Por Raphael Boldt, na revista CartaCapital:
O final do ano está às portas. E, com isso, chega ao fim também o primeiro ano de um novo (velho) governo. Novo do ponto de vista cronológico, velho com relação a certas práticas e, sobretudo, no que se refere aos discursos que delineiam a atual política criminal no Brasil. Na realidade, uma das principais novidades da atual administração está nos traços marcadamente e escancaradamente neoconservadores do controle penal que, sem qualquer cerimônia, reproduz o que há de pior no modelo norte-americano.
Melancolicamente, presenciamos o desfecho de um ano que, no contexto político-criminal, confirmou as expectativas quanto à disseminação de uma visão da justiça criminal fadada ao fracasso. Declaradamente defende-se a redução da criminalidade e a promoção da segurança pública, porém, na prática, o que se nota é mais do mesmo: consolidação da hipertrofia penal e criminalização da pobreza. O sistema penal brasileiro espelha a sua matriz estadunidense e revela-se como parte de um projeto hegemônico-ideológico cujo propósito é legitimar o desmonte do Estado de Bem-Estar Social e negar o Direito a partir daquilo que Peter-Alexis Albrecht chamou de “pós-preventivo direito penal de segurança”.
Esse modelo de controle penal ganhou forças desde o início deste século e sobrepõe claramente a segurança à liberdade. O direito penal abandonou a sua função de tutela dos bens jurídicos para assumir o papel de instrumento de materialização da segurança pública, recorrendo, assim, a teorias que defendem a militarização da segurança e a intervenção estatal independentemente de suspeita. Com a multiplicação das medidas legais de segurança demandadas pela população, o Estado exige dos cidadãos “sacrifícios” ou deveres em favor da segurança total, pretensão claramente ilusória.
Esse enredo já conhecido não é obra do acaso, nem resultado apenas da ignorância política em relação aos conhecimentos criminológicos ou jurídico-penais. É justamente aqui que discordamos de Albrecht e nos apoiamos no belíssimo trabalho do historiador francês Christian Ingrao sobre os intelectuais alemães que fizeram parte da SS para destacar o papel decisivo dos (pseudo)intelectuais neoconservadores na construção da narrativa punitivista contemporânea. Apoiados pelos meios de comunicação de massa, eles interiorizam e disseminam um sistema de crenças que justifica a extinção de programas sociais e a ampliação do poder punitivo como solução para a criminalidade.
Esqueçamos, portanto, a imagem de indivíduos cínicos, arrogantes, oportunistas e incultos. É provável que alguns assumam essas características, mas não estamos falando de monstros, senão de verdadeiros “intelectuais militantes” (ou militantes intelectuais), para usar a expressão de Ingrao.
Eis o nosso alerta: o punitivismo neoconservador não é conseqüência somente do trabalho de incautos ou vilões de um “conhecimento pervertido”. Ele também provém de sujeitos esclarecidos – acadêmicos, juristas, economistas, filósofos, historiadores – eliminando, com isso, a ideia de que quanto maior o grau de instrução, menor o risco de adesão a ideologias extremistas e a posturas fundamentalistas.
Em seu livro Crer e Destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista, Ingrao analisa a trajetória e as experiências de vários intelectuais com um título de doutor que se tornaram assassinos em massa fardados. São esses “intelectuais comprometidos” que atualmente sugerem a militarização das forças policiais, o aumento da severidade das leis penais e a massificação do cárcere. Esse desenvolvimento tem conduzido à negação dos direitos fundamentais e à aniquilação do próprio Direito. Trata-se de um direito penal absoluto, lesivo da igualdade e arbitrário, nitidamente autoritário.
A narrativa neoconservadora apresenta o igualitarismo dos programas sociais de distribuição de renda e a leniência do sistema penal como causas centrais para o aumento da criminalidade no país. Entretanto, oculta em sua análise os danos produzidos pela reestruturação neoliberal da economia e as ações das corporações privadas, para exaltar, no final das contas, a superioridade racional e moral do livre mercado capitalista e do punitivismo.
De norte a sul do país proliferam as propostas para a segurança pública pautadas na reformulação de leis penais, como se o direito penal fosse capaz de cumprir tais promessas. Essa nova orientação do direito penal aprofunda o descrédito do próprio Direito e acirra a crise do sistema de justiça criminal. Com a frustração das esperanças coletivas por plena segurança, abandona-se de vez o clássico direito penal de garantias e assume-se a necessidade de instaurar um “Estado securitário”, calcado na maximização do poder e na restrição dos direitos. A legalidade assume papel secundário e tornam-se admissíveis mecanismos de repressão violentos inspirados em governos autoritários. Fala-se, então, repetidamente, em AI-5 e difunde-se a necessidade de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para manutenção da segurança pública.
