objetivas e materiais que tivemos de melhorar.
E daqui para frente, quais são os novos desafios?
Os desafios deste novo período são distintos, porque entra em discussão o processo de industrialização do país, o papel que passará a jogar. E te colocas o desafio de implantar o bachalerado técnico-humanístico para que o jovem assim que conclua o curso tenha acesso a uma fonte de trabalho. Estamos progressivamente implementando este bacharelado com laboratórios, dotando de sete ou oito especialidades, dos equipamentos necessários para que os jovens tenham melhores condições de ensino.
Aonde seguimos tendo conflitos é no sistema educativo, que ainda não responde aos desafios da industrialização do país. Os jovens provavelmente sabem que estamos industrializando o lítio, que estamos industrializando o ferro em Mutún para obter o aço, que estamos industrializando o gás e que hoje temos derivados de gás, produtos da industrialização, com a Bolívia caminhando para converter-se em coração energético da América Latina.
Assim começa a ser um pouco desesperante que o sistema universitário ainda não invista todos os seus esforços para preparar os jovens que vão assumir a nova Bolívia industrializada, e isso preocupa. Mas estamos neste desafio também, é parte dos novos desafios.
Quando estive aqui em Santa Cruz em 2008 documentei a ação de uma elite fascista e seu profundo ódio “contra o índio”, alinhada abertamente com as propostas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, e que se mantém na oposição, manifestando sua completa aversão ao processo. Como se sustenta esse setor?
Acredito que todos foram beneficiados pelo crescimento econômico, porém ainda têm latente o medo de que imponhamos situações de privilégio de classe, de identidade regional, não gosto desta palavra racial, não creio que seja a palavra adequada. Acredito que as famílias que estiveram acostumadas a deter o poder têm ainda o medo de que outros possam se igualar a eles e que para isso afetem seus privilégios. No fundo não acredito que em 13 anos consigamos superar essas coisas enquanto sociedade. Sabemos que se avançou, mas são aspectos muito mais lentos. Nesse período, sim, foi como se colocássemos uma mordaça na boca daqueles que adjetivavam de forma muito simples, com o racismo, o regionalismo, o desprezo pelo pobre, porém faltou transformar a cabeça, faltou ainda mudar o sistema educativo e isso faz com que esse reacionarismo sobreviva no mais íntimo das pessoas. Isso subsiste ao ponto de quando se exacerbam posições no seio da sociedade, por estar tão à flor da pele, tão interiorizado, surgem na forma de um conflito regional. Isso demonstra que ainda há um caminho a ser percorrido, que ainda falta muito.
Do ponto de vista cultural o governo do MAS tem investido numa visão de mundo mais humanista, mais coletivista?
Sim, obviamente, o simples fato de que hoje uma criança numa escola pública esteja obrigada a compartilhar com outra de uma condição socioeconômica mais baixa faz parte deste processo educacional.
Qual o papel da industrialização para a consolidação da soberania nacional?
Primeiro é preciso compreender que lutar pela soberania passou por recuperar o controle dos recursos naturais estratégicos, recuperar as empresas do Estado que desde 1985 haviam sido privatizadas e capitalizadas. E também recuperar o papel do Estado na economia porque o período neoliberal implicou a redução da participação estatal nas diferentes áreas, por isso não brindava educação, saúde, serviços. Um período em que os trabalhadores estavam expostos às imposições do mercado, o que incidia na piora das condições de vida.
O período neoliberal, de 1985 a 2005, nos deixou com um Produto Interno Bruto de US$ 9,5 bilhões. Este ano estamos encerrando com US$ 43 bilhões, multiplicamos mais de quatro vezes o PIB.
No início foi preciso colocar a casa em ordem, recuperar a soberania, recuperar a participação estratégica do Estado. Depois, progressivamente, com os excedentes gerados a partir de três grandes áreas, a grande indústria, a mineração e os hidrocarbonetos, dinamizamos a economia, o processo de substituição de importações e fortalecemos o mercado interno.
Isso implicou também em fixarmos o tipo de câmbio. A moeda nacional em relação ao dólar está desde 2013 em 6,96 bolivianos. Tudo isso contribuiu para que sigamos sendo pelo sexto ano consecutivo o país que mais cresce na América Latina, com uma média de 4,5%, 4,6% do PIB.
Com a recuperação, começamos a industrialização de áreas estratégicas da economia como o setor de hidrocarbonetos, impulsionar a indústria do lítio, impulsionar a indústria do aço, impulsionar uma relação mais equilibrada com a agroindústria. E hoje em dia isso é possível porque a fábrica de ureia e amoníaco custou US$ 980 milhões. É possível porque tivemos um Produto Interno Bruto superior a US$ 40 bilhões em 2018, mas não teria sido possível em 2005, pois uma indústria desta magnitude teria comido 10% do PIB.
