Por Antonio Martins, no site Outras Palavras:
O que mais Jair Bolsonaro fará para chamar atenção e provocar um impasse? Ontem, ele cometeu, em poucas horas, uma sequência de crimes de responsabilidade. Compareceu a uma manifestação contra a o Congresso e o STF. Desafiou os presidentes do Legislativo, citando-os pelo nome. Em meio à sombra da covid-19, e ainda sob suspeita de ser portador do coronavírus, abraçou-se com dezenas de pessoas – a maior parte, idosos, grupo de risco especialmente frágil. Quando o país mais precisa de medidas de distanciamento social, e está prestes a viver o colapso do sistema hospitalar, voltou a minimizar os efeitos da pandemia e a propor que sejam liberadas aglomerações, inclusive em estádios de futebol.
Quando a esmola é muita, o santo desconfia, reza o ditado. Dois desastres iminentes, provocados diretamente pelas políticas do capitão, assombram-no – e ele precisa desviar os olhos da opinião pública. O primeiro é a crise do coronavírus. O governo brasileiro está, junto com o dos Estados Unidos, entre os países que mais negligenciaram a adoção de medidas contra a pandemia. A atitude não decorre apenas dos ataques movidos contra o SUS, desde 2016.
A extrema-direita global apostou que o vírus era uma conspiração da esquerda para frear seu ascenso – e, por isso, refluiria assim que desmascaras. Trump e Bolsonaro vocalizaram abertamente esta ideia. O brasileiro afirmou ontem: “Em 2009, teve crise semelhante. Mas, aqui no Brasil, era o PT que estava no poder e, nos Estados Unidos, eram os Democratas, e a reação não foi nem sequer perto do que está acontecendo no mundo todo”. Além disso, segundo o jornalista Tales Faria, o capitão convenceu-se de que a pandemia é um plano do governo chinês para mergulhar o Ocidente em crise, adquirir suas empresas e derrubar os preços dos produtos que Pequim importa.
Influenciado por esta crença, é compreensível que o ministério da Saúde tenha deixado de adotar as providências que teriam amenizado os efeitos da doença. Contrariando tudo o que a experiência dos países já atingidos ensinou, o número de kits para testar a presença do vírus produzidos é ínfimo (embora a Fundação Oswaldo Cruz os tenha desenvolvido em tempo recorde). Não foram adotadas medidas de distanciamento social. As UTIs, essenciais para salvar vidas em cerca de 5% dos casos, são poucas e estão quase totalmente ocupadas. Dois meses se passaram e não foram adquiridos mais respiradores artificiais – o equipamento crucial para os pacientes que terão complicações pulmonares graves. Agora, a paralisia do governo armou a tempestade perfeita. Como a população continua a circular quase como antes, o número de contágios pode crescer exponencialmente, como na Itália. E os hospitais não terão como atender centenas ou milhares de contagiados graves, que dependeriam deles para sobreviver à doença.
O outro espectro que ronda Bolsonaro é a crise financeira e econômica. Em pouco mais de 20 dias, as empresas cotadas na bolsa de São Paulo perderam, em média, 40% de seu valor de mercado. Mas este número, embora impressionante, é a superfície de um problema muito maior. Há fuga maciça de dólares de todos os “mercados emergentes” – mas ela é especialmente acentuada no Brasil. O economista José Álvaro de Lima Cardoso, do Dieese, calcula que estejam, saindo, por dia, 900 milhões de reais só da Bovespa. O dois gráficos abaixo, produzidos pelo economista Jonathan Fortun, do Institute of International Finance e recolhidos por Artur Araújo, mostram: a) a fuga de capitais dos países “emergentes” é, agora (linha vermelha, no primeiro gráfico), muito mais aguda que na própria crise de 2008 (linha azul) e de turbulências anteriores; b) a fuga de dólares no Brasil (linha azul no segundo gráfico) é incomparavelmente maior que em outros países, como o México (linha verde) e Colômbia (vermelha).
