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No momento em que escrevo o prefácio ao “Relações Obscenas”, um pouco mais da metade do Brasil assiste pela televisão e pela internet, confinada em uma prolongada quarentena contra o vírus Covid-19, grupos ralos e ruidosos que invadem as ruas e, protegidos por coturnos, clamam por ditadura e incitam aos correligionários que se armem;
- carros e buzinas transformados em instrumentos de guerra; ações policiais contra a direita dissidente do regime extremista de direita;
- e, enfim, uma reação do Poder Judiciário contra a escalada antidemocrática empreendida pelo presidente eleito em 2018, Jair Messias Bolsonaro, com a ajuda de seus “enfants terribles”, os número 01, 02, 03 e 04[1], todos eles atendendo pelo sobrenome do Nero brasileiro que incendeia o país enquanto grita alegremente impropérios, delira e destrói.
Nesse dia 27 de maio, já se registram mais de 25 mil mortos pela Covid-19 e a indiferença oficial aos vitimados pelo vírus é o dado definitivo desse momento da história em que os brasileiros vivem sob a hegemonia da crueldade.
“O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito feliz”[2], afirmou Bolsonaro em março de 2019, pouco mais de três meses depois de sua posse, num jantar na embaixada brasileira em Washington com a nata da extrema-direita mundial: Steve Bannon, o ex-estrategista de Donald Trump; o acadêmico Walter Russell Mead; a colunista do Wall Street Journal Mary Anastasia O’Grady; e o editor da revista literária The New Criterion, Roger Kimball.
Manteve do seu lado Olavo de Carvalho, a quem apresentou como um inspirador.
“Em grande parte, devemos a ele a revolução que estamos vivendo”, disse.
Bolsonaro tem cumprido rigorosamente o que prometeu.
A destruição é a marca do governo de extrema-direita cujo advento coroa uma articulada ação reacionária, pacientemente construída desde a eleição do primeiro presidente de esquerda no Brasil, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002.
O protagonista da solução final é um presidente de extrema-direita alucinado, atormentado por delírios paranoicos, avesso a qualquer traço de humanidade e um inconteste comandante de um exército de enlouquecidos, extasiados pela possibilidade de ascensão ao poder.
E ele apenas existe porque antes dele existiu Mensalão e Lava Jato; porque antes pontificaram a Justiça injusta e a Constituição inconstitucional dos togados Joaquim Barbosa, Luís Roberto Barroso, Alexandre Morais, Edson Fachin, Carmen Lúcia, Dias Toffoli e seus pares; porque usurparam de seus poderes juízes como Sérgio Moro e procuradores como Deltan Dallagnol.
Porque os “heróis” da luta contra a corrupção não eram heróis, apenas uma trupe que encenava roteiros moralistas de uma peça de propaganda ultraconservadora.
Bolsonaro apenas existe porque antes dele houve a tessitura do clima do horror: a criminalização de setores da esquerda, o ativismo político do Judiciário e a militância golpista da imprensa tradicional do país.
A Casa Grande montou cada peça desse xadrez, e mais uma vez com a ajuda da direita internacional – assim foi no pré-1964, com a ajuda do Ipes e do Ibad, financiados pela extrema-direita e pelos serviços de inteligência norte-americanos; assim é desde os preparativos para o tiro final contra o PT em 2015, quando um Congresso fortemente financiado para golpear as instituições feriu de morte a democracia brasileira, interrompendo o mandato da presidenta Dilma Rousseff.
Nesses dias que se sucederam a uma escalada bolsonarista contra o Supremo Tribunal Federal (STF), em resposta a denúncias feitas por Sergio Moro, a história mostra ao ex-juiz que aceitou rapidamente um ministério no governo extremista de direita a ironia que envolveu suas escolhas políticas.
Moro é agora o perseguido pelo status quo – e se conta agora com a proteção da Suprema Corte, tem contra si um clima permanente de crise institucional alimentado pelo bolsonarismo para constranger as instituições e, se necessário, intervir com o uso da força.
Foi esse o clima mantido permanentemente pela Lava Jato desde o seu início, em 2014 (não por coincidência, ano de eleição presidencial).
A ironia da história é que, ao fim e ao cabo, o Moro que denunciou Bolsonaro e por ele é ameaçado é o mesmo que o elegeu.
