Por Roberto Amaral, em seu blog:
Por refletir uma apreensão e um temor dominantes em nossos tempos, volta à ordem do dia a discussão em torno da iminência de um golpe de Estado. Questão muito viva em toda a história republicana, angustiante nos anos 50/60 de século passado, é retomada pela crônica política mais acentuadamente a partir de 2016; é o espectro que assombra grande parte dos que se dedicam a interpretar o bolsonarismo. Principalmente porque a iminência de golpe de Estado, entre nós, está sempre associada a intervenção militar e rupturas constitucionais.
É o que todos temem.
Não há modelo canônico de golpe de Estado. A literatura clássica registra as mais variegadas formas, desde o golpe de César (49 a.C.) ceifando a república romana, ao golpe de Cromwell, ferindo de morte a monarquia inglesa e implantado uma ditadura republicana. Aos que desejarem ir muito a fundo basta reler Marx, de especial seu 18 brumário, ou o O Príncipe de Maquiavel. Ou, ainda, para quem gosta de associar história e beleza, deleitar-se com Shakespeare e suas tragédias.
A moderna ciência política, que o distingue do putsch e da insurreição, simplesmente define golpe de Estado como “tomada do poder por meios ilegais”, embora admita que seu protagonismo tanto pode ser obra de um governo (ou de parte dele) quanto de uma assembleia. Será sempre, porém, um ato de força, em regra em conflito com a soberania popular.
O golpe de Estado não implica, necessariamente, violência física, embora a compreenda; nem mesmo importa em ruptura da ordem vigente. Ouso dizer que o golpe de Estado pode operar-se segundo o figurino e as filigranas da rede institucional. No Brasil, por exemplo, o apelo ao art. 142 da Constituição de 1988 (a intervenção para garantir a lei e a ordem) é uma porta aberta da legalidade ao que as forças armadas desejarem.
O objeto do golpe, em tese, tanto pode ser a tomada do poder (o que pressupõe a derrubada da ordem ante, como em 1964), quanto, simplesmente, o aprofundamento da ordem governante, como foi o golpe de Vargas em 1937, e os sempre lembrados golpes de Mussolini e Hitler implantando, pela via congressual, o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha. O golpe de Estado também pode ser uma via de transição (portanto, uma ruptura política sem ruptura ou violência) da ordem democrática para a autoritária, e desta para o absolutismo, o que acaba de ocorrer, por exemplo na Hungria, quando seu parlamento (a pretexto de fortalecer o executivo no enfrentamento da pandemia) transfere para o presidente da república poderes ditatoriais. Em qualquer hipótese, todavia, o golpe pressupõe a utilização de uma força capaz de alterar o status quo. Por isso está sempre, entre nós, associado às forças armadas.
O golpe militar que nos deu a república em 1889, ato de força, foi, de fato, uma tomada de poder por meio ilegal, e dela resultou, com a ruptura da ordem constitucional monárquica, a implantação de um novo regime, o republicano, que chega aos nossos dias aos trancos e barrancos. Já o golpe militar de 1937, levado a cabo dentro do governo e pelas forças dominantes no governo, não objetivava qualquer sorte de alteração do mando ou do interesse de classe hegemônico; ao romper com a ordem constitucional democrática, visava a implantar uma nova ordem, a ditadura do Estado Novo, anunciadora de uma nova ordem legal, auto promulgada. Em 1945 os mesmos generais de 1937 romperiam com a ordem legal (legal, ainda que decorrente de uma constituição outorgada) vigente para derrogar a ditadura que haviam instalado e sustentado e criar as condições políticas propiciadoras da reconstitucionalização de 1946, inaugurando a chamada Terceira República, juncada de acidentes, insurreições e outros golpes militares.
O golpe de Estado em que se converteu a deposição de fato de Getúlio Vargas em agosto de 1954 (formalmente o presidente se licenciaria), frustrada com seu suicídio, efetivou-se sem quebra da ordem constitucional, embora, apeando o varguismo, elevasse ao poder as forças e as políticas derrotadas nas eleições de 1950. A questão da legitimidade não se colocava, nem se coloca, porque, na ordem política, o direito é a força que se impõe sobre outra força.
