Por Valério Arcary, no jornal Brasil de Fato:
Os bons vinhos não podem ser bebidos assim que se abre a garrafa. Devem ter tempo para "respirar". A oxidação faz bem. A oxigenação das ideias demanda, também, tempo para que elas sejam postas à prova pela evolução dos acontecimentos.
Um debate dilacera os nervos da esquerda brasileira. Bolsonaro ainda está em uma posição ofensiva, como antes da pandemia, ou aconteceu uma inflexão nas últimas oito semanas, e foi colocado na defensiva? Identificar a dinâmica da oscilação da relação política de forças é decisivo para a tática. Mas podemos ter um pouco de paciência conosco, uns com os outros. Porque, por enquanto, tudo sugere que há um delicado impasse na conjuntura política.
Nem Bolsonaro pode partir da agitação para a preparação de um autogolpe, mesmo na forma "disfarçada", institucionalmente, de estado de sítio, nem a fração burguesa que já está posicionada, criticamente, vai se precipitar em tentar derrubá-lo. A esquerda pode acumular posições, mas não tem capacidade de incidir com sua força social de choque em condições de quarentena. A pandemia vai chegar ao auge em poucas semanas. Só depois o impasse poderá se resolver.
Esta discussão sobre a evolução da conjuntura nos coloca diante do desafio de uma caracterização de quem é Sergio Moro e o significado de sua demissão. Trabalhar com base em caracterizações é muito importante. É a única foram de não nos deixarmos arrastar pelas pressões do momento. O que é a caracterização de uma liderança política? É uma definição do lugar social e político que ela ocupa. É uma bússola de classe.
1. Duas hipóteses, fundamentalmente, foram esgrimidas na esquerda brasileira nos últimos anos:
(a) a primeira é que ele seria uma expressão de uma nova geração de profissionais de origem na classe média, mais técnica, moderna, republicana, profissional, independente politicamente, com inclinações liberais, em radicalização democrática e, para alguns, uma espécie de “tenentismo” civil anticorrupção progressivo;
(b) a segunda é que seria um agente reacionário a serviço do projeto político golpista de deslocamento do governo de Dilma Rousseff (PT), articulado com o imperialismo norte-americano.
Estas duas caracterizações sustentaram diferentes posicionamentos diante da operação Lava Jato e, portanto, do impeachment. A primeira, com variações de grau, considerou Sergio Moro expressão de uma ala mais jovem da burocracia do Estado: juízes, advogados, juristas, e procuradores que, imbuídos de valores moralizantes, se colocavam acima das classes e, por isso, cumpriam um papel independente.
Depois que Moro entrou no governo de extrema-direita, abriu-se um período de silêncio entre os defensores da hipótese da “independência”. Claro, a tese caiu por terra. Mas agora, a partir da ruptura de Moro com Bolsonaro, o tema retorna. Acontece que sem a operação LavaJato o impeachment não teria sido possível. Sem impeachment, toda a ofensiva reacionária que levou à maior acumulação de derrotas sociais e políticas desde o fim da ditadura não teria acontecido, e não estaríamos na situação defensiva atual. Portanto, a compreensão do papel de Sergio Moro como liderança é chave.
2. Infelizmente essa campanha ganhou a maioria da população e produziu imensa confusão entre os trabalhadores, e até mesmo da própria esquerda. A popularidade de Moro está relacionada com um giro político da maioria da burguesia brasileira para a oposição a Dilma Rousseff, e uma estratégia do imperialismo de apoio a golpes institucionais como em Honduras, Paraguai e mais recentemente, na Bolívia.
A Lava Jato era um instrumento da burguesia brasileira, associada ao imperialismo norte-americano, lançado após a crise de 2008 que, utilizando a bandeira do combate à corrupção, pretendia:
(a) barrar os desvios de verbas públicas (calafetar os buracos, fechar as torneiras) com o fim de mantê-los no caixa, reforçando o superávit primário, e garantindo um ajuste fiscal;
(b) eliminar a concorrência das burguesias nacionais que nasceram ou cresceram sob os governos que ascenderam na América Latina a partir da viragem do século;
(c) reposicionar o Brasil no mercado mundial favorecendo a atração de capitais estrangeiros para sair da longa estagnação;
(d) derrubar os governos que não tinham um alinhamento incondicional com os EUA, como os governos liderados pelo PT;
(e) e, por fim, espoliar as riquezas naturais dos países retirando as mediações que dificultavam sua entrega.