Dois fatores devem pesar para esta timidez extrema. Primeiro, a cegueira ideológica de Guedes, que insiste, em meio à tempestade, em contrarreformas que golpeiam ainda mais a capacidade de agir do Estado. O economista André Lara Rezende notou que esta atitude “beira um surto psicótico”. Segundo, o fato de Guedes provavelmente não ter bala na agulha. As medidas de “austeridade” adotadas nos últimos anos rebaixaram drasticamente a arrecadação do Estado. A descapitalização dos bancos públicos e a redução forçada da capacidade de investimento da Petrobras, perseguidas avidamente pelo ministro, bloquearam outro possível instrumento com que contaria o governo.
*****
As ações de Bolsonaro são, em tese, mais que suficientes para justificar um pedido de impeachment. Fazê-lo, agora, seria tolice. Permitiria ao presidente posar de vítima, desviar o fogo, fugir de sua responsabilidade real. Talvez seja este, de fato, seu desejo, ao lançar provocações tipicamente infantis.
Textos anteriores têm insistido em que a hora é de propor alternativas reais para a crise – tanto emergenciais, para reduzir o custo humano da pandemia, nas próximas semanas, quanto de médio e longo prazos, para sair do labirinto. Nas últimas semanas, setores da esquerda institucional ensaiaram algumas das proposições, embora sejam ainda tímidas e não tenham merecido de seus autores a difusão devida. É um primeiro passo. Nos próximos dias, o próprio desenrolar da crise clareará o caminho para outras propostas e ações. Outras Palavras continuará a suscitá-las e debatê-las.
O que mais Jair Bolsonaro fará para chamar atenção e provocar um impasse? Ontem, ele cometeu, em poucas horas, uma sequência de crimes de responsabilidade. Compareceu a uma manifestação contra a o Congresso e o STF. Desafiou os presidentes do Legislativo, citando-os pelo nome. Em meio à sombra da covid-19, e ainda sob suspeita de ser portador do coronavírus, abraçou-se com dezenas de pessoas – a maior parte, idosos, grupo de risco especialmente frágil. Quando o país mais precisa de medidas de distanciamento social, e está prestes a viver o colapso do sistema hospitalar, voltou a minimizar os efeitos da pandemia e a propor que sejam liberadas aglomerações, inclusive em estádios de futebol.
Quando a esmola é muita, o santo desconfia, reza o ditado. Dois desastres iminentes, provocados diretamente pelas políticas do capitão, assombram-no – e ele precisa desviar os olhos da opinião pública. O primeiro é a crise do coronavírus. O governo brasileiro está, junto com o dos Estados Unidos, entre os países que mais negligenciaram a adoção de medidas contra a pandemia. A atitude não decorre apenas dos ataques movidos contra o SUS, desde 2016.
A extrema-direita global apostou que o vírus era uma conspiração da esquerda para frear seu ascenso – e, por isso, refluiria assim que desmascaras. Trump e Bolsonaro vocalizaram abertamente esta ideia. O brasileiro afirmou ontem: “Em 2009, teve crise semelhante. Mas, aqui no Brasil, era o PT que estava no poder e, nos Estados Unidos, eram os Democratas, e a reação não foi nem sequer perto do que está acontecendo no mundo todo”. Além disso, segundo o jornalista Tales Faria, o capitão convenceu-se de que a pandemia é um plano do governo chinês para mergulhar o Ocidente em crise, adquirir suas empresas e derrubar os preços dos produtos que Pequim importa.
Influenciado por esta crença, é compreensível que o ministério da Saúde tenha deixado de adotar as providências que teriam amenizado os efeitos da doença. Contrariando tudo o que a experiência dos países já atingidos ensinou, o número de kits para testar a presença do vírus produzidos é ínfimo (embora a Fundação Oswaldo Cruz os tenha desenvolvido em tempo recorde). Não foram adotadas medidas de distanciamento social. As UTIs, essenciais para salvar vidas em cerca de 5% dos casos, são poucas e estão quase totalmente ocupadas. Dois meses se passaram e não foram adquiridos mais respiradores artificiais – o equipamento crucial para os pacientes que terão complicações pulmonares graves. Agora, a paralisia do governo armou a tempestade perfeita. Como a população continua a circular quase como antes, o número de contágios pode crescer exponencialmente, como na Itália. E os hospitais não terão como atender centenas ou milhares de contagiados graves, que dependeriam deles para sobreviver à doença.
