segunda-feira, 13 de julho de 2020

Quem precisa pedir perdão é a Globo

Por Ângela Carrato, no blog Viomundo

Roberto Marinho, que nunca quis ser político, mas entrou para a história como quem mandou e desmandou na política brasileira, possuía um jeito especial para lidar com situações delicadas.

Jamais se atirava de peito aberto e preferia sondar o terreno em busca de adesões e apoios.

Mesmo sem a astúcia do patriarca, seus filhos acabam de repetir a mesma estratégia.

O artigo assinado pelo colunista Ascânio Seleme, publicado na edição de hoje (11/7) pelo jornal O Globo, sob o título de “É hora de perdoar o PT” (na íntegra, ao final), é um exemplo desse tipo de comportamento.

Seleme não é um colunista qualquer.

Durante anos chefiou a redação de O Globo, que Roberto Marinho considerava o veículo de comunicação mais importante dentre os tantos que possuía.

Daí, dificilmente Seleme teria publicado esse artigo sem a concordância expressa dos herdeiros, sem falar na possibilidade de ter sido feito sob encomenda.

Detalhe: ao contrário da missão ter cabido a um Merval Pereira, Carlos Alberto Sardenberg ou Miriam Leitão, que destilaram ódio ao PT, Seleme é um nome mais “neutro”.

Mesmo reafirmando as críticas em relação ao PT e às suas principais lideranças (Lula e Dilma) o artigo tenta, de forma sutil, hastear uma bandeira branca para os petistas e os 30% que votam na esquerda, não sem antes impor algumas condições.

Algo como: o partido poderia ser reabilitado perante a sociedade se abrisse mão de itens de seu programa como o “controle externo da mídia” e a gestão administrativa “por meio de conselhos populares”.

Em síntese, a família Marinho quer que o PT, depois que tudo o que enfrentou por parte do Grupo Globo e de seus aliados, mude para ser aceito por quem o golpeou e assim o Brasil reunir forças para voltar à normalidade.

O que Seleme e o Grupo Globo se esquecem é que foi exatamente essa “normalidade” que propiciou a fabricação do ódio ao PT, o golpe – travestido em impeachment – contra Dilma Rousseff, a condenação e prisão, sem provas, de Lula e a própria vitória de Bolsonaro em 2018.

Ódio específico

Para quem tem a mídia como objeto de estudo, é visível que, em pouco menos de quatro anos, nenhuma das maravilhas apregoadas pelos golpistas e marteladas 24 horas na cabeça dos leitores, ouvintes e telespectadores, se materializou.

Ao contrário.

Os brasileiros estão sentindo na pele os gravíssimos problemas daí decorrentes: desemprego acima dos 13%, retirada de direitos trabalhistas e previdenciários, explosão do trabalho informal e queda histórica no PIB.

A esse caos econômico se soma mais de 70 mil mortos por covid-19, em grande medida fruto da irresponsabilidade do governo Bolsonaro no seu combate, além de milhares de micros, pequenas e médias empresas que já fecharam as portas.

A crise está tão grave, que 38 grandes empresários, o grosso do PIB brasileiro (do Banco Itaú ao grupo Ambev, passando por quatro entidades do agronegócio) lançaram, em 07/7, uma carta-manifesto pedindo que o governo Bolsonaro contenha o desmatamento na Amazônia.

Essa turma virou “verde” de uma hora para a outra?

Claro que não. Mas todos sabem que se o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, continuar destruindo e estimulando a destruição da Amazônia, o mercado internacional vai se fechar de vez para o Brasil.

E aí, uma conta que até agora vem sendo paga pela maioria da população, vai chegar também aos mais ricos e endinheirados.

A Operação Lava Jato, que teve no Grupo Globo um apoiador de primeira hora, está sendo devastada por denúncias e críticas de ilegalidades de toda ordem, a exemplo de que atuou com integrantes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e do FBI contra os interesses de empresas brasileiras.

Em síntese, o Grupo Globo está perdendo os principais apoios que tinha e vendo a narrativa de “combate à corrupção” que construiu desmoronar.

A família Marinho é parte da turma de direita, neoliberal, que agora critica o governo neofascista de Bolsonaro. Mas o ódio que destilou contra o PT tinha interesses específicos.

A TV Globo, o veículo mais lucrativo do grupo, cresceu e se expandiu à sobra dos 21 anos de ditadura no Brasil.

A própria redemocratização, rapidamente batizada como “Nova República”, foi apropriada pela família Marinho.

“Bela alma”

Os governos petistas foram os únicos que, mesmo muito timidamente, tentaram conter o poder avassalador do Grupo Globo.

Por isso foram execrados, sendo que a mídia corporativa (Globo à frente) não mediu esforços para banir Lula, Dilma e o PT do cenário político nacional.

Se o Globo - como porta-voz de quem apoiou o golpe - estivesse arrependido do que fez, deveria pedir desculpas à população brasileira.

