Ilustração: Tim Robinson |
A trajetória jornalística de Karl Marx reflete o compromisso de um intelectual revolucionário que buscou construir, mesmo em conjunturas complexas e desfavoráveis (como nas vezes em que, perseguido por governos autoritários e na condição de apátrida, foi obrigado a trabalhar nos estreitos limites do exílio), uma imprensa refratária à mercantilização da informação e orientada a ser um instrumento de esclarecimento, formação e ação política contra a dominação capitalista, ao mesmo tempo alinhada a causas democráticas, populares e socialistas.
Marx inscreveu-se numa tendência que se delineou no âmbito europeu desde meados do século XIX até as décadas inaugurais do século XX: intelectuais de esquerda atuavam na cena pública como jornalistas e ativistas, valendo-se de jornais e revistas para a disseminação de suas ideias e propostas. Entre inúmeros exemplos, podemos citar os de Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir I. Lenin, Antonio Gramsci, Karl Kautsky, Rosa Luxemburgo, Leon Trotski, Nikolai Bukharin, Máximo Gorki, Jean Jaurès, Guiorgui Plekhanov, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai. Vários deles não apenas exerceram o jornalismo, como também teorizaram sobre a imprensa como âmbito propício a atividades de informação, conscientização, agitação, propaganda e difusão contra-hegemônica. Em especial, Marx, Lenin e Gramsci, com estilos próprios e em circunstâncias específicas, se enquadraram nesse perfil, procurando combinar a prática profissional, a militância e as reflexões sobre as práticas, os métodos e o alcance social do jornalismo.
A obra jornalística de Marx é fortemente imbricada com a sua produção teórica. Para ele, no exercício do jornalismo é viável aproximar as convicções filosóficas da intervenção política concreta. Mario Espinoza Pino (2014, p. 118) sustenta só ser possível entender a construção e a evolução do pensamento do filósofo alemão se levarmos em conta sua trajetória como jornalista, pois era por meio da profissão que ele recolhia dados, se interrogava sobre o que estava por trás dos acontecimentos e expunha seus pontos de vista. “É o espaço onde se forjam suas ideias, onde emergem suas posições políticas de maneira mais viva”, ressalta Pino, acrescentando que a riqueza dos artigos está na capacidade de Marx de retratar “todos e cada um dos aspectos do século XIX” (ibid., p. 30).
O jornalismo emergiu como saída profissional depois de Marx ter finalizado a tese de doutorado na Universidade de Jena, em 15 de abril de 1841, e ver naufragar seis meses depois o sonho da vida acadêmica com a demissão, por motivos políticos, de Bruno Bauer na Universidade de Bonn. Bauer era um dos líderes dos jovens filósofos hegelianos de esquerda que formavam o Doktorklub (Clube dos Doutores) e se reuniam num café da Rua dos Franceses, onde conhecera e se tornara amigo de Marx, no período em que este estudava na mesma universidade. O grupo hegeliano foi atingido pela vaga reacionária após a ascensão de Frederico Guilherme IV ao trono da Prússia, em 1840. Para complicar ainda mais a situação de Marx, os fundos de sua família estavam se esgotando depois da morte do pai, Heinrich, em 1838.
Naquele contexto, o jornalismo estava longe de oferecer carreira estável e promissora. Era uma atividade mal remunerada e um refúgio para iniciantes com alguma inclinação literária ou jovens intelectuais inquietos que, não conseguindo ou não tendo chance de definir-se por outra profissão, acabavam gravitando nas redações para ganhar o que fosse possível, ou simplesmente para publicar seus escritos. As dificuldades financeiras não davam muita escolha ao jovem Marx, que, até então, só publicara poemas numa revista simpatizante do Romantismo.
Marx escreveu inicialmente na revista Anais Alemães de Ciência e Arte (Deutsche Jahrbücher für Wissenschaft and Kunst), dirigida por Arnold Ruge e Theodor Echtermeyer. Seu primeiro artigo foi contra a censura, sublinhando a sua incompatibilidade com uma imprensa digna e livre. Não chegou a ser publicado por veto dos censores do regime. Em maio de 1842, aos 24 anos, passou a colaborar com a Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), fundada no dia 1° de janeiro de 1842, em Colônia, por seu amigo Moses Hess. A Renânia era a região mais desenvolvida da Prússia, onde cresciam as reivindicações por reformas, e Colônia, o centro da atividade econômica e de efervescência cultural. A chamado de Hess, Marx participou de discussões sobre o projeto do jornal.