A Lava Jato que prometia acabar com a corrupção do país se mostrou apenas um instrumento político das elites brasileiras, encerrada em si mesma: não existe Lava Jato para além da armação destinada a tirar o PT do poder, encarcerar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e permitir a ascensão da direita. O resto é fake news.
Esse processo termina agora numa cisão entre facções de classe e uma situação extremamente perigosa em que o grupo vitorioso é um exército de lumpens comandado por um Napoleão de sanatório que tem apoio das Forças Armadas, dos corpos policiais nacional e estaduais e das milícias que corroem a dignidade da população pobre nas periferias da grandes cidades (normalmente sob a liderança de egressos das forças policiais e militares).
E encerra uma verdade incontestável: o Moro que sai de vítima do governo é o mesmo Moro que pariu Bolsonaro.
A vítima é o algoz. Ambos são a mesma coisa. Não existe Moro sem Bolsonaro. Não existe Bolsonaro sem Moro.
A operação Lava Jato foi a mensageira da destruição de um país que um presidente cruel quer completar.
O STF, hoje atacado pela horda bolsonarista, é parte: rasgou a Constituição em 2005, quando passou a ser cúmplice do desastre que se avizinhava com o forjamento de um senso comum segundo o qual os governos do PT eram intrinsicamente corruptos e que o lugar da esquerda era na cadeia – a original saída de condenar sem provas pelo instituto do “domínio do fato” ficará na história da mais alta corte brasileira, marcada em brasa na sua pele.
O ministro Teori Zavaschi – o relator da Lava Jato que dava substância jurídica às investigações do caso artificialmente montado por um obscuro juiz de primeira instância do Paraná que ganhou notoriedade nacional – morreu em um acidente aéreo em 2017, e a partir dessa tragédia a máscara do Judiciário caiu completamente: o STF deixou de ser uma corte constitucional para tornar-se o carrasco que leva à forca qualquer um que se configure obstáculo à volta dos donos de poder de fato ao poder de direito.
A cruel elite brasileira conquistou a maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) antes de embarcar com armas, bagagens e financiamentos de campanha na eleição da extrema-direita, em 2018.
Não por outro motivo pareceu tão natural que Moro, juiz concursado, no governo Bolsonaro, fosse escolhido ministro de Bolsonaro nas primeiras horas após a declaração da vitória eleitoral do representante da extrema-direita.
Os últimos artigos colhidos para esse livro foram escritos nos estertores do ano de 2019, quase um ano depois da ascensão de Bolsonaro ao poder.
É uma continuação de Relações Obscenas, editado em setembro do ano passado com a ideia de documentar, para a história, a verdade escrita pela VazaJato.
A divulgação das conversas entre os integrantes da Lava Jato feita pelo site The Intercept a partir de 9 de junho de 2019 – material colhido pelo hacker Walter Delgatti das conversas entre os procuradores, policiais e o próprio Moro em chats do Telegram – prova que juiz e procuradores “armaram” condenações, manipularam provas, induziram delações e, junto com a mídia tradicional brasileira, conservadora e oligárquica, construíram o clima que resultaria no impeachment da presidenta petista Dilma Rousseff no final de 2015.
E, de quebra, entregaram o poder, de bandeja, a Bolsonaro, em 2018.
A denúncia do golpe promovido pela aliança entre a cruel elite brasileira, a mídia oligárquica e o Judiciário (que concedeu ao juiz de primeira instância poderes extralegais e direito de condenar sem provas, impunemente e sob seus aplausos) e da prática de “lawfare” nas sentenças condenatórias que levariam Lula à prisão foram fartamente comprovadas pelos diálogos.
Lula, de fato, foi sacrificado na luta sem tréguas da elite brasileira para tirar a esquerda do poder.
O Brasil foi sacrificado.
Depois do golpe de Estado de 2015, houve uma fraude eleitoral com o uso do substrato cultural cultivado pela Lava Jato para a elaboração de uma campanha sórdida de fake news pelas redes sociais contra o candidato do PT, Fernando Haddad.
Mais uma vez, repetindo, e sempre à exaustão: Moro é Bolsonaro, Bolsonaro é Moro. E ambos não existiriam sem o STF.
Após a edição de Relações Obscenas, parte da grande mídia que havia se ajuntado ao The Intecept para divulgar os diálogos recuou.
Houve um hiato que tirou a visibilidade das denúncias.
