sexta-feira, 13 de março de 2020

O último sacrifício de Marielle?

Por Boaventura Santos, Luis Lomenha e Scarlett Rocha, no site Outras Palavras:

Marielle Franco sacrificou a sua vida pela luta contra o racismo, o sexismo, a injustiça social e a captura do Estado pelo crime organizado. A nobreza e a coragem da sua luta impressionaram todos os que a conheceram, independentemente de posições políticas, e o seu bárbaro assassinato abalou o mundo. Infelizmente, este não foi o seu último sacrifício. Logo depois da sua morte assistimos ao espetáculo macabro de uma investigação criminal que quase investiga, que quase sabe quem a matou e mandou matar, que quase se dispõe a formular acusações e a julgar, mas cujo quase parece não terminar nunca.

Este tem sido um novo sacrifício de Marielle. E se tal não bastasse, outro sacrifício parece estar em curso. O novíssimo sacrifício de Marielle é a utilização do seu nome e da sua nobre luta para fins de promoção mediática e comercial que, independentemente das intenções de quem a promove, atraiçoam objetivamente os símbolos e os fins da sua luta. Marielle corre assim o risco que correu outro grande revolucionário antes dela, Che Guevara, cujo sacrifício se trivializou em decoração de camisetas ou em nome de bares turísticos.

Na semana passada, a roteirista e escritora Antônia Pellegrino, conhecida por sua trajetória dedicada ao feminismo e ao pensamento de esquerda, envolveu-se numa forte polêmica nas redes sociais. Militantes e artistas negros questionaram a escolha do cineasta José Padilha para dirigir uma série sobre a vida de Marielle Franco produzida por Pellegrino e contratada pela TV Globo. Como sabemos, tudo indica que Marielle foi assassinada pelas milícias do Rio de Janeiro dois anos atrás. Padilha é diretor de Tropa de Elite, o filme que glamorizou o BOPE (Batalhão de Operações Especiais) considerada a polícia mais letal do mundo. O cineasta também dirigiu a série Mecanismo da Netflix, que converteu o juiz-político Sérgio Moro em herói nacional e a quem o próprio Padilha apelidou de “Samurai Ronin” em alusão a um lutador do Japão feudal que não possuía um mestre.

Logo após Moro aceitar o cargo de ministro da Justiça no governo de Jair Bolsonaro, Padilha arrependeu-se e escreveu um artigo declarando o seu arrependimento. Aparentemente, o arrependimento foi tão sincero e impressionou de tal modo Antônia Pellegrino que tal bastou para que a roteirista de esquerda superasse algum acanhamento em unir-se a um diretor de direita na realização da série sobre uma lutadora que procurou reinventar a esquerda para que ela não se confundisse facilmente com a direita.

Questionada sobre a ausência de uma profissional negra ou de um profissional negro na direção, Antônia disse que o racismo estrutural brasileiro impediu o nascimento de um Spike Lee ou uma Ava DuVernay, diretores norte-americanos negros muito conhecidos. A autora de Tim Maia: Vale o que Vier foi além disso dizendo que Padilha e Rodrigo Teixeira, dono da produtora RT Features, são os únicos no Brasil capazes de fazer a série sobre Marielle ganhar dimensão internacional. Paralelamente, o diretor se defendeu em artigo na Folha de São Paulo, escrevendo que foi o ódio de um negro que assassinou o ativista Malcom X, discurso parecido com o do presidente Bolsonaro quando culpa os negros pela escravidão, afirmando que, na África, os negros, além de terem escravos, os vendiam aos europeus. O mesmo tipo de raciocínio levará Padilha a pensar que, de igual modo, os principais culpados pela morte de um jovem negro a cada 23 minutos no Brasil são os policiais negros ou os traficantes da mesma raça.

Felizmente, não foi este o raciocínio de Antônia, para quem a culpa da “ausência” de cineastas negros reside no racismo estrutural do Brasil. Mas, infelizmente, num primeiro momento, não retirou deste raciocínio as ilações devidas. Foram o professor Silvio Almeida e a cineasta Sabrina Fidalgo, ambos negros, que o fizeram. Silvio Almeida afirmou em um dos seus vários “tweets”: “Ao tomar consciência da dimensão estrutural do racismo, a responsabilidade dos indivíduos e das instituições aumenta e não diminui. Agora, cada um vai ter que pensar qual o seu papel na reprodução de uma sociedade racista”. Por sua vez, Sabrina Fidalgo, num tom ainda mais contundente, afirmou em blog da Folha de São Paulo: “O oportunismo e a ganância na corrida de “quem leva mais” com a tragédia da vereadora carioca chegaram em seu nível máximo de crueldade; Marielle, nessa história toda, está sendo executada pela segunda vez”.

Perante isto, saudamos calorosamente a mais recente declaração de arrependimento de Antônia Pellegrino que em sua mensagem de facebook de 11 de Março afirma: “Após o choque inicial, veio a decepção. A decepção comigo mesma. Como eu pude dizer uma frase tão estúpida? Hoje, vejo que a resposta é simples: como muitas pessoas brancas progressistas e antirracistas, tive a certeza de que minhas intenções eram tão boas que jamais seriam questionadas neste âmbito. Novamente, peço perdão pela desastrosa declaração… Este é um projeto que, desde o primeiro momento, é fundamentalmente comprometido com a luta por justiça por Marielle Franco. São dois anos sem resposta para a pergunta: quem mandou matar Marielle? E contar sua saga, na atual conjuntura, dando máxima visibilidade à história desta heroína brasileira e à sua execução brutal é uma forma de manter o apelo social do caso. Entendo e respeito quem discorde, mas este foi meu compromisso com a família de Marielle. Como produtora executiva e idealizadora da série de Marielle, gostaria de reiterar que nossa intenção sempre foi ter uma equipe diversa, com negros e mulheres na liderança do processo criativo.”