E há muito do que se desculpar.

Mas, travestida de “bela alma”, é a família Marinho que vem a público defender o perdão ao PT.

Cinismos à parte, quem precisa pedir perdão ao povo brasileiro é a família Marinho e seus funcionários que, por inocência, cinismo ou oportunismo, embarcaram na canoa furada do ódio e da criminalização ao maior partido de massas da história desse país. Uma realidade, gostando-se ou não do PT.

No caso da família Marinho, o “perdão” com o qual acena para o PT e para a esquerda têm ainda outras razões.

Ao optarem pelo apoio a Bolsonaro em detrimento do candidato Fernando Haddad, do PT, nas eleições de 2018, a família Marinho e a “elite do atraso”, da qual é parte, acreditavam que conseguiriam manter Bolsonaro em rédea curta.

Não deu certo.

Por conhecer a história da Globo, o ex-capitão decidiu enfrentá-la e substituí-la pela TV Record, no papel de emissora “chapa branca”.

Não só a primeira entrevista de Bolsonaro depois de eleito foi para a Record, como a Globo perdeu a primazia na divulgação das ações oficiais e na captação das verbas de publicidade do governo federal, estando ainda sob a ameaça de não ter sua concessão renovada.

Mais ainda: pela primeira vez depois da redemocratização, o ministério das Comunicações não é ocupado por alguém indicado ou diretamente ligado à Globo.

O recriado ministério está nas mãos do deputado Fábio Faria, genro do dono do SBT, Sílvio Santos, concorrente da Globo.

A falta do dinheiro público na Globo já está sendo sentida através das seguidas demissões, negociações e cortes salariais em todos os setores.

Oficialmente, fala-se em reestruturação, mas, na prática, a Globo e o Grupo Globo estão encolhendo.

Mentira antiga

A GloboNews, por exemplo, enfrenta a concorrência direta da CNN Brasil, que mesmo estando há poucos meses no país, já emparelhou com a audiência da concorrente e, em alguns horários, a ultrapassou.

Até no item novelas, antes domínio absoluto da TV Globo, a concorrência está tirando o sono dos Marinho.

A concorrência, no caso, atende pelo nome de Netflix, com sua oferta gigantesca de séries e filmes.

Em outras palavras, é o Grupo Globo que está sendo colocado contra a parede e, soberbo como sempre, tenta inverter a situação: apresenta-se como magnânimo e propõe o perdão ao outro.

Além da soberba, o Grupo Globo tem sido responsável pela disseminação de uma antiga mentira no Brasil: a de que a regulação democrática da mídia, como consta do programa do PT, seria sinônimo de censura.

Há décadas, os principais países democráticos do mundo possuem legislação regulando a atuação de suas emissoras de rádio e de televisão.

Essas legislações proíbem, por exemplo, propriedade cruzada na mídia e a existência de monopólios.

A título de exemplo, a existência de um Grupo como o Globo seria simplesmente impensável nos Estados Unidos, França, Alemanha, Inglaterra, Japão e Canadá.

Some-se a isso que todos esses países possuem TVs Públicas, financiadas pelos cidadãos, livres da influência e das pressões de governos e dos anunciantes.

Um dos motivos do ódio dos Marinho a Lula tem a ver com o fato de que ele criou, em 2007, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), com seus braços público (TV Brasil) e estatal (NBR). Empresa que começou a ser destruída no governo do ilegítimo Temer e cujo fim Bolsonaro já anunciou.

Muito ainda poderia ser acrescentado sobre as sabotagens que a família Marinho e, antes dela, o primeiro magnata da mídia brasileira, Assis Chateaubriand, submeteram todas as tentativas de se criar TVs não comerciais no Brasil.

Minha tese de doutorado, Uma História da TV Pública no Brasil, defendida em 2013, na Faculdade de Comunicação da UnB, descreve esse processo em detalhes.

Basta lembrar que se Chateaubriand sepultou os sonhos da estatal Rádio Nacional, líder absoluta de audiência nos anos 1950 e 1960, em obter uma concessão de canal de TV, Roberto Marinho sabotou as várias tentativas (inclusive de militares) de se dotar o país de uma rede de emissoras educativas.

A criação do Canal Futura, em 1997, por parte da Fundação Roberto Marinho, é uma face dessa história.

Mas voltando ao artigo “É hora de perdoar o PT”, talvez seja o caso, para quem estuda a mídia e o Grupo Globo em especial, de avaliar se esse conglomerado e a família Marinho merecem perdão.

Em 2014, quando o golpe civil-militar de 1964 completou 50 anos, o jornal O Globo publicou um editorial considerando “um erro” o apoio que havia dado aos militares.

Dois anos depois, em 2016, voltou a trair a confiança da população brasileira, insuflando e defendendo abertamente um “impeachment” para o qual sabidamente não havia crime de responsabilidade.