Os últimos acontecimentos que levaram o país uma crise institucional extrema – quando o livro for para a gráfica, ainda não saberemos se Bolsonaro efetivou o golpe contra a democracia – deixam o país cada vez mais próximo de uma ruptura institucional.
A escalada se intensificou desde a divulgação, pelo STF, das imagens de uma reunião ministerial do dia 22 de abril de 2019, onde impropérios contra os outros poderes e articulações para saquear a economia são troco perto da declaração principal de Bolsonaro: iria, sim, armar a população, para “lutar pela liberdade”.
Depois disso, a palavra “guerra civil” passou a fazer parte das ameaças do governo eleito pelo voto direto, inclusive nas notas de ministros oriundos das Forças Armadas, seus seguidores da reserva e os comandantes militares.
O Exército bolsonarista, neste momento, rompeu com as demais frações da classe dominante que deram o golpe na esquerda em 2015 e colocaram Lula na cadeia em abril de 2018.
O incrível exército de desclassificados de Bolsonaro deu um passa-moleque na elite que considerava a hipótese de manietar o presidente que apoiou para realizar o programa ultraliberal de seu ministro Paulo Guedes (o pretexto dos setores conservadores para apoiar, nas eleições, um cabo do Exército, extremista caricato e ignorante). Bolsonaro cumpre a promessa de Guedes, mas o governo é ele.
É nesse momento de crise extrema que a chamada VazaJato, que divulgou os diálogos do braço jurídico de sucessivos golpes desferidos contra a democracia, volta a ganhar importância.
Se Bolsonaro fosse tirar uma radiografia, teria mostrado em suas entranhas o tumor do golpe desferido contra Dilma, Lula e a imensa maioria os brasileiros que têm horror à ditadura. A Lava Jato foi o câncer; Bolsonaro, sua metástase.
A indignação com a crueldade e com a injustiça é o legado que devemos deixar quando denunciamos, para que se registre na história, que o povo e a democracia brasileiros, na última década, são vítimas de uma elite vil, que prefere sacrificar a própria democracia a “conceder” a um projeto socialdemocrata de inclusão social onde pobres, pretos, mulheres, índios, quilombolas e LGBTs aspirem à igualdade.
Por essa razão abrimos essa edição com o capítulo Uma elite cruel.
O artigo de Jessé Souza, “Como Moro e a Lava Jato buscaram destruir Lula e a democracia brasileira”, mostra a veia aberta de um país dominado por uma elite desumana.
Lula tornou-se o centro do ódio, contra o qual a elite brasileira sacrificou qualquer valor democrático, porque ela própria não pode assumir que, na verdade, alimentava o “ódio (…) perverso ao mais fraco, ao perseguido ao abandonado” – uma verdade tão inconfessável que foi preciso personificá-la “na figura de seu líder maior”.
“Essa é a lei não escrita de toda a sociedade marcada pela escravidão.”
Eugênia Gonzaga e Luís Nassif, em “Da (não) Justiça de Transição à Lava Jato”, também apontam nas raízes autoritárias brasileiras a fragilidade da democracia brasileira.
“É a ideologia do direito à eliminação de um ‘inimigo interno, cultivada à margem do regime democrático, que deságua na operação Lava Jato”, observam.
Não à toa, a Lava Jato se autodenomina “operação”, “como faziam as forças de repressão dentro da ditadura.”
Em “A força-tarefa e a tarefa da força”, Pedro Pulzatto Peruzzo e Vinicius Gomes Casalino constatam que a chamada “República de Curitiba” exerceu a lógica de que “soberano é quem decide sobre o Estado de exceção”.
No seu segundo capítulo, “Relações Indecentes” debruça-se sobre A subversão do Direito.
Lenio Streck, em “Diálogos promíscuos: A Vazajato, o duplipensamento e o ato de tentar enganar-se a si mesmo, ou De como 2 + 2 = 5!”, constata, constrangido, que quando “o Estado passa a desrespeitar os direitos fundamentais de todos com igualdade”, isso “não é um avanço civilizatório”.
Essa é uma resposta aos que defenderam de peito aberto uma Lava Jato que atentava contra direitos de empresários e políticos da mesma forma como a justiça brasileira sempre atentara contra os direitos da classe baixa, como isso fosse prova de exercício democrático.
Em “A Imprudência Inconstitucional”, José Eduardo Martins Cardozo e Marco Aurélio de Carvalho acusam: “Os ‘heróis’ [da Lava Jato] que violaram o nosso Estado Democrático de Direito (…) pagarão o preço pelos seus atos. A história não perdoa jamais.”