Em sua análise sobre a evolução política do jovem Marx, Michael Löwy (2012, p. 53-55) observa que a Gazeta Renana acabou sendo um “casamento de curta duração” entre a burguesia liberal, que se fortalecia com a expansão da indústria, queria ascender ao poder político e reclamava um Estado unitário e capaz de favorecer seus interesses econômicos, e o hegelianismo de esquerda. Os terrenos comuns eram a oposição ao Estado prussiano burocrático-feudal, o fim dos privilégios do absolutismo monárquico e a vigência de um regime constitucional que assegurasse as liberdades de imprensa, de reunião e de comércio, bem como a separação entre religião e Estado. Após a expulsão da Universidade de Bonn, os hegelianos de esquerda perderam seus espaços de expressão (revistas filosóficas, cátedras) e aliaram-se na oposição, taticamente, aos liberais burgueses, estes decepcionados com o caráter intervencionista da monarquia, que os impedia de participar das esferas do poder, embora economicamente estivessem se convertendo na classe mais proeminente. Conforme Löwy, ao fechar as portas da universidade para os hegelianos, o governo “forçou a filosofia a ‘instalar-se nos jornais’, a ‘tornar-se profana’ e a ocupar-se de problemas políticos e sociais concretos”. O fato determinante para Marx se lançar no jornalismo e na vida política foi o fim da ilusão quanto à carreira universitária estimulada por Bauer.
A imprensa tornou-se, para intelectuais progressistas, uma das raras tribunas de debate filosófico, político e literário. Para isso contribuiu o surgimento de periódicos que, na contramão da imprensa servil ao império, abordavam os problemas sociais, de algum modo apoiando articulações contra o absolutismo monárquico, bem como as pressões por uma Constituição liberal com regime parlamentarista e liberdade de imprensa e de reunião. O projeto da Gazeta Renana encaixou-se nesse cenário, e Marx a ele se juntou, talvez sem supor que seria etapa relevantes no amadurecimento de seu pensamento político e no confronto com a realidade.
Ao escrever, em 1859, o prefácio de uma de suas obras clássicas, Contribuição à crítica da economia política, Marx (2008a, p. 46) qualificou a experiência na Gazeta Renana como motivadora para os seus estudos econômicos: “Minha área de estudos era a jurisprudência, à qual, todavia, eu não me dediquei senão de um modo acessório, como uma disciplina subordinada relativamente à Filosofia e à História. Em 1842-1843, na qualidade de redator da Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), encontrei-me, pela primeira vez, na embaraçosa obrigação de opinar sobre os chamados interesses materiais. Os debates do Landtag [Parlamento regional] renano sobre os delitos florestais e o parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica oficial que o sr. Von Schaper, então governador da província renana, travou com a Gazeta Renana sobre as condições de existência dos camponeses do Mosela, as discussões, por último, sobre o livre-câmbio e o protecionismo, proporcionaram-me os primeiros motivos para que eu começasse a me ocupar das questões econômicas”.
Nos textos inaugurais na Gazeta Renana, Marx denunciou o caráter reacionário das novas instruções baixadas em dezembro de 1841 pelo governo imperial a pretexto de atenuar a censura e permitir maior liberdade de expressão. Ao abordar as desigualdades sociais, assumiu a defesa dos camponeses pobres do sul do Reno contra a exploração pelos grandes proprietários de terras. Não era ainda comunista, pois, como se sabe, só se iria aderir na segunda metade de 1843, “após um acerto de contas mais complexo e prolongado com o liberalismo e a filosofia hegeliana” (Hobsbawm, 1979, p. 33).
À medida que os artigos iam sendo publicados, ficou claro, de acordo com seu biógrafo Francis Wheen (2007), que Marx reunia qualidades indispensáveis a todo grande jornalista: “a determinação de falar a verdade ao poder e uma intrepidez absoluta, mesmo quando escrevia sobre pessoas de cuja amizade ou apoio ele podia precisar”. Convém precisar, em linha com Francisco Fernández Buey (2009, p. 63), que o estilo jornalístico de Marx não se confundia com crônicas tradicionais ou matérias investigativas; aproximava-se de uma variante ensaística cujo “ponto de partida é a crônica sociopolítica imediatamente desdobrada em reflexão politico-filosófica: nele, a afirmação de pontos de vista se sobrepões constantemente à análise da situação ou de determinados acontecimentos politico-culturais”.
Faço breve salto cronológico para atestar a exatidão de Buey ao destacar que as análises engajadas do jornalista Marx ultrapassavam a dimensão corriqueira dos fatos. Refiro-me ao magistral artigo “A burguesia e a contrarrevolução” (Nova Gazeta Renana, n. 165, 10/12/1848). Ele estabelece um jogo de paralelos e distinções entre as revoluções inglesa (1648), francesa (1789) e alemã (1848) para caracterizar como a traiçoeira burguesia de seu país e de sua época (e, com impressionante atualidade, do nosso tempo sombrio e desenganado) se esgueirava como uma serpente ardilosa por entre as tramas políticas, para, na hora crucial, dar o bote e fazer prevalecer seus interesses e ambições: “A burguesia alemã tinha se desenvolvido com tanta indolência, covardia e lentidão que, no momento em que se ergueu ameaçadora em face do feudalismo e do absolutismo, percebeu diante dela o proletariado ameaçador, bem como todas as frações da burguesia cujas ideias e interesses são aparentados aos do proletariado. (…) Ela havia decaído ao nível de uma espécie de casta, tanto hostil à Coroa como ao povo (…); estava disposta desde o início a trair o povo e o compromisso com o representante coroada da velha sociedade; representando não os interesses de uma sociedade nova contra uma sociedade velha, mas interesses renovados no interior de uma sociedade envelhecida (…); na ponta não porque representava a iniciativa de uma nova época social, mas o rancor de uma época social velha (…); sem fé em si mesma, sem fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoísta em relação aos dois lados e consciente de seu egoísmo, revolucionária contra os conservadores, conservadora contra os revolucionários, desconfiada de suas próprias palavras de ordem, frases em lugar de ideias, intimidada pela tempestade mundial, mas dela desfrutando – sem energia em nenhum sentido, plagiária em todos os sentidos, vulgar porque não era original e original na vulgaridade – e traficando com seus próprios desejos, sem iniciativa, sem fé em si mesma, sem fé no povo, sem missão histórico-mundial – um ancião maldito que se via condenado a dirigir e a desviar, em seu próprio interesse decrépito, as primeiras manifestações de juventude de um povo robusto – sem olhos! sem ouvidos! sem dentes! sem nada! (…).” (Marx, 2010b, p. 324-325).