O outro espectro que ronda Bolsonaro é a crise financeira e econômica. Em pouco mais de 20 dias, as empresas cotadas na bolsa de São Paulo perderam, em média, 40% de seu valor de mercado. Mas este número, embora impressionante, é a superfície de um problema muito maior. Há fuga maciça de dólares de todos os “mercados emergentes” – mas ela é especialmente acentuada no Brasil. O economista José Álvaro de Lima Cardoso, do Dieese, calcula que estejam, saindo, por dia, 900 milhões de reais só da Bovespa. O dois gráficos abaixo, produzidos pelo economista Jonathan Fortun, do Institute of International Finance e recolhidos por Artur Araújo, mostram: a) a fuga de capitais dos países “emergentes” é, agora (linha vermelha, no primeiro gráfico), muito mais aguda que na própria crise de 2008 (linha azul) e de turbulências anteriores; b) a fuga de dólares no Brasil (linha azul no segundo gráfico) é incomparavelmente maior que em outros países, como o México (linha verde) e Colômbia (vermelha).
Fuga de capitais dos mercados emergentes (EM), em distintos momentos. Em vermelho, a crise atual, em curso. Em azul, a grande depressão de 2008 |
Corrida contra moedas dos países “emergentes”. Em azul, a fuga do real — muito superior à sofrida pelo peso mexicano (verde) e peso colombiano (vermelho) |
Mas a fuga de dólares não é sequer o problema mais grave de Bolsonaro&Guedes. A economia real sofrerá muito, em todos os países, com a crise. Nos que adotaram políticas neoliberais, será muito mais difícil combatê-la que na China, por exemplo. Mas entre dezenas de casos, o Brasil chama atenção pelo raquitismo das medidas adotadas pelo governo. Tirando a mera antecipação do 13% dos aposentados e a decisão (ainda a concretizar…) de reduzir parcialmente a fila do Bolsa-Família e o adiamento de alguns tributos, o ministro não anunciou, até o momento, nenhuma medida real por parte do Estado para socorrer a economia. O “pacote” anunciado nesta segunda (16/3) chega a incluir, de contrabando, caprichos vingativos - como um novo ataque ao Sistema S. Quase todas as suas “ações” são autorizar renegociações de dívidas por parte dos bancos (sabemos em que leoninas condições…).
Dois fatores devem pesar para esta timidez extrema. Primeiro, a cegueira ideológica de Guedes, que insiste, em meio à tempestade, em contrarreformas que golpeiam ainda mais a capacidade de agir do Estado. O economista André Lara Rezende notou que esta atitude “beira um surto psicótico”. Segundo, o fato de Guedes provavelmente não ter bala na agulha. As medidas de “austeridade” adotadas nos últimos anos rebaixaram drasticamente a arrecadação do Estado. A descapitalização dos bancos públicos e a redução forçada da capacidade de investimento da Petrobras, perseguidas avidamente pelo ministro, bloquearam outro possível instrumento com que contaria o governo.
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As ações de Bolsonaro são, em tese, mais que suficientes para justificar um pedido de impeachment. Fazê-lo, agora, seria tolice. Permitiria ao presidente posar de vítima, desviar o fogo, fugir de sua responsabilidade real. Talvez seja este, de fato, seu desejo, ao lançar provocações tipicamente infantis.
Textos anteriores têm insistido em que a hora é de propor alternativas reais para a crise – tanto emergenciais, para reduzir o custo humano da pandemia, nas próximas semanas, quanto de médio e longo prazos, para sair do labirinto. Nas últimas semanas, setores da esquerda institucional ensaiaram algumas das proposições, embora sejam ainda tímidas e não tenham merecido de seus autores a difusão devida. É um primeiro passo. Nos próximos dias, o próprio desenrolar da crise clareará o caminho para outras propostas e ações. Outras Palavras continuará a suscitá-las e debatê-las.
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