A industrialização é viável porque temos uma economia melhor, que cresce e que pode ampliar investimentos. Estamos agora em um debate a respeito das parcerias público-privadas, sobre o pêndulo que sempre existiu nos investimentos, entre maior participação e concentração do Estado na economia ou a liberação. A ideia são alianças com o setor privado sob a direção estratégica e a planificação do Estado e dessa forma exercer a soberania.
Fale um pouco sobre a redistribuição de riqueza possibilitada com a aplicação do décimo quarto salário, pago aos trabalhadores todas as vezes que a economia do país alcança um crescimento de 4,5% do PIB.
Temos a repartição de riquezas como um princípio e, naturalmente, existem problemas práticos para a sua implementação. Nossa economia ainda tem uma forte base informal, há pequenas empresas que enfrentam problemas para pagar o décimo quarto salário. Então temos como um princípio, mas que tem suas particularidades no momento de materializar-se como um direito efetivo para todos. Por isso, neste ano, tivemos que estabelecer como teto para o pagamento do décimo quarto salário os que recebem até 15 mil bolivianos mensais (US$ 1.915). Isso contribuiu para democratizar a riqueza, crescer e dinamizar o mercado interno, para fortalecer preferencialmente a indústria nacional.
Temos uma eleição no próximo dia 20 de outubro em que candidatos como Carlos Mesa escondem abertamente seu vínculo com um passado reacionário e sangrento e seus atuais compromissos com um projeto de dilapidação e desconstrução do que foi conquistado. O que fazer?
O primeiro é mostrar para o eleitor que o que está em jogo não é a administração do Estado tão somente. Votamos por modelos e se pode avançar ou retroceder. Exemplo disso são as eleições da Argentina e do Brasil. Ou quando não se tem um projeto político suficientemente sólido para dar continuidade, como ocorreu no Equador. Então não é algo tão simples como o rosto de quem vai ser o próximo presidente, mas quantas famílias podem ter que deixar de comer, quantas famílias podem ficar sem casa, como na Argentina, ou quantas famílias podem ficar sem poder pagar a luz, a água, o telefone… Quantas famílias podem cair na pobreza caso se decida por uma mudança de modelo econômico. E é isso que precisamos valorizar. De todas as maneiras esta eleição é como um marco, um momento muito importante porque terminará de enterrar partidos tradicionais que não obtenham o percentual mínimo.
Há uma clara opção entre dois caminhos: avançar ou retroceder.
São as tensões que sempre estão vivendo os processos na América Latina, entre o aprofundamento da democracia ou as limitações que podem surgir com a administração de um novo modelo. Não é algo tão simples. Há uma tensão entre o velho que não termina de morrer e o novo que não termina de nascer. Há candidatos que são reflexo do velho: Mesa foi presidente e foi presidente da Bolívia dos 60% pobres, da Bolívia que tinha de optar pela caridade internacional, da Bolívia dos US$ 9,5 bilhões, da Bolívia que não tinha soberania sobre seus recursos naturais, que havia terminado de entregar as empresas do Estado. Da Bolívia que efetivamente começou a morrer em 1985 e demonstrou o fracasso do modelo neoliberal em nossa região. Nosso problema não são as pessoas, são os modelos. Nós não lutamos individualmente contra os sujeitos, lutamos contra sistemas que reproduziram privilégios em detrimento das grandes maiorias. O problema é que existe uma tensão no que ainda não terminou de se materializar. Estamos em um processo de industrialização, estamos em um processo de redução da pobreza. Hoje não comparam nosso país com o Haiti em termos de pobreza ou de fome, mas há uma tensão enorme. Nesta eleição temos algo de orgulho para afirmar que vamos ganhar, porque governamos bem, porque há pessoas que pensam no crédito dado à moradia, no carro que recém adquiriu. As pessoas sabem que estão melhores do que há 13 anos. Mas há coisas que as pessoas não gostam e precisamos ser autocríticos com os erros que cometemos.
Por exemplo…
Não terminamos de transformar a Justiça, recém começamos a estruturar o Sistema Único de Saúde, pois a saúde esteve sequestrada nas mãos de grupos de poderes. E fortalecer a saúde pública é democracia.
Acredito que precisamos fazer ajustes e ter novas leituras sobre a juventude e suas aspirações. Hoje, por mais humilde, um jovem goza do acesso aos serviços básicos, tem o seu celular e quer ter um computador, está no campo e quer chegar à universidade. E todas essas são aspirações legítimas. Porém temos que fazer com que sejam acessíveis a todos, é assim que garantimos que se efetive a democracia.
Estamos nesta tensão. Oxalá possamos ganhar, Oxalá possamos consolidar o que temos construído, Oxalá possamos continuar acompanhando vários países e consolidando com quase toda nossa América Latina esta rede de fraternidade, solidariedade e de amor. Oxalá possamos seguir gozando dessa simpatia internacional.
Somos conscientes de que o exemplo boliviano se reproduz pela América Latina e pelo mundo. Há indígenas que veem a Bolívia e dizem: sim, é possível. E esta possibilidade, tornada exemplo, pode ser o pequeno aporte que daremos desde nossa história e vivência à construção de um mundo mais justo.
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