Após cinco meses como colaborador, Marx foi designado redator-chefe da Gazeta Renana em 15 de outubro de 1842. Imprimiu um estilo editorial mais incisivo, desde a cobertura diária da Dieta Renana e do governo em Berlim à apresentação meticulosa dos acontecimentos, com análises aprofundadas e um tom crítico que às vezes surpreendia pela audácia nas ironias. Não demorou a afastar-se do grupo hegeliano de esquerda, avaliando que a sua radicalidade filosófica dificultava uma estratégia mais ampla de transformação da sociedade alemã.
Entre os críticos de Marx, há os que veem certas ambiguidades nas avaliações do redator-chefe. A dissociação com os hegelianos teria ocorrido por descontentamento da direção da Gazeta Renana com as críticas do grupo ao liberalismo renano. Questiona-se o fato de, sendo defensor da liberdade de imprensa, o redator-chefe ter deixado de publicar artigos de alguns colaboradores de esquerda, por considerá-los extremados. Mas, em sua biografia de Marx, Leandro Konder (1999, p. 26) indica elementos que, provavelmente, o nortearam na tomada de decisões: “Animados com as posições liberais e progressistas da Gazeta Renana, alguns jovens de Berlim mandavam para o jornal artigos pontilhados de vibrantes tiradas comunistas. Marx, porém, considerava os artigos superficiais e demagógicos. Um dia, chamou o líder dos moços berlinenses – um certo Meyen – e disse-lhe, com franqueza, que considerava “inadequado, e até mesmo imoral, impingir de passagem, como contrabando, em críticas de teatro etc., os dogmas comunistas e socialistas, isto é, ideologias novas”. Disse-lhe mais, que, a seu ver, “era preciso tratar do comunismo de outro modo, de maneira mais fundamentada”. Meyen não gostou e os moços socialistas de Berlim romperam relações com o jovem diretor da Gazeta Renana. Marx, no entanto, ficou com aquela ideia na cabeça: havia de examinar mais a fundo a doutrina do comunismo.”
O conturbado cenário político incumbiu-se de encurtar a permanência de Marx à frente da Gazeta Renana. Se por um lado conquistara projeção nos círculos intelectuais por seu trabalho (inclusive conhecera pessoalmente, em visita à redação, Friedrich Engels, seu brilhante parceiro intelectual, amigo fiel e articulista do jornal), por outro os conflitos internos se tornaram constantes. E isso apesar de a tiragem ter saltado de 400 para 3.500 exemplares. O viés crítico introduzido por Marx superava em ousadia os demais jornais liberais e se constituía num divisor de águas no choque com o absolutismo monárquico.
Porém ele enfrentava animosidades em três frentes. A imprensa conservadora o combatia sistematicamente. Os acionistas capitalistas o acusavam de radicalizar a oposição à ordem vigente e pôr em risco a sobrevivência do jornal. Já para as autoridades prussianas, Marx era um “agitador subversivo” que precisava ser barrado e silenciado. A direção da Gazeta Renana exigiu que se evitasse conflito com o poder político local, que acabara de pedir ao governo central em Berlim que o indiciasse por “crítica impudente e desrespeitosa”. Marx se recusou a fazer concessões. A resposta veio no decreto governamental que pôs o jornal sob censura, a partir de 19 de janeiro de 1843. Resistiu no cargo de outubro de 1842 a fevereiro de 1843.
Para agravar, o czar Nicolau II, dizendo-se ofendido por “diatribes” e “difamações” contra o Império russo, solicitou ao rei da Prússia punição à Gazeta Renana. Os processos judiciais, inclusive contra Marx, levaram à cassação do registro do jornal pelo Ministério do Interior, em 1º de abril de 1843. Em carta a Arnold Ruge, Marx (1987, p. 69) disse que não chegou a se surpreender com o desfecho, pois, desde a vigência das novas instruções para a censura, havia uma ameaça permanente às publicações que se atrevessem a desafiar o poder imperial. E desabafou sobre a sua demissão: “A atmosfera aqui se tornou irrespirável para mim. Mesmo a serviço da liberdade, é duro cumprir uma tarefa servil, e ter que lutar com alfinetadas ao invés de desfechar golpes de martelo. Eu já estava farto de tanta hipocrisia, de tanta tolice, de tanto autoritarismo brutal, de tanto ajoelhar-se, adaptar-se e curvar-se, de tanto ter que cuidar da escolha de palavras. É como se o governo me houvesse devolvido a liberdade.”