Não se pode ser mais veemente em formular um rebate de consciência. Mas as ilações que dele decorrem são agora tão evidentes que certamente não escaparão a Pellegrino. Distinguimos quatro ilações principais.

A primeira ilação é sobre o próprio rebate de consciência. Nas sociedades racistas, o arrependimento, por mais sincero, é sempre uma segunda posição. A primeira é a ditada pelo senso comum racista. Nos dias de hoje, o pior racismo é o daqueles que não se consideram racistas. Aceitam a existência do racismo como um dado inelutável pelo qual a sociedade em abstrato é responsável e que, por isso, lutar contra ele nunca é uma responsabilidade pessoal. Implicitamente, admite-se que, tal como não há hoje cineastas negros capazes de um empreendimento digno de uma vasta audiência dominada pela sociedade branca, tão pouco os haverá daqui a cinquenta ou cem anos.

A segunda ilação é que a suposta “ausência” de cineastas brasileiros negros é o produto do que um de nós designa por uma “sociologia das ausências”. Trata-se da invisibilidade e da ocultação dos cineastas negros realmente existentes e que resistem numa luta, tantas vezes frustrante, por uma oportunidade para mostrar a públicos mais amplos as suas capacidades há muito demonstradas em escalas menores ou em contextos marginais porque marginalizados pela sociedade branca. As escolas populares de audiovisual começaram nas periferias de todo o Brasil no início do século XXI. Passaram 20 anos e os profissionais que são fruto destas iniciativas já estão no mercado fazendo filmes e séries, e conquistando prêmios nacionais e internacionais. É o racismo que os torna invisíveis.

Aliás, o racismo não é monopólio das grandes emissoras de TV e plataformas de streaming, que não têm negros nos seus quadros executivos, não contratam profissionais de roteiro e direção negros e também não fazem contratos com produtoras de propriedade de negros. O racismo está igualmente muito presente entre pequenos produtores independentes, pessoas de direita e esquerda que tentam a todo custo proteger o pouco espaço que têm. É o racismo que explica os dados estatísticos da ANCINE – Agência Nacional do Cinema num estudo sobre “diversidade de gênero e raça no audiovisual” divulgado em 2016. Tendo como base os 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição nesse ano, os homens brancos dirigiram 75,4% dos longas. As mulheres brancas assinam a direção de 19,7% dos filmes, enquanto apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros. Nenhum filme em 2016 foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra.

A terceira ilação é que José Padilha não deve dirigir a série sobre Marielle Franco. Independentemente das intenções dele e da Antônia Pellegrino, se o fizer, isso constituirá objetivamente uma ofensa à memória de Marielle. Constituirá certamente uma humilhação para os cineastas e roteiristas negros. Assistirão mais uma vez a que as suas histórias sejam contadas por profissionais brancos, participarão de movimentos e manifestações que não os contemplam, tentarão ser parte de associações empresariais, associações individuais e sindicatos, sem que isso se traduza na aprovação dos seus projetos ou no aumento de recursos das suas produtoras. O seu esforço, a sua história, as suas vidas, o seu empenho e dedicação, em vez de contribuírem para a sua visibilidade e promoção, contribuirão para aumentar o abismo que os separa dos profissionais brancos no audiovisual brasileiro.

Mas a direção de Padilha constituirá ainda maior humilhação para toda a população negra brasileira – e não esqueçamos, a maioria da população brasileira – que mais uma vez verá a sua história e as suas lutas contadas por brancos, ou seja, por aqueles e aquelas que, se não participam ativamente na opressão das populações negras, pelo menos se beneficiam dela. Será mais um caso da história dos vencidos contada pelos vencedores da história.

A quarta ilação, de caráter mais político, é que, sempre que incorrem em iniciativas objetivamente racistas, os ativistas de esquerda contribuem para aprofundar a convicção comum entre a população negra de que a esquerda e a direita comungam do mesmo preconceito racista. A filósofa Sueli Carneiro afirma em modo polêmico: “Eu, entre esquerda e direita, continuo sendo preta”. Nas periferias brasileiras é comum ouvir-se o seguinte comentário sobre as diferenças entre esquerda e direita: “muda quem bate, não quem apanha”. E a quem se espante do pouco apego à democracia por parte da população negra e pobre convirá perguntar se se dão conta de que muita dessa população vive numa sociedade democrática mas não tem condições para viver democraticamente, ou seja, para sentir o valor da democracia na pele do seu quotidiano.

Quando, depois do ataque terrorista às Torres Gêmeas de Nova Iorque, perguntaram a BB King, o grande cantor de blues negro norte-americano o que ele pensava do fato de daí em diante a sociedade americana ter de viver com a ameaça constante do terrorismo, ele respondeu com uma verdade de cortante lucidez: “mas eu, como negro, sempre vivi debaixo de terror”.

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