O ano de 1955 registra, no decurso de poucas horas, uma tentativa de golpe civil-militar e um golpe militar efetivado pela mãos do Congresso, em nome da defesa da ordem constitucional. À tentativa de golpe de Estado que, com apoio do próprio presidente da República (Café filho) e do presidente da Câmara dos Deputados (Carlos Luz), visava a impedir a posse dos candidatos legalmente eleitos no último pleito (Juscelino Kubitscheck e João Goulart), operou-se um golpe militar de fato, do qual resultou a deposição do presidente e do vice-presidente em exercício e a posse, na presidência da República, do vice-presidente do Senado (Nereu Ramos), como mandava a constituição. O chamado “contragolpe” de Lott-Denys (respectivamente, ministro da Guerra e comandante do primeiro exército, sediado no Rio de Janeiro), todavia, foi levado a cabo pelo Congresso ao decretar a incapacidade de o presidente exercer o cargo, e a posteriori foi sancionado pelo STF.
Logo adiante, em 1961, o Congresso novamente foi chamado a formalizar um golpe de Estado, outra vez processado dentro da ordem constitucional, quando, seguindo as regras de seu regimento, aprovou a Emenda Parlamentarista de governo, condição imposta pelos militares rebelados para consentir com a posse do vice-presidente João Goulart. Este golpe, todavia, embora formalmente constitucional, isto é, levado a cabo segundo as regras do sistema legal vigente, mudava o regime consagrado pelos constituintes de 1946 e surrupiava direitos do vice-presidente, eleito sob o regime presidencialista. O golpe de 1964, de que derivou a ditadura, é o de mais fácil caracterização, pois reúne todos os condimentos do golpe de Estado clássico: levante militar, ruptura violenta da ordem constitucional, imposição de novo ordenamento jurídico, meios ilegais etc. Mas seu ponto de partida, uma vez mais, foi um ato formal (isto é, sem a necessidade de apego à realidade) do Congresso Nacional: a declaração, pelo presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, da vacância da presidência da República. O mandarinato militar que se segue, porém, registraria, em várias oportunidades, o que se convencionou denominar de “golpe dentro do golpe”, e três são os mais notáveis, 1) prorrogação do mandato do general Castello Branco; 2) a edição do Ato Institucional nº II, que suprimiu as eleições diretas (1965); e 3) a edição do ato institucional n.5 (1968), a implantação da “ditadura descarada”. Todos esses atos importavam em alterações da ordem jurídica da ditadura, para assegurar sua continuidade.
Os golpes de Estado, assim, podem se dar dentro da ordem constitucional-legal, como essa sequência de auto-golpes da ditadura militar, e mesmo podem se dar sem mudança da governança, ou de sua hegemonia, de que é exemplo o golpe Vargas em 1937, operado pelas forças armadas contra a constituição de 1934, com o fito de transforar o presidente eleito em ditador.
Estes fatos não estão, como podem aparentar, tão distantes da hora presente.
Em 2016 tivemos o golpe parlamentar constitucional levado a cabo pelo Congresso Nacional com a sanção homologatória do STF, de que resultou a interrupção do mandato democrático e legal da presidente Dilma Rousseff e a implantação da ordem político-social derrotada nas eleições de 2014 (e, antes, derrotada nas eleições de 2002, 2006 e 2010). Na sua execução, do golpe, foram respeitados os ritos formais impostos pela lei (nada obstante interpretações heterodoxas) e pelos regimentos da câmara, do senado federal e do STF. Nada obstante, não deixou de ser um golpe de Estado.
Desse golpe resultou a instauração de uma nova ordem política que, inaugurada com a posse do vice constitucional, Michel Temer, se consolidaria com a eleição e posse do capitão Bolsonaro (movimentos de um mesmo processo), inaugurando a segunda fase disso que designo como “novo regime”, caraterizado pela preeminência militar e aprofundamento do autoritarismo político de par com um ultraliberalismo econômico.
A ascendência militar, no atual regime, não se mede (apenas) pela presença de cerca de 3.500 fardados em postos de primeiro, segundo e terceiro escalões do poder executivo. Mede-se pelo controle doutrinário – sua concepção de povo, nação e país – que remonta às anacrônicas formulações da Escola Superior de Guerra, precisamente aquelas ditadas ainda pelos interesses da guerra fria e que conheceram seu apogeu no governo do general Castello Branco, o primeiro do mandarinato militar. Mas essa ascendência se mede, principalmente, pela sustentação ao projeto de poder do bolsonarismo. Porque não há golpe de estado sem forças armadas (a história recente registra a frustração do auto golpe intentado por Jânio Quadros), e muito menos há ditadura sem sustentação militar (como nos lembra a queda de Vargas em 1945). O golpe parlamentar de 2016 não não teria fluido (apesar dos interesses da casa grande) sem a aquiescência do militares, que passam a supervisionar o regime, num crescendo de participação, a partir daí.