Tânia Maria de Oliveira, em “Heróis, mitos e provas ilícitas: os paradoxos da operação Lava Jato”, constata: a operação gestada na chamada República de Curitiba nada mais foi do que um projeto de poder.
Nada além disso. “A Lava Jato operou em paralelo, mas em total consonância com o que acontecia na sociedade, fora do âmbito do sistema de justiça: o crescimento do bolsonarismo e sua ascensão ao poder.”
Mariana Marujo, em “ ‘As instituições estão funcionando normalmente’ e outras verdades da justiça burguesa”, consta que, sim, para os interesses do capitalismo as instituições funcionam e cumprem o seu papel nesse momento histórico: o de simplesmente servir aos interesses do capitalismo.
No capítulo O poder de destruir um país, Rosa Maria Marques faz uma radiografia dos danos causados pela Lava jato à economia brasileira. Em “Efeitos da operação Lava Jato na economia brasileira”, Marques contata o desmantelamento do setor da construção civil e do petróleo e do gás no país e o poder destruidor da República de Curitiba sobre a economia.
Marilia Carvalho Guimarães, em “Futuro Postergado”, faz um triste balanço dos efeitos da Lava Jato sobre a democracia brasileira.
O capítulo O poder de destruir pessoas é o desfilar da crueldade da chamada “elite concursada”, os jovens procuradores que tomaram para si o poder de destruir reputações, pessoas e famílias.
Citando os diálogos entre eles divulgados pelo The Intercept, “Procuradores da Lava Jato ironizam a morte de Marisa Letícia (Elika Takimoto), “Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração. Não são amigos, mas cúmplices (José Geraldo de Sousa Junior) e “Lava Jato: entre compromissos hermenêutico/ideológicos e a ignorância” (Everaldo Gaspar Lopes de Andrade) expõem a imbricação entre Justiça e crueldade de classes: o ódio ao diferente, ao oriundo de classes sociais inferiores, o horror à igualdade.
Em “Meninos Mimados", Cristiane de Faria Cordeiros traça o perfil desses operadores de justiça que debocham de suas vítimas, expressão da arrogância do poder de classe.
O obrigatório capítulo A aliança com a mídia define como questão urgente a discussão sobre as relações entre os meios de comunicação e o sistema penal.
Em “Publicidade opressiva e Operação Lava Jato”, Simone Schreiber destaca que essa aliança estratégica tem o objetivo de “obter a adesão da mídia e da opinião pública a determinadas pautas, criando um ambiente em que qualquer opinião dissonante ou crítica aos procedimentos adotados e resultados obtidos por esses atores seja desqualificada e silenciada”.
“Esse modelo não é democrático, não é compatível com o devido processo legal, não se concilia com a carta de direitos da Constituição Federal de 1988”, conclui.
Franklin Martins, em “VazaJato: a grande mídia briga com a notícia. E perde”, acusa um “vergonhoso concubinato” entre mídia e Justiça, cuja motivação foi fundamentalmente política.
Em “A VazaJato e o reposicionamento dos jornalões nacionais”, Bia Barbosa faz um levantamento sobre o comportamento da grande imprensa no período posterior à VazaJato.
Concluído no final de 2019, o artigo aponta certeiramente para o que veio depois: um pacto de silêncio entre a grande imprensa, que deixou fora das páginas dos jornais e dos noticiários televisivos as provas de que a Lava Jato não apenas manipulou informações, mas contou com a ajuda dos meios de comunicação para isso.
Barbosa já previa que as informações da VazaJato ficariam confinadas à internet.
Os dois artigos do capítulo O uso da religião, “Política e Religião: Dallagnol em campanha junto à comunidade evangélica” (Marcelise de Miranda Azevedo) e “Neoliberalismo e Neopentecostalismo: O que há para além do prefixo” (Rute Noemi Souza) identificam com maestria as circunstâncias em que a fé se tornou arma política do reacionarismo.
Este livro nasce no meio de uma pandemia e de uma crise política.
E é fundamental para que identifiquemos suas causas. Boa leitura.