“Minar todas as bases do sistema politico existente”
A experiência na Gazeta Renana resultou significativa para Marx em várias planos. José Paulo Netto (2012, p. 10) sublinha que ele “foi obrigado a enfrentar a realidade imediata da vida política e constatou que a sua formação acadêmica era insuficiente para dar conta dos conflitos que moviam a sociedade – constatação que o estimulou a realizar estudos históricos e políticos”. Marx também comprovou as limitações do liberalismo alemão em defesa de seus próprios princípios (tanto que os líderes liberais de Colônia reagiram timidamente à censura imposta ao jornal), o que contribuiu para sedimentar as suas convicções e, depois, se afastar dos filósofos do Doktorklub, centrados, a seu ver, num idealismo abstrato que já não correspondia à sua análise das questões concretas. A “descoberta da política” como dimensão necessária da vida social foi assim uma das consequências da passagem pela Gazeta Renana.
As vicissitudes enfrentadas por Marx acabaram equiparando sua carreira jornalística a uma espécie de gangorra: ora experimentava o entusiasmo de intervir na realidade com artigos sem meias-tintas; ora se deparava com rusgas internas, censura e perseguições que o desalojavam das redações e o obrigavam a encontrar saídas de sobrevivência, com a retomada do trabalho no exterior.
O primeiro de seus exílios aconteceu após a suspensão da Gazeta Renana. Em outubro de 1843, convencido de que não teria futuro na Prússia, mudou-se para Paris, onde tomou contato com o movimento operário francês, acompanhou o debate ideológico das tendências socialistas revolucionárias e alargou conhecimentos sobre economia e filosofia políticas. Leu pensadores políticos como Rousseau e Montesquieu e estudos sobre a Revolução Francesa. Começou a evoluir do idealismo hegeliano para o materialismo dialético. Os Manuscritos econômico-filosóficos, escritos entre abril e agosto de 1844, são um reflexo desse câmbio de ótica. Ele explicita uma vigorosa crítica ético-política ao capitalismo, denunciando a alienação e a exploração dos trabalhadores e pregando uma “ação comunista efetiva” contra oo jugo da propriedade privada (Marx, 2010a).
Na capital francesa, a convite de Arnold Ruge, Marx tornou-se redator-chefe da recém-criada revista Anais Franco-Alemães (Deutsche-Französische Jahrbücher), projeto surgido numa troca de cartas entre Marx, Engels, Ludwig Feuerbach, Mikhail Bakunin e Ruge. A revista, que congregava outros exilados, queria contribuir para a renovação do pensamento filosófico em interação com o mundo social, através de uma síntese da filosofia clássica e do materialismo francês, capaz de intensificar a ação política (Frederico, 2009, p. 93-95).
Apesar de uma única edição dupla ter circulado em princípios de 1844, foi nos Anais Franco-Alemães que ele publicou, pela primeira vez, a introdução de Crítica da filosofia do direito de Hegel (1843) e A questão judaica(1844). Esses textos assinalam a sua passagem do radicalismo democrático a uma etapa revolucionária, fundamentada no materialismo histórico. Com o fim da revista ainda em 1844, parte da redação se juntou a outro jornal formado por exilados, Avante (Vorwärts), francamente contrário à monarquia prussiana, e que reunia entre seus colaboradores intelectuais como Engels, Bakunin, Heinrich Heine, Georg Herwegh, Georg Weerth, Georg Weber e Heinrich Bürgers. O grupo promovia conferências semanais para discussões editoriais e análises de conjuntura. Um dos três artigos de Marx publicados no Avante!, com duras críticas a desmandos do imperador Frederico Guilherme IV, contribuiu para a sua expulsão do país. Pressionado pelo governo prussiano, o rei da França, Luís Felipe, ordenou a sua deportação, consumada em 3 de fevereiro de 1845.
Marx exilou-se em Bruxelas, onde desenvolveu um dos períodos mais produtivos de sua vida. Lá escreveu Teses sobre Feuerbach (1845), A ideologia alemã (junto com Engels, 1845-46), A miséria da filosofia (1847) e o seminal Manifesto do Partido Comunista (1848), além de ter proferido conferências sobre temas econômicos. Ao mesmo tempo que escrevia para periódicos socialistas radicais, Marx aprofundava os estudos filosóficos e econômicos e a pesquisa histórica que o levariam a superar, depois, o idealismo alemão, o hegelianismo, a antropologia feuerbachiana e a economia política burguesa, evoluindo para os fundamentos do socialismo científico, em oposição ao socialismo utópico de outras vertentes europeias.
Preso no final de fevereiro de 1848 sob a falsa acusação de ter recebido recursos para comprar armas destinadas à insurreição, Marx foi expulso da Bélgica com a família. Com ajuda financeira de amigos franceses, viajou para Paris, onde se encontrou com Engels. Durante um mês puderam sentir e participar da rebelião que tomara conta da cidade desde a madrugada de 24 de fevereiro, e cuja chama de contestação se propagaria pela Europa até o segundo semestre de 1849. Os movimentos de massa alcançaram Inglaterra, Escócia, França, Alemanha, Itália e Hungria, cada qual tentando responder a problemas de cada país e tendo a uni-las a rejeição à ordem vigente.
