Charge: Luc Descheemaeker |
Como qualificar um governo que retarda indefinidamente as medidas que poderiam reduzir os efeitos de uma pandemia, estimula as pessoas a continuar circulando e espalhando o agente patógeno e mantém os hospitais desequipados? O que fazer se este mesmo governo aproveita-se da reclusão responsável dos cidadãos em suas casas, e da desmobilização do Parlamento, para editar Medidas Provisórias que, ao invés de reduzir a dor coletiva, impõem mais sofrimento, concentram riqueza e ameaçam a democracia? Este governo é de traição nacional e é obrigação da sociedade e do sistema político interditá-lo o quanto antes.
Adotada na calada da noite de um domingo (22/3), a Medida Provisória 927, que permite aos empresários deixar de pagar, por até quatro meses, os salários de seus trabalhadores é um dos atos de poder mais abjetos da história da República. A revogação desta cláusula, anunciada no início da tarde de segunda após uma chuva de críticas, não basta - porque a MP-927 não foi uma ação isolada. Nos últimos dias, o presidente e seus ministros têm provocado a sociedade, que luta sozinha contra a pandemia, com uma série de medidas nocivas e declarações absurdas. Eis algumas delas:
> Em 13 de Março, o ministro Paulo Guedes enviou à Câmara dos Deputados um conjunto de medidas que, segundo ele, serviria para enfrentar a crise sanitária. Incluiu entre elas, sem alarde, a “aprovação do PL 4162/2019”. Este projeto de lei, cujo teor não mencionou, privatiza a gestão do abastecimento de água e do saneamento de esgotos no país – chegando a obrigar as prefeituras a oferecerem os serviços a propostas de empresas privadas. Não há, evidentemente, nenhuma relação entre privatizar a água e combater o coronavírus. Trata-se, portanto, de uma ação oportunista e sub-reptícia, adotada para tirar proveito da crise.
> A partir da última quinta-feira (18/3), alarmados com a paralisia de Brasília diante da crise sanitária, diversos governadores articularam-se e passaram a agir com os meios – muito inferiores aos da União – de que dispõem. Reivindicaram recursos federais (parcos R$ 5 bilhões) para melhorar o atendimento em suas redes de Saúde. Não receberam resposta. Começaram a adotar medidas básicas contra a crise e foram – espantosamente – sabotados pelo governo federal. Quando o governador do Maranhão, diante da recusa da Infraero, determinou que a secretaria de Saúde monitorasse os voos em que chegam passageiros do exterior, a Anvisa chegou a mover ação judicial contra a medida – felizmente derrotada no Judiciário. Quando os governadores do Rio e de São Paulo determinaram, já tardiamente, medidas mais severas de afastamento social, Bolsonaro criticou a medida e chamou João Dória de “lunático”.
> Num ato de oportunismo ainda mais flagrante, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta propôs no domingo (22/3), em teleconferência com prefeitos, ampliar (por meio de “um tampão”) os mandatos destes políticos, livrando-os do julgamento popular e adiando as eleições municipais de outubro. A justificativa foi ainda mais grave que a proposta. Mandetta afirmou que eleições em 2020 serão “uma tragédia, porque vai querer todo mundo fazer ação política”. A fala deixa claro que Bolsonaro e sua equipe procuram abrir espaço para cancelar uma das garantias essenciais da democracia: o direito dos cidadãos a afastar os governantes que agem contra seus interesses. A equipe instalada no Palácio do Planalto quer exercer o poder solitariamente e multiplicar ações contra a sociedade, sem sofrer as consequências de seus atos.
Medidas insanas como estas são contrárias às que os governos de todo o mundo estão adotando contra a crise. Afastam-se inclusive do que estão propondo setores do grande poder econômico que conservam algum senso de realidade. Ainda neste domingo, o presidente da XP Corretora, que apoiou Bolsonaro na disputa pela Presidência, afirmou em videoconferência com seus pares que o país “corre o risco de ter 40 milhões de desempregados até o fim do segundo semestre”; que o pacote de estímulos contra a crise proposto pelo governo é muito insuficiente e que o país precisa de “um Plano Marshall” – o exato oposto do ataque aos salários dos trabalhadores.
Nada disso abala Bolsonaro e seus assessores. Seguem na aplicação de uma agenda sem nenhuma contato com o drama da população, orientada talvez por seus ideólogos extremistas. É como se o Brasil, sequestrado por uma equipe de celerados, se convertesse em laboratório de aplicação de experimentos antissociais e sádicos. Neles se verificará – à moda dos campos de concentração nazista – quanto um corpo humano, ou uma sociedade, podem suportar, até que se esgarçarem e sucumbirem.
A medida adequada, diante deste cenário, seria o impeachment. Os crimes de responsabilidade já cometidos são múltiplos e gravíssimos. Infelizmente, o país não tem como esperar, no tempo imposto pela crise, os longos meses necessários para que este se consume. É preciso interditar politicamente Jair Bolsonaro, por meio de ações que tornem patente o repúdio a seus desatinos e a rejeição que eles inevitavelmente terão.
Uma primeira medida seria impor, no Congresso, uma derrota humilhante à MP-927, que evidenciasse o isolamento do governo. Para alcançá-la, os panelaços – hoje a forma de protesto mais eficaz, diante da quarentena – deveriam prosseguir e se ampliar, até se tornar ensurdecedores. Mas para isso é preciso que não sejam, como tem sido até agora, fruto apenas da revolta espontânea dos cidadãos. É preciso articular uma corrente de esclarecimento e mobilização popular. Dela precisam participar os líderes da oposição – até agora pouco eloquentes, com raras exceções –, dos movimentos sociais, as referências das lutas antirracista e antipatriarcal que se espalham pelo país, os artistas (em especial os das periferias), os intelectuais.
Interrompida a agenda fanática de Bolsonaro, será preciso cuidar imediatamente da Saúde. O ministro Mandetta já demonstrou que nem ele nem sua equipe estão minimamente à altura da gravidade da crise. Todas as medidas necessárias para defender a população da pandemia estão atrasadas. Em vez de adotá-las, o ministro flerta com a ruptura das eleições e da democracia.
O Brasil formou, desde a Constituição de 1988, excelentes quadros na área de Saúde Pública – cientistas, pesquisadores e gestores. Foi pioneiro global na adoção de políticas inovadoras e eficazes, como a garantia dos tratamentos contra a AIDS, a produção de medicamentos genéricos, a redução sustentada dos índices de mortalidade infantil. Especialistas ligados a esta tradição precisam ser convocados para um Comitê de Emergência Sanitária que assuma o comando do combate à pandemia. O Congresso – onde o deputado Rodrigo Maia tem desempenhado papel democrático – poderia articular a formação deste órgão. Muito contribuiria um apelo, nesse sentido, lançado por ex-ministros da Saúde.
É preciso agir já. Como explicou, num vídeo didático, o biólogo Atila Iamarino, disto depende a possibilidade de salvar centenas de milhares de vidas. A janela de tempo disponível para ação não são meses ou semanas, mas dias ou horas. É preciso interditar Jair Bolsonaro já!
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