- carros e buzinas transformados em instrumentos de guerra; ações policiais contra a direita dissidente do regime extremista de direita;
- e, enfim, uma reação do Poder Judiciário contra a escalada antidemocrática empreendida pelo presidente eleito em 2018, Jair Messias Bolsonaro, com a ajuda de seus “enfants terribles”, os número 01, 02, 03 e 04[1], todos eles atendendo pelo sobrenome do Nero brasileiro que incendeia o país enquanto grita alegremente impropérios, delira e destrói.
Nesse dia 27 de maio, já se registram mais de 25 mil mortos pela Covid-19 e a indiferença oficial aos vitimados pelo vírus é o dado definitivo desse momento da história em que os brasileiros vivem sob a hegemonia da crueldade.
“O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão, já estou muito feliz”[2], afirmou Bolsonaro em março de 2019, pouco mais de três meses depois de sua posse, num jantar na embaixada brasileira em Washington com a nata da extrema-direita mundial: Steve Bannon, o ex-estrategista de Donald Trump; o acadêmico Walter Russell Mead; a colunista do Wall Street Journal Mary Anastasia O’Grady; e o editor da revista literária The New Criterion, Roger Kimball.
Manteve do seu lado Olavo de Carvalho, a quem apresentou como um inspirador.
“Em grande parte, devemos a ele a revolução que estamos vivendo”, disse.
Bolsonaro tem cumprido rigorosamente o que prometeu.
A destruição é a marca do governo de extrema-direita cujo advento coroa uma articulada ação reacionária, pacientemente construída desde a eleição do primeiro presidente de esquerda no Brasil, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002.
O protagonista da solução final é um presidente de extrema-direita alucinado, atormentado por delírios paranoicos, avesso a qualquer traço de humanidade e um inconteste comandante de um exército de enlouquecidos, extasiados pela possibilidade de ascensão ao poder.
E ele apenas existe porque antes dele existiu Mensalão e Lava Jato; porque antes pontificaram a Justiça injusta e a Constituição inconstitucional dos togados Joaquim Barbosa, Luís Roberto Barroso, Alexandre Morais, Edson Fachin, Carmen Lúcia, Dias Toffoli e seus pares; porque usurparam de seus poderes juízes como Sérgio Moro e procuradores como Deltan Dallagnol.
Porque os “heróis” da luta contra a corrupção não eram heróis, apenas uma trupe que encenava roteiros moralistas de uma peça de propaganda ultraconservadora.
Bolsonaro apenas existe porque antes dele houve a tessitura do clima do horror: a criminalização de setores da esquerda, o ativismo político do Judiciário e a militância golpista da imprensa tradicional do país.
A Casa Grande montou cada peça desse xadrez, e mais uma vez com a ajuda da direita internacional – assim foi no pré-1964, com a ajuda do Ipes e do Ibad, financiados pela extrema-direita e pelos serviços de inteligência norte-americanos; assim é desde os preparativos para o tiro final contra o PT em 2015, quando um Congresso fortemente financiado para golpear as instituições feriu de morte a democracia brasileira, interrompendo o mandato da presidenta Dilma Rousseff.
Nesses dias que se sucederam a uma escalada bolsonarista contra o Supremo Tribunal Federal (STF), em resposta a denúncias feitas por Sergio Moro, a história mostra ao ex-juiz que aceitou rapidamente um ministério no governo extremista de direita a ironia que envolveu suas escolhas políticas.
Moro é agora o perseguido pelo status quo – e se conta agora com a proteção da Suprema Corte, tem contra si um clima permanente de crise institucional alimentado pelo bolsonarismo para constranger as instituições e, se necessário, intervir com o uso da força.
Foi esse o clima mantido permanentemente pela Lava Jato desde o seu início, em 2014 (não por coincidência, ano de eleição presidencial).
A ironia da história é que, ao fim e ao cabo, o Moro que denunciou Bolsonaro e por ele é ameaçado é o mesmo que o elegeu.
A Lava Jato que prometia acabar com a corrupção do país se mostrou apenas um instrumento político das elites brasileiras, encerrada em si mesma: não existe Lava Jato para além da armação destinada a tirar o PT do poder, encarcerar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e permitir a ascensão da direita. O resto é fake news.
Esse processo termina agora numa cisão entre facções de classe e uma situação extremamente perigosa em que o grupo vitorioso é um exército de lumpens comandado por um Napoleão de sanatório que tem apoio das Forças Armadas, dos corpos policiais nacional e estaduais e das milícias que corroem a dignidade da população pobre nas periferias da grandes cidades (normalmente sob a liderança de egressos das forças policiais e militares).