Os 21 anos de ditadura e, agora, esses quatro de destruição do Brasil e de sofrimento do povo brasileiro, parecem não ter ensinado nada aos Marinho.

Se eles tivessem prestado atenção, seria fácil perceber que um dos primeiros alvos do golpe de 1964, foi um golpista de primeira hora, Assis Chateaubriand.

O início da ascensão da TV Globo, já em meados dos anos 1960, coincide com o começo da agonia dos Diários Associados.

Na época, Chateaubriand e seus colaboradores denunciaram aos quatro ventos, sem sucesso, as manobras da TV Globo e de Roberto Marinho contra os Associados.

Pelo fato de as novas tecnologias, em especial a internet, ainda não existirem, os Diários Associados, mesmo capengando, conseguiram sobreviver por um razoável período antes de praticamente sumirem do mapa da comunicação no Brasil.

Na era dos portais, sites e blogs, o desaparecimento de grupos de mídia, que não têm apreço pela democracia, mentem, distorcem os fatos e destilam ódio, como tem feito o Grupo Globo, tem tudo para ser bem mais rápido.

* Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.

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É hora de perdoar o PT

Ódio dirigido ao partido não faz mais sentido e precisa ser reconsiderado se o país quiser mesmo seguir o seu destino de nação soberana, democrática e tolerante

por Ascânio Seleme, em O Globo

Não há como uma nação se reencontrar se 30% da sua população for sistematicamente rejeitada.

Esse é o tamanho do problema que o Brasil precisa enfrentar e superar. Significa a parcela do país que vota e apoia o Partido dos Trabalhadores em qualquer circunstância.

Falo dos eleitores, não apenas dos militantes. Me refiro aos que acreditam na política de mudança do partido, não aos seus líderes.

Os que acreditam e sustentam o PT são a maioria do terço de eleitores perenes do partido, não os que foram flagrados nos dois grandes escândalos de corrupção que marcaram as gestões petistas.

Esse agrupamento político, talvez o mais forte e sustentável da história partidária brasileira, tem que ser readmitido no debate nacional.

Passou da hora de os petistas serem reintegrados. Ninguém tem dúvida de que os malfeitos cometidos já foram amplamente punidos.

O partido teve um ex-presidente e seu maior líder preso e uma presidente impedida de continuar governando. Outros líderes históricos também foram presos ou afastados definitivamente da política.

Hoje, respeitadas as suas idiossincrasias naturais, homens e mulheres de esquerda devem ser convidados a participar da discussão sobre o futuro do país.Têm muito a oferecer e acrescentar.

A gritaria contra a roubalheira já cansou, não porque se queira permitir roubalheiras, mas porque é oportunista politicamente.

Claro que houve desvios de dinheiro público na gestão de Lula e Dilma, as provas são abundantes e as condenações não deixam dúvidas. Mas o PT é maior que isso e, como já foi dito, para ladrões existe a lei.

Imaginar que o partido repetirá eternamente os mesmos erros do passado é uma forma simples, fácil e errada de se ver o mundo. Os erros amadurecem as pessoas, as instituições, os partidos políticos.

Não é possível se olhar para o PT e ver só corrupção. O petismo não é sinônimo de roubo, como o malufismo.

Superada esta instância, que é mais fácil, terá de se ultrapassar também a índole autoritária que um dia foi semeada no coração do PT e vicejou.

Exemplos são muitos, como a tentativa de censurar a imprensa através de um certo “controle externo da mídia”, de substituir a Justiça por “instrumentos de mediação” em casos de agressão aos direitos humanos, ou de trocar a gestão administrativa por “conselhos populares”.

Se estas tentações foram barradas no passado, quando até o centrão apoiava o PT, certamente não prosperarão num ambiente muito mais polarizado como o de hoje.

O fato é que o ódio dirigido ao PT não faz mais sentido e precisa ser reconsiderado se o país quiser mesmo seguir o seu destino de nação soberana, democrática e tolerante.

Não pode se esperar essa boa vontade dos que carregam faixas pedindo intervenção militar e fechamento do Supremo e do Congresso, um grupelho ideológico, burro e pequeno que faz parte da base do presidente Jair Bolsonaro.

Mas é bastante razoável ter esta expectativa em relação a todos os outros, sejam eles de direita, de centro-direita ou de centro.

Não se pode negar que parte considerável do Brasil é de esquerda. Como tampouco há como se ignorar a força da direita nacional. Ambos os campos existem e precisam ser representados politicamente.

O Brasil não tem tempo para esperar por uma outra esquerda, renovada e livre da influência do PT. O país precisa se reencontrar logo para construir uma alternativa ao bolsonarismo, este sim um problema grave que deve ser enfrentado por todos.

Perdoar o PT não significa abrir mão de convicções. Ao contrário, significa pavimentar caminhos pelos quais pode se chegar ao objetivo comum de paz e prosperidade.

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