3. A redefinição da estratégia de Moro frente ao governo Bolsonaro teve início com o episódio envolvendo as denúncias do Intercept que o colocou na condição de juiz suspeito. Isso debilitou qualitativamente a função que vinha desempenhando. As consequências desse enfraquecimento foram gravíssimas, já que podem jogar por terra a operação Lava Jato, ou seja, o instrumento que abriu caminho para a derrubada da Dilma, e a prisão do Lula.
Por isso, a partir dessa brecha aberta pelas revelações do Intercept, Moro passou a atuar mais discretamente. Ocorre que essa discrição deixou de ser útil para Bolsonaro, porque sua família está envolvida em investigações que podem colocar todo o clã na prisão como cúmplices de uma quadrilha de milicianos. A essa altura, parar as investigações em curso implica uma violenta intervenção, e para isso não há como ser muito discreto. O risco de comprometimento para Moro passou a ser demasiado grande e, para se preservar, a demissão foi inexorável.
Mas não se trata de puro oportunismo pessoal de um projeto eleitoral para 2022. Se Moro viesse a ser envolvido num episódio de manipulação grotesca de investigações para blindar Bolsonaro e seus filhos, jogaria por terra toda a credibilidade da operação Lava Jato, o que seria uma derrota política devastadora. Abriria caminho, incontornável, para a absolvição de Lula no processo no Supremo Tribunal Federal (STF).
A questão, portanto, é que Bolsonaro não vale tudo isso. A preservação de Moro implica na preservação da operação Lava Jato e, ainda por cima, na possibilidade de que ele venha a ser um candidato a presidente. Alguém da estreita confiança do imperialismo norte-americano, caso sejam obrigados a se distanciar de Bolsonaro em função das três crises que se acumulam: sanitária, econômica e política.
Existe, portanto, uma operação política estratégica por trás da demissão de Sergio Moro. Seria dar uma enorme volta por cima, no caso de um deslocamento de Bolsonaro, ter Moro bem posicionado para as eleições de 2022. Para Moro, romper com Bolsonaro e denunciá-lo significa se colocar, novamente, na condição de “juiz acima de qualquer suspeita”, recuperando uma imagem imaculada que foi chamuscada pelas denúncias do Intercept. O momento de fazê-lo também não foi casual. Teria que ser antes de Gilmar Mendes colocasse em julgamento sua suspeição no STF.
Um debate dilacera os nervos da esquerda brasileira. Bolsonaro ainda está em uma posição ofensiva, como antes da pandemia, ou aconteceu uma inflexão nas últimas oito semanas, e foi colocado na defensiva? Identificar a dinâmica da oscilação da relação política de forças é decisivo para a tática. Mas podemos ter um pouco de paciência conosco, uns com os outros. Porque, por enquanto, tudo sugere que há um delicado impasse na conjuntura política.
Nem Bolsonaro pode partir da agitação para a preparação de um autogolpe, mesmo na forma "disfarçada", institucionalmente, de estado de sítio, nem a fração burguesa que já está posicionada, criticamente, vai se precipitar em tentar derrubá-lo. A esquerda pode acumular posições, mas não tem capacidade de incidir com sua força social de choque em condições de quarentena. A pandemia vai chegar ao auge em poucas semanas. Só depois o impasse poderá se resolver.
Esta discussão sobre a evolução da conjuntura nos coloca diante do desafio de uma caracterização de quem é Sergio Moro e o significado de sua demissão. Trabalhar com base em caracterizações é muito importante. É a única foram de não nos deixarmos arrastar pelas pressões do momento. O que é a caracterização de uma liderança política? É uma definição do lugar social e político que ela ocupa. É uma bússola de classe.
1. Duas hipóteses, fundamentalmente, foram esgrimidas na esquerda brasileira nos últimos anos:
(a) a primeira é que ele seria uma expressão de uma nova geração de profissionais de origem na classe média, mais técnica, moderna, republicana, profissional, independente politicamente, com inclinações liberais, em radicalização democrática e, para alguns, uma espécie de “tenentismo” civil anticorrupção progressivo;
(b) a segunda é que seria um agente reacionário a serviço do projeto político golpista de deslocamento do governo de Dilma Rousseff (PT), articulado com o imperialismo norte-americano.