E encerra uma verdade incontestável: o Moro que sai de vítima do governo é o mesmo Moro que pariu Bolsonaro.
A vítima é o algoz. Ambos são a mesma coisa. Não existe Moro sem Bolsonaro. Não existe Bolsonaro sem Moro.
A operação Lava Jato foi a mensageira da destruição de um país que um presidente cruel quer completar.
O STF, hoje atacado pela horda bolsonarista, é parte: rasgou a Constituição em 2005, quando passou a ser cúmplice do desastre que se avizinhava com o forjamento de um senso comum segundo o qual os governos do PT eram intrinsicamente corruptos e que o lugar da esquerda era na cadeia – a original saída de condenar sem provas pelo instituto do “domínio do fato” ficará na história da mais alta corte brasileira, marcada em brasa na sua pele.
O ministro Teori Zavaschi – o relator da Lava Jato que dava substância jurídica às investigações do caso artificialmente montado por um obscuro juiz de primeira instância do Paraná que ganhou notoriedade nacional – morreu em um acidente aéreo em 2017, e a partir dessa tragédia a máscara do Judiciário caiu completamente: o STF deixou de ser uma corte constitucional para tornar-se o carrasco que leva à forca qualquer um que se configure obstáculo à volta dos donos de poder de fato ao poder de direito.
A cruel elite brasileira conquistou a maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) antes de embarcar com armas, bagagens e financiamentos de campanha na eleição da extrema-direita, em 2018.
Não por outro motivo pareceu tão natural que Moro, juiz concursado, no governo Bolsonaro, fosse escolhido ministro de Bolsonaro nas primeiras horas após a declaração da vitória eleitoral do representante da extrema-direita.
Os últimos artigos colhidos para esse livro foram escritos nos estertores do ano de 2019, quase um ano depois da ascensão de Bolsonaro ao poder.
É uma continuação de Relações Obscenas, editado em setembro do ano passado com a ideia de documentar, para a história, a verdade escrita pela VazaJato.
A divulgação das conversas entre os integrantes da Lava Jato feita pelo site The Intercept a partir de 9 de junho de 2019 – material colhido pelo hacker Walter Delgatti das conversas entre os procuradores, policiais e o próprio Moro em chats do Telegram – prova que juiz e procuradores “armaram” condenações, manipularam provas, induziram delações e, junto com a mídia tradicional brasileira, conservadora e oligárquica, construíram o clima que resultaria no impeachment da presidenta petista Dilma Rousseff no final de 2015.
E, de quebra, entregaram o poder, de bandeja, a Bolsonaro, em 2018.
A denúncia do golpe promovido pela aliança entre a cruel elite brasileira, a mídia oligárquica e o Judiciário (que concedeu ao juiz de primeira instância poderes extralegais e direito de condenar sem provas, impunemente e sob seus aplausos) e da prática de “lawfare” nas sentenças condenatórias que levariam Lula à prisão foram fartamente comprovadas pelos diálogos.
Lula, de fato, foi sacrificado na luta sem tréguas da elite brasileira para tirar a esquerda do poder.
O Brasil foi sacrificado.
Depois do golpe de Estado de 2015, houve uma fraude eleitoral com o uso do substrato cultural cultivado pela Lava Jato para a elaboração de uma campanha sórdida de fake news pelas redes sociais contra o candidato do PT, Fernando Haddad.
Mais uma vez, repetindo, e sempre à exaustão: Moro é Bolsonaro, Bolsonaro é Moro. E ambos não existiriam sem o STF.
Após a edição de Relações Obscenas, parte da grande mídia que havia se ajuntado ao The Intecept para divulgar os diálogos recuou.
Houve um hiato que tirou a visibilidade das denúncias.
Os últimos acontecimentos que levaram o país uma crise institucional extrema – quando o livro for para a gráfica, ainda não saberemos se Bolsonaro efetivou o golpe contra a democracia – deixam o país cada vez mais próximo de uma ruptura institucional.
A escalada se intensificou desde a divulgação, pelo STF, das imagens de uma reunião ministerial do dia 22 de abril de 2019, onde impropérios contra os outros poderes e articulações para saquear a economia são troco perto da declaração principal de Bolsonaro: iria, sim, armar a população, para “lutar pela liberdade”.