Dispostos a impulsionar o movimento revolucionário alemão, Marx e Engels voltaram a Colônia em meados de abril, ao lado de exilados que integravam a Liga Comunista, fundada pelos dois em 1847. O plano imediato era lançar um jornal que apoiasse as lutas sociais e divulgasse o que acontecia nos demais países. Marx acreditava que o periódico poderia chamar a atenção de segmentos da opinião pública para os descompassos existentes na Confederação Alemã (onde persistiam condições econômicas semifeudais e o absolutismo monárquico, com a burguesia fora do poder) em relação aos países nos quais a democracia havia progredido.
Marx e Engels contavam com simpatizantes vinculados a associações operárias e grupos socialistas de Colônia. A liberdade de imprensa na Prússia tinha sido restaurada, embora vigorassem dispositivos legais que poderiam ser invocados a qualquer tempo para, supostamente,resguardar as autoridades constituídas e a segurança do Estado, tendo como danoso efeito colateral o cerceamento de direitos civis e da liberdade de expressão. O programa do novo jornal pregava uma revolução democrático-burguesa que resultasse na criação da República alemã, una e indivisível, que não seria um fim em si mesma, e sim um meio e uma etapa preparatória para a revolução comunista. O financiamento da publicação com a venda de ações foi parcialmente alcançado na adesão de admiradores de Marx entre pequenos empresários e profissionais liberais, além de uma parcela do adiantamento da herança que recebera da mãe e uma quantia oriunda do patrimônio pessoal de Engels.
Marx concebia um jornal capaz de “fundir ideias rigorosamente científicas e uma doutrina concreta”, credenciando-se a incidir na luta revolucionária com as “armas da crítica”. O periódico não se propunha a fazer apologia de um partido. Sua tarefa era a de “esclarecer, seja a situação da qual aquele partido deve tomar consciência, sejam seus princípios, apontar suas fragilidades e equívocos, bem como indicar caminhos”. Entendimento semelhante se aplicava às relações com a população. Embora solidário às aspirações populares, o jornal não iria tratá-los como portadores de todas as virtudes. Ou seja, pontua Lívia Cotrim (2010b, p. 39), “não se dispõe a assumir suas ilusões ou contemporizar com elas; ao contrário, explicita as debilidades, hesitações e erros do movimento revolucionário, evidenciando suas determinações sociais e as responsabilidades particulares”.
Em 1º de junho de 1848, tendo Marx como redator-chefe, foi lançado o primeiro número da Nova Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung), “órgão da democracia”. Mesmo distante geograficamente das ruas conflagradas de Paris, o jornal cobriu os acontecimentos em torno da insurreição graças a “reportagens estonteantes de Engels, redigidas como se as balas estivessem zunindo ao passar por ele” (Hunt, 2010, p. 184). Uma rede de correspondentes e resumos de jornais estrangeiros obtidos em permutas informais permitiram à Nova Gazeta Renana publicar mais notícias sobre as revoluções europeias do que qualquer outro jornal da Alemanha. Os esforços surtiram efeito e a tiragem ultrapassou os cinco mil exemplares, com repercussão acima da média em grupos e associações ativistas de Colônia. A despeito de algumas conquistas parciais e localizadas, a onda revolucionária resultou em reveses para as forças democráticas diante da repressão generalizada. Forçosamente a cobertura da Nova Gazeta Renana teve que evidenciar mais recuos do que avanços.
Marx assinou artigos sobre as jornadas revolucionárias em Paris, a partir de fevereiro de 1848. O fervor inicial levou-o a dizer que “a vitória do povo é mais indubitável do que nunca” (n. 27, 27/6/48). Depois, com a derrota da rebelião em fins de junho, referiu-se à superioridade “da força bruta” e à traição da burguesia que ficou “do lado do opressor” (n. 29, 29/6/48). Porém, fez a ressalva de que os ideais do proletariado e dos trabalhadores não foram abatidos ou vencidos, pois as lutas não cessariam: “O profundo precipício que se abriu diante de nós pode enganar os democratas, pode nos fazer presumir que as lutas pela forma do Estado sejam vazias de conteúdo, ilusórias, vãs? Só espíritos fracos, covardes, podem levantar a questão. As colisões que resultam das condições da própria sociedade burguesa devem ser enfrentadas, não poder ser fantasticamente eliminadas. A melhor forma de Estado é aquela em que os antagonismos sociais não são esbatidos, não são agrilhoados pela força, ou seja, artificialmente, isto é, só aparentemente. A melhor forma de Estado é aquela que os leva à luta aberta, e só com ela à resolução” (Marx, 2010b, p. 129).