O bolsonarismo é a expressão ideológica do novo regime e pode sobreviver, no governo ou fora dele, independentemente do capitão.
Esse novo regime, um experimento dos ideais militares de 1964 revisto para tempos ainda de democracia, deve ser visto como um projeto em movimento; a cada dia, ou a cada crise, pode engendrar alterações internas, ou golpes dentro do grande golpe, sem alterar sua substância protofascista e sem, necessariamente, fugir dos trilhos do legalismo formal, mas refazendo-o.
Toda previsão é precária, e a história não se cansa de desmentir as pitonisas. Não há dúvida, porém, de que o maior estreitamento político, com o qual sonha o capitão e seus tutores estrelados (vivemos sob esse regime há quatro anos), pode operar-se mediante uma ruptura clássica; mas, considerando-se os dados de hoje, o mais provável é que o esperado e temido “golpe” se opere dentro das chamadas “vias legais”, revistas e reescritas pelo sistema, para que se adaptem às novas necessidades da conservação do poder, consoante os interesses do campo hegemônico. Para tal, não faltarão à classe dominante as soluções jurídicas que os constitucionalistas da casa grande saberão engendrar. A questão crucial, para o sistema (que compreende as forças armadas mas a elas não se restringe pois compreende, igualmente, entre outros sujeitos, o “mercado” e o capital financeiro nacional e internacional etc.), não é o capitão, uma contingência descartável, mas a continuidade do projeto que o bolsonarismo representa.
A palavra, ao final, estará com as forças armadas, como sempre esteve, mas desta feita mais do que nunca, em face da fragilidade dos partidos e a anomia do movimento popular. O que conta, então? Intervir nas condições objetivas e subjetivas de alteração do quadro político-social. O mais será, sempre, filigrana, ou um arranjo (mais ou menos ortodoxo, à luz da legislação) de que o nosso povo será, no máximo, espectador.
Nunca como agora foram tão fundamentais nossa unidade e nossa organização.
Por refletir uma apreensão e um temor dominantes em nossos tempos, volta à ordem do dia a discussão em torno da iminência de um golpe de Estado. Questão muito viva em toda a história republicana, angustiante nos anos 50/60 de século passado, é retomada pela crônica política mais acentuadamente a partir de 2016; é o espectro que assombra grande parte dos que se dedicam a interpretar o bolsonarismo. Principalmente porque a iminência de golpe de Estado, entre nós, está sempre associada a intervenção militar e rupturas constitucionais.
É o que todos temem.
Não há modelo canônico de golpe de Estado. A literatura clássica registra as mais variegadas formas, desde o golpe de César (49 a.C.) ceifando a república romana, ao golpe de Cromwell, ferindo de morte a monarquia inglesa e implantado uma ditadura republicana. Aos que desejarem ir muito a fundo basta reler Marx, de especial seu 18 brumário, ou o O Príncipe de Maquiavel. Ou, ainda, para quem gosta de associar história e beleza, deleitar-se com Shakespeare e suas tragédias.
A moderna ciência política, que o distingue do putsch e da insurreição, simplesmente define golpe de Estado como “tomada do poder por meios ilegais”, embora admita que seu protagonismo tanto pode ser obra de um governo (ou de parte dele) quanto de uma assembleia. Será sempre, porém, um ato de força, em regra em conflito com a soberania popular.
O golpe de Estado não implica, necessariamente, violência física, embora a compreenda; nem mesmo importa em ruptura da ordem vigente. Ouso dizer que o golpe de Estado pode operar-se segundo o figurino e as filigranas da rede institucional. No Brasil, por exemplo, o apelo ao art. 142 da Constituição de 1988 (a intervenção para garantir a lei e a ordem) é uma porta aberta da legalidade ao que as forças armadas desejarem.