Depois disso, a palavra “guerra civil” passou a fazer parte das ameaças do governo eleito pelo voto direto, inclusive nas notas de ministros oriundos das Forças Armadas, seus seguidores da reserva e os comandantes militares.
O Exército bolsonarista, neste momento, rompeu com as demais frações da classe dominante que deram o golpe na esquerda em 2015 e colocaram Lula na cadeia em abril de 2018.
O incrível exército de desclassificados de Bolsonaro deu um passa-moleque na elite que considerava a hipótese de manietar o presidente que apoiou para realizar o programa ultraliberal de seu ministro Paulo Guedes (o pretexto dos setores conservadores para apoiar, nas eleições, um cabo do Exército, extremista caricato e ignorante). Bolsonaro cumpre a promessa de Guedes, mas o governo é ele.
É nesse momento de crise extrema que a chamada VazaJato, que divulgou os diálogos do braço jurídico de sucessivos golpes desferidos contra a democracia, volta a ganhar importância.
Se Bolsonaro fosse tirar uma radiografia, teria mostrado em suas entranhas o tumor do golpe desferido contra Dilma, Lula e a imensa maioria os brasileiros que têm horror à ditadura. A Lava Jato foi o câncer; Bolsonaro, sua metástase.
A indignação com a crueldade e com a injustiça é o legado que devemos deixar quando denunciamos, para que se registre na história, que o povo e a democracia brasileiros, na última década, são vítimas de uma elite vil, que prefere sacrificar a própria democracia a “conceder” a um projeto socialdemocrata de inclusão social onde pobres, pretos, mulheres, índios, quilombolas e LGBTs aspirem à igualdade.
Por essa razão abrimos essa edição com o capítulo Uma elite cruel.
O artigo de Jessé Souza, “Como Moro e a Lava Jato buscaram destruir Lula e a democracia brasileira”, mostra a veia aberta de um país dominado por uma elite desumana.
Lula tornou-se o centro do ódio, contra o qual a elite brasileira sacrificou qualquer valor democrático, porque ela própria não pode assumir que, na verdade, alimentava o “ódio (…) perverso ao mais fraco, ao perseguido ao abandonado” – uma verdade tão inconfessável que foi preciso personificá-la “na figura de seu líder maior”.
“Essa é a lei não escrita de toda a sociedade marcada pela escravidão.”
Eugênia Gonzaga e Luís Nassif, em “Da (não) Justiça de Transição à Lava Jato”, também apontam nas raízes autoritárias brasileiras a fragilidade da democracia brasileira.
“É a ideologia do direito à eliminação de um ‘inimigo interno, cultivada à margem do regime democrático, que deságua na operação Lava Jato”, observam.
Não à toa, a Lava Jato se autodenomina “operação”, “como faziam as forças de repressão dentro da ditadura.”
Em “A força-tarefa e a tarefa da força”, Pedro Pulzatto Peruzzo e Vinicius Gomes Casalino constatam que a chamada “República de Curitiba” exerceu a lógica de que “soberano é quem decide sobre o Estado de exceção”.
No seu segundo capítulo, “Relações Indecentes” debruça-se sobre A subversão do Direito.
Lenio Streck, em “Diálogos promíscuos: A Vazajato, o duplipensamento e o ato de tentar enganar-se a si mesmo, ou De como 2 + 2 = 5!”, constata, constrangido, que quando “o Estado passa a desrespeitar os direitos fundamentais de todos com igualdade”, isso “não é um avanço civilizatório”.
Essa é uma resposta aos que defenderam de peito aberto uma Lava Jato que atentava contra direitos de empresários e políticos da mesma forma como a justiça brasileira sempre atentara contra os direitos da classe baixa, como isso fosse prova de exercício democrático.
Em “A Imprudência Inconstitucional”, José Eduardo Martins Cardozo e Marco Aurélio de Carvalho acusam: “Os ‘heróis’ [da Lava Jato] que violaram o nosso Estado Democrático de Direito (…) pagarão o preço pelos seus atos. A história não perdoa jamais.”
Tânia Maria de Oliveira, em “Heróis, mitos e provas ilícitas: os paradoxos da operação Lava Jato”, constata: a operação gestada na chamada República de Curitiba nada mais foi do que um projeto de poder.
Nada além disso. “A Lava Jato operou em paralelo, mas em total consonância com o que acontecia na sociedade, fora do âmbito do sistema de justiça: o crescimento do bolsonarismo e sua ascensão ao poder.”