Não haveria outro caminho senão o de estruturar o movimento operário até transformá-lo em movimento de classe organizado e suficientemente fortalecido para contrapor-se à ordem burguesa e derrogar o capitalismo. Essas formulações de Marx e Engels, inspiradas no Manifesto do Partido Comunista, vinculam o comunismo ao quadro histórico real das lutas revolucionárias do proletariado pela dissolução da propriedade privada, base do poder da classe burguesa que a detém (Netto, 2012, p. 463). À imprensa de esquerda cabia ser o centro irradiador das orientações ideológicas que visavam dar coesão ao movimento.
No decorrer de 1848, Marx já era reconhecido como revolucionário, não apenas pela militância e pelos escritos sobre emancipação, a partir da percepção do protagonismo do proletariado como sujeito histórico, mas também por sua atuação à frente da Nova Gazeta Renana. As dificuldades financeiras eram compensadas pela crescente influência do jornal junto a setores progressistas.
Outro dos seus biógrafos, Jonathan Sperber (2014, p. 255) observa que Marx “almejava se tornar uma figura de destaque na cena política nacional e o público leitor da Nova Gazeta Renana crescia progressivamente dentro do país, como pode ser observado pelas cartas que não paravam de chegar à redação (…).” E vai além: “Embora incapaz de definir diretamente o rumo dos eventos em nível nacional, a dinâmica da revolução garantiu a Marx uma ampla oportunidade de concretizar seu profundo desejo de promover uma insurreição (…). Nesse lugar [Nova Gazeta Renana], ele se dedicou à política de ataque aos mesmos inimigos e à busca pela maioria dos mesmos objetivos que nortearam sua carreira no período entre 1842 e 1843, com a diferença de que o fazia então de forma mais aberta, veemente e radical”.
Em seus textos, Marx mesclava talento literário com interpretações contundentes, reflexões filosóficas e apartes irônicos ou zombeteiros. Como no artigo “A revolução de Colônia” (n. 115, 13/10/1848), em que atacou a pusilanimidade da imprensa do capital no endosso à repressão ao levante popular na cidade: “A “revolução de Colônia”, de 25 de setembro, foi uma festa de carnaval, conta-nos a Gazeta de Colônia, e a Gazeta de Colônia tem razão. Em 26 de setembro, o “Comando Militar de Colônia” representou Cavaignac [general que, investido de poderes ditatoriais, liderou a violenta repressão que sufocou a insurreição dos operários parisienses, em junho de 1848]. E a Gazeta de Colônia admira a sabedoria e a moderação do “Comando Militar de Colônia. Mas, quem é mais burlesco – os trabalhadores, que em 25 de setembro se exercitavam nas barricadas, ou Cavaignac, que em 26 de setembro, com a mais solene gravidade, declarou o estado de sítio, suspendeu os jornais, desarmou a Guarda Civil, proibiu as associações? Pobre Gazeta de Colônia! O Cavaignac da “revolução de Colônia”. Pobre Gazeta de Colônia! Deve levar a “revolução” na brincadeira, e deve levar a sério o “Cavaignac” dessa revolução jocosa. Tema penoso, ingrato, paradoxal!”
Sem falar numa característica que teria plena ressonância ao longo de sua obra: o rigor com a escrita, que o levava a reescrever várias vezes os textos, até conseguir acalmar a impiedosa autocobrança. Anos depois, Engels realçaria que as façanhas editoriais de Marx equivaleram ao seu momento mais auspicioso como jornalista: “Nenhum jornal alemão, de antes ou depois, jamais teve o mesmo poder e influência, nem conseguiu eletrizar as massas proletárias tão efetivamente quanto a Nova Gazeta Renana. E devemos isso sobretudo a Marx” (Engels apud Hunt, 2010, p. 193).
A Nova Gazeta Renana não circulou entre 27 de setembro e 11 de outubro de 1848, já na vigência do estado de sítio decretado pelo governo prussiano. Desde julho, Marx e Engels vinham sendo indiciados em inquéritos judiciais, sob a alegação de instigarem à revolta e à subversão contra a ordem constituída. O jornal voltou a sair em 12 de outubro e, daí em diante, amargou a penúria. Os poucos investidores desertaram após a publicação de um texto sarcástico de Engels sobre a Assembleia Nacional recém-eleita em Frankfurt, o que lhe valeu um mandado de prisão, do qual escapou fugindo temporariamente para Berna, na Suíça.
Censura e liberdade de imprensa
A situação complicou-se ainda mais com a nova lei de imprensa, que incluía a censura no rol das medidas punitivas. Na edição de 15 de março de 1849, Marx denunciou que periódicos de várias províncias do país, inclusive de Berlim, tinham sido ou estavam sendo censurados. Ele ressaltou a omissão e a conivência de empresas jornalísticas: “A imprensa diária alemã é a mais irresoluta, sonolenta e covarde instituição existente sob o sol! As maiores infâmias podem ocorrer debaixo de seu nariz, contra ela mesma, e ela cala, oculta tudo; se não descobríssemos por acaso, pela imprensa certamente nunca ficaríamos sabendo que a graça divina trouxe à luz em alguns lugares magníficas violetas de março. (…) A reintrodução da censura e o aperfeiçoamento da censura comum pela militar certamente são temas que interessam de perto à imprensa. E a imprensa das cidades próximas. A imprensa de Breslau, de Berlim, de Leipzig trata-os como se tudo isso fosse óbvio! Na verdade, a imprensa alemã continua sendo a velha “boa imprensa”. (Marx, 2010b, p. 506-507)
A enérgica defesa da liberdade de imprensa marcou a trajetória jornalística de Marx. Sem a garantir de informar com transparência e criticar com independência, ele insistia, a imprensa se torna refém de interesses comerciais e industriais que afetam sua credibilidade. Nesse sentido, afirmou que os pseudodefensores burgueses da liberdade de imprensa queriam apenas mesquinhos “três oitavos de liberdade”, de modo a proteger egoisticamente suas conveniências.