O objeto do golpe, em tese, tanto pode ser a tomada do poder (o que pressupõe a derrubada da ordem ante, como em 1964), quanto, simplesmente, o aprofundamento da ordem governante, como foi o golpe de Vargas em 1937, e os sempre lembrados golpes de Mussolini e Hitler implantando, pela via congressual, o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha. O golpe de Estado também pode ser uma via de transição (portanto, uma ruptura política sem ruptura ou violência) da ordem democrática para a autoritária, e desta para o absolutismo, o que acaba de ocorrer, por exemplo na Hungria, quando seu parlamento (a pretexto de fortalecer o executivo no enfrentamento da pandemia) transfere para o presidente da república poderes ditatoriais. Em qualquer hipótese, todavia, o golpe pressupõe a utilização de uma força capaz de alterar o status quo. Por isso está sempre, entre nós, associado às forças armadas.
O golpe militar que nos deu a república em 1889, ato de força, foi, de fato, uma tomada de poder por meio ilegal, e dela resultou, com a ruptura da ordem constitucional monárquica, a implantação de um novo regime, o republicano, que chega aos nossos dias aos trancos e barrancos. Já o golpe militar de 1937, levado a cabo dentro do governo e pelas forças dominantes no governo, não objetivava qualquer sorte de alteração do mando ou do interesse de classe hegemônico; ao romper com a ordem constitucional democrática, visava a implantar uma nova ordem, a ditadura do Estado Novo, anunciadora de uma nova ordem legal, auto promulgada. Em 1945 os mesmos generais de 1937 romperiam com a ordem legal (legal, ainda que decorrente de uma constituição outorgada) vigente para derrogar a ditadura que haviam instalado e sustentado e criar as condições políticas propiciadoras da reconstitucionalização de 1946, inaugurando a chamada Terceira República, juncada de acidentes, insurreições e outros golpes militares.
O golpe de Estado em que se converteu a deposição de fato de Getúlio Vargas em agosto de 1954 (formalmente o presidente se licenciaria), frustrada com seu suicídio, efetivou-se sem quebra da ordem constitucional, embora, apeando o varguismo, elevasse ao poder as forças e as políticas derrotadas nas eleições de 1950. A questão da legitimidade não se colocava, nem se coloca, porque, na ordem política, o direito é a força que se impõe sobre outra força.
O ano de 1955 registra, no decurso de poucas horas, uma tentativa de golpe civil-militar e um golpe militar efetivado pela mãos do Congresso, em nome da defesa da ordem constitucional. À tentativa de golpe de Estado que, com apoio do próprio presidente da República (Café filho) e do presidente da Câmara dos Deputados (Carlos Luz), visava a impedir a posse dos candidatos legalmente eleitos no último pleito (Juscelino Kubitscheck e João Goulart), operou-se um golpe militar de fato, do qual resultou a deposição do presidente e do vice-presidente em exercício e a posse, na presidência da República, do vice-presidente do Senado (Nereu Ramos), como mandava a constituição. O chamado “contragolpe” de Lott-Denys (respectivamente, ministro da Guerra e comandante do primeiro exército, sediado no Rio de Janeiro), todavia, foi levado a cabo pelo Congresso ao decretar a incapacidade de o presidente exercer o cargo, e a posteriori foi sancionado pelo STF.
Logo adiante, em 1961, o Congresso novamente foi chamado a formalizar um golpe de Estado, outra vez processado dentro da ordem constitucional, quando, seguindo as regras de seu regimento, aprovou a Emenda Parlamentarista de governo, condição imposta pelos militares rebelados para consentir com a posse do vice-presidente João Goulart. Este golpe, todavia, embora formalmente constitucional, isto é, levado a cabo segundo as regras do sistema legal vigente, mudava o regime consagrado pelos constituintes de 1946 e surrupiava direitos do vice-presidente, eleito sob o regime presidencialista. O golpe de 1964, de que derivou a ditadura, é o de mais fácil caracterização, pois reúne todos os condimentos do golpe de Estado clássico: levante militar, ruptura violenta da ordem constitucional, imposição de novo ordenamento jurídico, meios ilegais etc. Mas seu ponto de partida, uma vez mais, foi um ato formal (isto é, sem a necessidade de apego à realidade) do Congresso Nacional: a declaração, pelo presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, da vacância da presidência da República. O mandarinato militar que se segue, porém, registraria, em várias oportunidades, o que se convencionou denominar de “golpe dentro do golpe”, e três são os mais notáveis, 1) prorrogação do mandato do general Castello Branco; 2) a edição do Ato Institucional nº II, que suprimiu as eleições diretas (1965); e 3) a edição do ato institucional n.5 (1968), a implantação da “ditadura descarada”. Todos esses atos importavam em alterações da ordem jurídica da ditadura, para assegurar sua continuidade.