E por falar em AI-5, ele já está posto no Brasil faz tempo. O que o governo pretende com as suas reiteradas evocações ao ato institucional é apenas normalizá-lo perante a opinião pública. Basta olhar para as periferias urbanas. A letalidade policial atingiu números absurdos e a população negra e pobre experimenta a exceção permanente todos os dias. Só no estado do Rio de Janeiro a polícia já matou até outubro deste ano 1.546 pessoas, mais do que em qualquer ano das últimas duas décadas. A gestão diferencial das ilegalidades sempre foi evidente e agora a violência se projeta mais intensamente na direção dos povos das florestas, obstáculos à “abertura econômica da Amazônia”.
O imaginário da guerra contra o crime encontra-se no âmago das nossas representações mentais. É perceptível uma angústia quase apocalíptica por parte de um governo que se alimenta da construção da imagem desumana de seus inimigos. Sejam eles “comunistas”, “esquerdistas”, ambientalistas, humanistas, povos indígenas, movimentos sociais, enfim, o mais importante é compreender que a existência deles é fundamental para a banalização da violência e a justificação do recrudescimento das leis penais. Mas a morte de inocentes e a violência desmedida não deveriam inspirar repugnância moral? Para os intelectuais neoconservadores, não se trata apenas de combater o crime, mas de uma suposta luta por valores perdidos, da civilização contra a barbárie cristalizada nos movimentos sociais, nos ideais progressistas. Esse embate do “bem” contra o “mal” perpassa as questões mundanas e, parafraseando Ingrao, funciona como uma “forma derivada de utopia milenarista”.
Para além dos interesses de manutenção do poder, o aparente desejo de um novo AI-5 com aparência de legalidade deriva da crença de que o país está diante de um perigo mortal. A estratégia é antiga, mas as técnicas de controle e dominação se sofisticaram. Os teóricos por trás desse novo modelo de controle social inundam as redes sociais com propostas que apontam para a necessidade de criar uma nova sociedade, onde acreditam que a destruição de tudo aquilo que se opõe à sua visão de mundo é uma de suas responsabilidades para criar a utopia. Para os juristas empenhados na emancipação social só há um caminho: resistir e opor ao obscurantismo do punitivismo neoconservador práticas comprometidas com a democracia e a liberdade, construídas a partir de uma nova racionalidade.
Melancolicamente, presenciamos o desfecho de um ano que, no contexto político-criminal, confirmou as expectativas quanto à disseminação de uma visão da justiça criminal fadada ao fracasso. Declaradamente defende-se a redução da criminalidade e a promoção da segurança pública, porém, na prática, o que se nota é mais do mesmo: consolidação da hipertrofia penal e criminalização da pobreza. O sistema penal brasileiro espelha a sua matriz estadunidense e revela-se como parte de um projeto hegemônico-ideológico cujo propósito é legitimar o desmonte do Estado de Bem-Estar Social e negar o Direito a partir daquilo que Peter-Alexis Albrecht chamou de “pós-preventivo direito penal de segurança”.
Esse modelo de controle penal ganhou forças desde o início deste século e sobrepõe claramente a segurança à liberdade. O direito penal abandonou a sua função de tutela dos bens jurídicos para assumir o papel de instrumento de materialização da segurança pública, recorrendo, assim, a teorias que defendem a militarização da segurança e a intervenção estatal independentemente de suspeita. Com a multiplicação das medidas legais de segurança demandadas pela população, o Estado exige dos cidadãos “sacrifícios” ou deveres em favor da segurança total, pretensão claramente ilusória.
Esse enredo já conhecido não é obra do acaso, nem resultado apenas da ignorância política em relação aos conhecimentos criminológicos ou jurídico-penais. É justamente aqui que discordamos de Albrecht e nos apoiamos no belíssimo trabalho do historiador francês Christian Ingrao sobre os intelectuais alemães que fizeram parte da SS para destacar o papel decisivo dos (pseudo)intelectuais neoconservadores na construção da narrativa punitivista contemporânea. Apoiados pelos meios de comunicação de massa, eles interiorizam e disseminam um sistema de crenças que justifica a extinção de programas sociais e a ampliação do poder punitivo como solução para a criminalidade.
Esqueçamos, portanto, a imagem de indivíduos cínicos, arrogantes, oportunistas e incultos. É provável que alguns assumam essas características, mas não estamos falando de monstros, senão de verdadeiros “intelectuais militantes” (ou militantes intelectuais), para usar a expressão de Ingrao.