Por ter sofrido na pele as consequências do ódio ao pluralismo e do cerco à liberdade de expressão, típicos de governos autoritários, Marx repudiava veementemente a censura. Numa série de seis artigos publicados em maio de 1842 na Gazeta Renana, enalteceu a liberdade de imprensa como um dos direitos universais da humanidade (Marx, 2000, p. 9-99). Para ele, a imprensa censurada produz um efeito desmoralizador: “O vício da hipocrisia é inseparável dela e, além disso, é desse vício que surgem todos os seus outros defeitos, pois inclusive sua capacidade de virtude básica perde-se através do revoltante vício da passividade, mesmo se visto esteticamente”.
Tais vícios, em seu entender, desviam e isolam o povo da vida política e da consciência crítica. Em contraste, “a imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas”. Confrontou a essência ética da imprensa livre com a intolerância e o obscurantismo da censura, “que é um ataque constante contra os direitos das pessoas privadas e contra as ideias”. E completou: “O caráter de uma imprensa censurada é a falta de caráter da não liberdade; é um monstro civilizado, um aborto perfumado. Necessitamos maiores provas de que a liberdade de imprensa corresponde à essência da imprensa e que a censura é uma contradição dela? Não é evidente que restrições externas à vida intelectual não fazem parte desse caráter íntimo, pois elas negam tal vida em vez de afirmá-la?” (ibid., p. 70).
Em 7 de fevereiro de 1849, defendendo-se perante o Tribunal de Colônia no processo por insultos ao procurador-geral na Nova Gazeta Renana, Marx declarou a imprensa deve ficar contra o poder opressor e a favor dos que têm direitos vilipendiados: “Mas, de uma vez por todas, é dever da imprensa tomar a palavra em favor dos oprimidos à sua volta. E também, cavalheiros, a casa da servidão tem seus próprios alicerces nas autoridades políticas e sociais subordinadas, que confrontam diretamente a vida privada da pessoa, o indivíduo vivo. Não basta combater as condições gerais e as altas autoridades. A imprensa precisa decidir entrar na liça contra este policial em particular, este procurador, este administrador municipal. Onde foi se espatifar a Revolução de Março? Ela reformou apenas a mais alta cúpula política, ela não tocou as bases desta cúpula – a velha burocracia, o velho exército, os velhos tribunais, os velhos juízes que nasceram, foram treinados e ficaram grisalhos no serviço do absolutismo.” Concluiu com uma frase que calou o salão de julgamentos do tribunal: “O primeiro dever da imprensa é minar agora todas as bases do sistema político existente” (Marx, 2000, p. 117-118).
Diante da recusa dos jurados em condená-lo, o governo agiu para silenciar de vez o jornal. Forjou um relatório acusando Marx de caluniar autoridades do Estadoe estar envolvido nos preparativos de uma nova insurreição. Ele rebateu a acusação no discurso de defesa apresentado em 14 de fevereiro de 1949: “Basta olhar de relance o artigo incriminado para se persuadir de que a Nova Gazeta Renana, muito longe de qualquer intenção de ofensa ou calúnia, apenas cumpriu seu dever de denunciar quando atacou o atual Parquet e os gendarmes. O interrogatório das testemunhas lhes provou que, quanto aos gendarmes, apenas relatamos os fatos reais.” (Marx, 2010b, p. 467). Não adiantou. O pretexto invocado serviu para expulsá-lo do país e interditar a Nova Gazeta Renana. O jornal encerrou suas atividades com uma célebre edição em 19 de maio de 1849. Como forma de protesto, Marx mandou imprimir todas as páginas em vermelho. Um sucesso. Reimpressa várias vezes, alcançou a expressiva vendagem de 20 mil exemplares.
Na década de 1850, já exilado em Londres, Marx cumpriu outro período relevante de sua produção jornalística. De 1851 a 1852, colaborou com o jornal norte-americano Die Revolution, publicando em fragmentos O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, no qual analisa a passagem da Revolução de 1848, na França, para o golpe de Estado comandado três anos depois, em 2 de dezembro de 1851, por Luís Napoleão, iniciando o segundo Império no país como Napoleão III.
De 1852 a 1862, Marx trabalhou como correspondente europeu do New York Tribune, à época um dos primeiros do planeta em tiragem e o mais popular dos Estados Unidos. Ele escreveu 362 artigos e crônicas, aos quais se somaram 125 colunas assinadas pelo filósofo Tréveris (nome da cidade da Renânia na qual Marx nasceu em 5 de maio de 1818) e pelas quais era remunerado, embora fossem escritas, na verdade, por Friedrich Engels. Foi uma maneira adicional que Engels encontrou de ajudar o amigo em seus persistentes apuros financeiros, já que, periodicamente, lhe fazia remessas de dinheiro. A passagem de Marx pelo New York Tribunefoi marcante, a começar pelo fato de seu nome aparecer com frequência nas chamadas da primeira página.