Os golpes de Estado, assim, podem se dar dentro da ordem constitucional-legal, como essa sequência de auto-golpes da ditadura militar, e mesmo podem se dar sem mudança da governança, ou de sua hegemonia, de que é exemplo o golpe Vargas em 1937, operado pelas forças armadas contra a constituição de 1934, com o fito de transforar o presidente eleito em ditador.
Estes fatos não estão, como podem aparentar, tão distantes da hora presente.
Em 2016 tivemos o golpe parlamentar constitucional levado a cabo pelo Congresso Nacional com a sanção homologatória do STF, de que resultou a interrupção do mandato democrático e legal da presidente Dilma Rousseff e a implantação da ordem político-social derrotada nas eleições de 2014 (e, antes, derrotada nas eleições de 2002, 2006 e 2010). Na sua execução, do golpe, foram respeitados os ritos formais impostos pela lei (nada obstante interpretações heterodoxas) e pelos regimentos da câmara, do senado federal e do STF. Nada obstante, não deixou de ser um golpe de Estado.
Desse golpe resultou a instauração de uma nova ordem política que, inaugurada com a posse do vice constitucional, Michel Temer, se consolidaria com a eleição e posse do capitão Bolsonaro (movimentos de um mesmo processo), inaugurando a segunda fase disso que designo como “novo regime”, caraterizado pela preeminência militar e aprofundamento do autoritarismo político de par com um ultraliberalismo econômico.
A ascendência militar, no atual regime, não se mede (apenas) pela presença de cerca de 3.500 fardados em postos de primeiro, segundo e terceiro escalões do poder executivo. Mede-se pelo controle doutrinário – sua concepção de povo, nação e país – que remonta às anacrônicas formulações da Escola Superior de Guerra, precisamente aquelas ditadas ainda pelos interesses da guerra fria e que conheceram seu apogeu no governo do general Castello Branco, o primeiro do mandarinato militar. Mas essa ascendência se mede, principalmente, pela sustentação ao projeto de poder do bolsonarismo. Porque não há golpe de estado sem forças armadas (a história recente registra a frustração do auto golpe intentado por Jânio Quadros), e muito menos há ditadura sem sustentação militar (como nos lembra a queda de Vargas em 1945). O golpe parlamentar de 2016 não não teria fluido (apesar dos interesses da casa grande) sem a aquiescência do militares, que passam a supervisionar o regime, num crescendo de participação, a partir daí.
O bolsonarismo é a expressão ideológica do novo regime e pode sobreviver, no governo ou fora dele, independentemente do capitão.
Esse novo regime, um experimento dos ideais militares de 1964 revisto para tempos ainda de democracia, deve ser visto como um projeto em movimento; a cada dia, ou a cada crise, pode engendrar alterações internas, ou golpes dentro do grande golpe, sem alterar sua substância protofascista e sem, necessariamente, fugir dos trilhos do legalismo formal, mas refazendo-o.
Toda previsão é precária, e a história não se cansa de desmentir as pitonisas. Não há dúvida, porém, de que o maior estreitamento político, com o qual sonha o capitão e seus tutores estrelados (vivemos sob esse regime há quatro anos), pode operar-se mediante uma ruptura clássica; mas, considerando-se os dados de hoje, o mais provável é que o esperado e temido “golpe” se opere dentro das chamadas “vias legais”, revistas e reescritas pelo sistema, para que se adaptem às novas necessidades da conservação do poder, consoante os interesses do campo hegemônico. Para tal, não faltarão à classe dominante as soluções jurídicas que os constitucionalistas da casa grande saberão engendrar. A questão crucial, para o sistema (que compreende as forças armadas mas a elas não se restringe pois compreende, igualmente, entre outros sujeitos, o “mercado” e o capital financeiro nacional e internacional etc.), não é o capitão, uma contingência descartável, mas a continuidade do projeto que o bolsonarismo representa.
A palavra, ao final, estará com as forças armadas, como sempre esteve, mas desta feita mais do que nunca, em face da fragilidade dos partidos e a anomia do movimento popular. O que conta, então? Intervir nas condições objetivas e subjetivas de alteração do quadro político-social. O mais será, sempre, filigrana, ou um arranjo (mais ou menos ortodoxo, à luz da legislação) de que o nosso povo será, no máximo, espectador.
Nunca como agora foram tão fundamentais nossa unidade e nossa organização.
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