Estas duas caracterizações sustentaram diferentes posicionamentos diante da operação Lava Jato e, portanto, do impeachment. A primeira, com variações de grau, considerou Sergio Moro expressão de uma ala mais jovem da burocracia do Estado: juízes, advogados, juristas, e procuradores que, imbuídos de valores moralizantes, se colocavam acima das classes e, por isso, cumpriam um papel independente.
Depois que Moro entrou no governo de extrema-direita, abriu-se um período de silêncio entre os defensores da hipótese da “independência”. Claro, a tese caiu por terra. Mas agora, a partir da ruptura de Moro com Bolsonaro, o tema retorna. Acontece que sem a operação LavaJato o impeachment não teria sido possível. Sem impeachment, toda a ofensiva reacionária que levou à maior acumulação de derrotas sociais e políticas desde o fim da ditadura não teria acontecido, e não estaríamos na situação defensiva atual. Portanto, a compreensão do papel de Sergio Moro como liderança é chave.
2. Infelizmente essa campanha ganhou a maioria da população e produziu imensa confusão entre os trabalhadores, e até mesmo da própria esquerda. A popularidade de Moro está relacionada com um giro político da maioria da burguesia brasileira para a oposição a Dilma Rousseff, e uma estratégia do imperialismo de apoio a golpes institucionais como em Honduras, Paraguai e mais recentemente, na Bolívia.
A Lava Jato era um instrumento da burguesia brasileira, associada ao imperialismo norte-americano, lançado após a crise de 2008 que, utilizando a bandeira do combate à corrupção, pretendia:
(a) barrar os desvios de verbas públicas (calafetar os buracos, fechar as torneiras) com o fim de mantê-los no caixa, reforçando o superávit primário, e garantindo um ajuste fiscal;
(b) eliminar a concorrência das burguesias nacionais que nasceram ou cresceram sob os governos que ascenderam na América Latina a partir da viragem do século;
(c) reposicionar o Brasil no mercado mundial favorecendo a atração de capitais estrangeiros para sair da longa estagnação;
(d) derrubar os governos que não tinham um alinhamento incondicional com os EUA, como os governos liderados pelo PT;
(e) e, por fim, espoliar as riquezas naturais dos países retirando as mediações que dificultavam sua entrega.
3. A redefinição da estratégia de Moro frente ao governo Bolsonaro teve início com o episódio envolvendo as denúncias do Intercept que o colocou na condição de juiz suspeito. Isso debilitou qualitativamente a função que vinha desempenhando. As consequências desse enfraquecimento foram gravíssimas, já que podem jogar por terra a operação Lava Jato, ou seja, o instrumento que abriu caminho para a derrubada da Dilma, e a prisão do Lula.
Por isso, a partir dessa brecha aberta pelas revelações do Intercept, Moro passou a atuar mais discretamente. Ocorre que essa discrição deixou de ser útil para Bolsonaro, porque sua família está envolvida em investigações que podem colocar todo o clã na prisão como cúmplices de uma quadrilha de milicianos. A essa altura, parar as investigações em curso implica uma violenta intervenção, e para isso não há como ser muito discreto. O risco de comprometimento para Moro passou a ser demasiado grande e, para se preservar, a demissão foi inexorável.
Mas não se trata de puro oportunismo pessoal de um projeto eleitoral para 2022. Se Moro viesse a ser envolvido num episódio de manipulação grotesca de investigações para blindar Bolsonaro e seus filhos, jogaria por terra toda a credibilidade da operação Lava Jato, o que seria uma derrota política devastadora. Abriria caminho, incontornável, para a absolvição de Lula no processo no Supremo Tribunal Federal (STF).
A questão, portanto, é que Bolsonaro não vale tudo isso. A preservação de Moro implica na preservação da operação Lava Jato e, ainda por cima, na possibilidade de que ele venha a ser um candidato a presidente. Alguém da estreita confiança do imperialismo norte-americano, caso sejam obrigados a se distanciar de Bolsonaro em função das três crises que se acumulam: sanitária, econômica e política.
Existe, portanto, uma operação política estratégica por trás da demissão de Sergio Moro. Seria dar uma enorme volta por cima, no caso de um deslocamento de Bolsonaro, ter Moro bem posicionado para as eleições de 2022. Para Moro, romper com Bolsonaro e denunciá-lo significa se colocar, novamente, na condição de “juiz acima de qualquer suspeita”, recuperando uma imagem imaculada que foi chamuscada pelas denúncias do Intercept. O momento de fazê-lo também não foi casual. Teria que ser antes de Gilmar Mendes colocasse em julgamento sua suspeição no STF.
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