Eis o nosso alerta: o punitivismo neoconservador não é conseqüência somente do trabalho de incautos ou vilões de um “conhecimento pervertido”. Ele também provém de sujeitos esclarecidos – acadêmicos, juristas, economistas, filósofos, historiadores – eliminando, com isso, a ideia de que quanto maior o grau de instrução, menor o risco de adesão a ideologias extremistas e a posturas fundamentalistas.
Em seu livro Crer e Destruir: os intelectuais na máquina de guerra da SS nazista, Ingrao analisa a trajetória e as experiências de vários intelectuais com um título de doutor que se tornaram assassinos em massa fardados. São esses “intelectuais comprometidos” que atualmente sugerem a militarização das forças policiais, o aumento da severidade das leis penais e a massificação do cárcere. Esse desenvolvimento tem conduzido à negação dos direitos fundamentais e à aniquilação do próprio Direito. Trata-se de um direito penal absoluto, lesivo da igualdade e arbitrário, nitidamente autoritário.
A narrativa neoconservadora apresenta o igualitarismo dos programas sociais de distribuição de renda e a leniência do sistema penal como causas centrais para o aumento da criminalidade no país. Entretanto, oculta em sua análise os danos produzidos pela reestruturação neoliberal da economia e as ações das corporações privadas, para exaltar, no final das contas, a superioridade racional e moral do livre mercado capitalista e do punitivismo.
De norte a sul do país proliferam as propostas para a segurança pública pautadas na reformulação de leis penais, como se o direito penal fosse capaz de cumprir tais promessas. Essa nova orientação do direito penal aprofunda o descrédito do próprio Direito e acirra a crise do sistema de justiça criminal. Com a frustração das esperanças coletivas por plena segurança, abandona-se de vez o clássico direito penal de garantias e assume-se a necessidade de instaurar um “Estado securitário”, calcado na maximização do poder e na restrição dos direitos. A legalidade assume papel secundário e tornam-se admissíveis mecanismos de repressão violentos inspirados em governos autoritários. Fala-se, então, repetidamente, em AI-5 e difunde-se a necessidade de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para manutenção da segurança pública.
E por falar em AI-5, ele já está posto no Brasil faz tempo. O que o governo pretende com as suas reiteradas evocações ao ato institucional é apenas normalizá-lo perante a opinião pública. Basta olhar para as periferias urbanas. A letalidade policial atingiu números absurdos e a população negra e pobre experimenta a exceção permanente todos os dias. Só no estado do Rio de Janeiro a polícia já matou até outubro deste ano 1.546 pessoas, mais do que em qualquer ano das últimas duas décadas. A gestão diferencial das ilegalidades sempre foi evidente e agora a violência se projeta mais intensamente na direção dos povos das florestas, obstáculos à “abertura econômica da Amazônia”.
O imaginário da guerra contra o crime encontra-se no âmago das nossas representações mentais. É perceptível uma angústia quase apocalíptica por parte de um governo que se alimenta da construção da imagem desumana de seus inimigos. Sejam eles “comunistas”, “esquerdistas”, ambientalistas, humanistas, povos indígenas, movimentos sociais, enfim, o mais importante é compreender que a existência deles é fundamental para a banalização da violência e a justificação do recrudescimento das leis penais. Mas a morte de inocentes e a violência desmedida não deveriam inspirar repugnância moral? Para os intelectuais neoconservadores, não se trata apenas de combater o crime, mas de uma suposta luta por valores perdidos, da civilização contra a barbárie cristalizada nos movimentos sociais, nos ideais progressistas. Esse embate do “bem” contra o “mal” perpassa as questões mundanas e, parafraseando Ingrao, funciona como uma “forma derivada de utopia milenarista”.
Para além dos interesses de manutenção do poder, o aparente desejo de um novo AI-5 com aparência de legalidade deriva da crença de que o país está diante de um perigo mortal. A estratégia é antiga, mas as técnicas de controle e dominação se sofisticaram. Os teóricos por trás desse novo modelo de controle social inundam as redes sociais com propostas que apontam para a necessidade de criar uma nova sociedade, onde acreditam que a destruição de tudo aquilo que se opõe à sua visão de mundo é uma de suas responsabilidades para criar a utopia. Para os juristas empenhados na emancipação social só há um caminho: resistir e opor ao obscurantismo do punitivismo neoconservador práticas comprometidas com a democracia e a liberdade, construídas a partir de uma nova racionalidade.
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