Mariana Marujo, em “ ‘As instituições estão funcionando normalmente’ e outras verdades da justiça burguesa”, consta que, sim, para os interesses do capitalismo as instituições funcionam e cumprem o seu papel nesse momento histórico: o de simplesmente servir aos interesses do capitalismo.
No capítulo O poder de destruir um país, Rosa Maria Marques faz uma radiografia dos danos causados pela Lava jato à economia brasileira. Em “Efeitos da operação Lava Jato na economia brasileira”, Marques contata o desmantelamento do setor da construção civil e do petróleo e do gás no país e o poder destruidor da República de Curitiba sobre a economia.
Marilia Carvalho Guimarães, em “Futuro Postergado”, faz um triste balanço dos efeitos da Lava Jato sobre a democracia brasileira.
O capítulo O poder de destruir pessoas é o desfilar da crueldade da chamada “elite concursada”, os jovens procuradores que tomaram para si o poder de destruir reputações, pessoas e famílias.
Citando os diálogos entre eles divulgados pelo The Intercept, “Procuradores da Lava Jato ironizam a morte de Marisa Letícia (Elika Takimoto), “Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração. Não são amigos, mas cúmplices (José Geraldo de Sousa Junior) e “Lava Jato: entre compromissos hermenêutico/ideológicos e a ignorância” (Everaldo Gaspar Lopes de Andrade) expõem a imbricação entre Justiça e crueldade de classes: o ódio ao diferente, ao oriundo de classes sociais inferiores, o horror à igualdade.
Em “Meninos Mimados", Cristiane de Faria Cordeiros traça o perfil desses operadores de justiça que debocham de suas vítimas, expressão da arrogância do poder de classe.
O obrigatório capítulo A aliança com a mídia define como questão urgente a discussão sobre as relações entre os meios de comunicação e o sistema penal.
Em “Publicidade opressiva e Operação Lava Jato”, Simone Schreiber destaca que essa aliança estratégica tem o objetivo de “obter a adesão da mídia e da opinião pública a determinadas pautas, criando um ambiente em que qualquer opinião dissonante ou crítica aos procedimentos adotados e resultados obtidos por esses atores seja desqualificada e silenciada”.
“Esse modelo não é democrático, não é compatível com o devido processo legal, não se concilia com a carta de direitos da Constituição Federal de 1988”, conclui.
Franklin Martins, em “VazaJato: a grande mídia briga com a notícia. E perde”, acusa um “vergonhoso concubinato” entre mídia e Justiça, cuja motivação foi fundamentalmente política.
Em “A VazaJato e o reposicionamento dos jornalões nacionais”, Bia Barbosa faz um levantamento sobre o comportamento da grande imprensa no período posterior à VazaJato.
Concluído no final de 2019, o artigo aponta certeiramente para o que veio depois: um pacto de silêncio entre a grande imprensa, que deixou fora das páginas dos jornais e dos noticiários televisivos as provas de que a Lava Jato não apenas manipulou informações, mas contou com a ajuda dos meios de comunicação para isso.
Barbosa já previa que as informações da VazaJato ficariam confinadas à internet.
Os dois artigos do capítulo O uso da religião, “Política e Religião: Dallagnol em campanha junto à comunidade evangélica” (Marcelise de Miranda Azevedo) e “Neoliberalismo e Neopentecostalismo: O que há para além do prefixo” (Rute Noemi Souza) identificam com maestria as circunstâncias em que a fé se tornou arma política do reacionarismo.
Este livro nasce no meio de uma pandemia e de uma crise política.
E é fundamental para que identifiquemos suas causas. Boa leitura.
Notas
[1] Como Bolsonaro chama os filhos. Pela ordem: o senador Flávio Bolsonaro, o vereador Carlos Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e Jair Renan.
[2] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/03/18/nos-temos-e-que-desconstruir-muita-coisa-diz-bolsonaro-durante-jantar.ghtml
[1] Como Bolsonaro chama os filhos. Pela ordem: o senador Flávio Bolsonaro, o vereador Carlos Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e Jair Renan.
[2] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/03/18/nos-temos-e-que-desconstruir-muita-coisa-diz-bolsonaro-durante-jantar.ghtml
* Este artigo é o prefácio do indispensável livro "Relações Indecentes" que traça o cenário de um pais solapado pela Lava Jato e colocado às claras pela Vaza Jato.
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