“Muitas vezes os editores usavam textos de Marx como seus editoriais de abertura, que ditavam o tom do Tribune em qualquer dia da semana. Marx suscitou controvérsias com alguns de seus relatos – especialmente quando atacava cinicamente heróis da independência como Kossuth ou Mazzini – e de vez em quando reclamava que seus artigos eram editados e saíam com um tom mais baixo.” (Gabriel, 2013, p. 185)
Entre os temas dos seus artigos, estavam o mercado mundial, crises econômicas, disputas políticas, guerra civil nos Estados Unidos e a situação das classes trabalhadoras. De outubro de 1857 a maio de 1858, Marx alternou o trabalho como jornalista com a elaboração dos textos de crítica à economia política que resultaram nos Grundrisse (1858), depois reelaborados até dar origem aos três tomos de O capital. Na apreciação de Pino (2014, p. 118), “sem a ampliação temática de seus estudos, sem a enorme acumulação de material empírico obtida durante este período graças ao trabalho como correspondente, Marx não teria conseguido levar sua teoria à dimensão global presente nos Grundrisse”.
“O cão de guarda público”
Com o passar do tempo, Marx ampliou o raio de alcance de suas posições através do jornalismo, assumindo uma postura crítica radical e associando a filosofia política à formação da consciência de classe do proletariado. No discurso perante o Tribunal de Colônia, Marx demarcou a missão da imprensa a serviço da revolução social: “É o cão de guarda público, o denunciador incansável dos dirigentes, o olho onipresente, a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme a sua liberdade” (Marx, 2000, p. 113-114).
Na avaliação de Marx, a maioria dos jornais tradicionais legitima os valores burgueses, já que a burguesia é quem dispõe dos meios determinantes de produção econômica e cultural. Os jornalistas afinados ou subservientes às elites e instituições hegemônicas desempenham, a seu ver, dois papéis: integram a brigada de ideólogos da classe dominante e epígonos dos interesses da burguesia e da tirania das finanças que fundamenta a trágica acumulação de riqueza e renda. É o “jornalismo mercenário”, como o definiu no artigo “Provocações governamentais” na Nova Gazeta Renana (n. 245, 14/3/1849).
Daí o convencimento incompatibilidades entre liberdade de imprensa e a produção jornalística para o mercado, que submete a livre expressão aos desígnios das empresas do setor, o que implica, via de regra, a sua degradação pela interdição ideológica e por frequentes distorções nos noticiários. “De fato, o que resta da liberdade de imprensa quando não se pode expor ao desprezo público aquilo que merece o desprezo público?”, indagou em artigo na Nova Gazeta Renana (n. 50, 20/7/1848).
A partir das concepções de Marx, não restam entraves ao entendimento de que os meios vinculados a grupos econômicos têm sempre caráter de classe e tomam partido na luta político-ideológica, não apenas quando encampamos pressupostos do mercado e disseminam a lógica do lucro e do consumo, como também quando sufocam o contraditório, neutralizam dissonâncias, debilitam resistências e desqualificam vozes de contestação ao sistema de poder e ao modo de produção capitalista. Ele próprio, depois de oito anos à frente da Associação Internacional dos Trabalhadores desde 1864, se tornou alvo da fúria da grande imprensa reacionária europeia, que o estigmava com o epíteto de “doutor do terror vermelho”, por defender a Comuna de Paris em A guerra civil na França, de 1871.
Em perspectiva, o sentido observado pelo Marx teórico e vivenciado pelo Marx jornalista aponta na direção de uma imprensa contra-hegemônica, que cumpre função estratégica na árdua batalha das ideias e capaz de auxiliar os trabalhadores a apreenderem criticamente as contingências e contradições do real histórico, no esforço continuado de tentar organizá-los para superar, no limite das possibilidades de enfrentamento, o fardo de um mundo reificado e hostil.
O jornalismo torna-se, por conseguinte, uma arma essencial à intervenção na realidade e no curso dos embates sociopolíticos. Na visão de Marx, cabe a jornalistas comprometidos com a luta anticapitalista noticiar os fatos com veracidade, contemplar reivindicações sociais e sintonizar-se com a linguagem e os processos da vida real (Marx e Engels, 2007, p. 93-94). Um jornalismo que identifique, contextualize e esclareça as razões dos antagonismos e conflitos que atravessavam sociedades cindidas em classes e submetidas a desigualdades e exclusões as mais infames.Trata-se assim de veicular ideias, valores e conteúdos que possam servir de combustível para acelerar mobilizações por mudanças estruturais na sociedade.
* Dênis de Moraes, jornalista e escritor, é autor, entre outros livros, de Poder midiático e disputas ideológicas (Consequência, 2019);
* O presente artigo é uma versão revista e alterada de texto incluído no livro Crítica da mídia e hegemonia cultural (Mauad, 2016).
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