Por Emiliano José, na revista Teoria e Debate:
Conjuntura não é coisa fácil de lidar. Provoca tombos, escorregões, arranhões, contusões. Escapar de tudo isso, não é simples. Quase impossível. Viver é arriscoso, analisar conjuntura também. Para redução de danos, aconselha-se não só a leitura dos mais próximos, como dos mais antigos. É de Gramsci o conselho de saber distinguir os chamados movimentos orgânicos, relativamente permanentes, dos considerados movimentos de conjuntura.
Não vou estender-me quanto a isso. Só aproveitar-me um pouco do conselho do comunista italiano, o maior marxista ocidental do século 20, quando ele trata da análise das situações, da relação de forças. Meu interesse aqui é sobre nossa mídia monopolista empresarial, envolvendo redes de televisão, jornais, emissoras de rádio, e de modo especial a Rede Globo, de seu papel na conjuntura, vista num horizonte temporal mais largo.
Ao falar em movimentos orgânicos, relativamente permanentes, como Gramsci o faz, penso na nossa mídia monopolista empresarial. Tem tempo, muito tempo, desde o seu nascedouro, observa-se a ligação profunda dela com os interesses das classes dominantes no Brasil. Jamais se colocou ao lado das classes exploradas, e se isso é obviedade, não custa insistir. Nas muitas flutuações da conjuntura, e conjuntura é celeiro fértil para flutuações, há essa constante quando pensamos na mídia brasileira, e em um de seus produtos, o jornalismo.
Se ela varia, se há movimentos permanentes, mudanças constantes, e há, mantém, não obstante, um movimento orgânico absolutamente constante: nunca se afastar das classes dominantes. Melhor, compor tais classes e defender rigorosamente seus interesses. Essa, me parece, é a única maneira de retirar o véu a recobri-la com o manto da imparcialidade, jamais existente. Única maneira de deixá-la nua – é melhor essa formulação. Desnudá-la.
Sempre disse: a mídia monopolista no Brasil tem uma atuação política acentuada. Configura-se como partido político. Não estou dizendo novidade. Claro, o Brasil não é exceção. Mas, no nosso caso, a intervenção política é feita a céu aberto, sem esforço para dissimulação, ao menos como regra geral. Peço desculpas aos leitores, por voltar a Gramsci, novamente.
Um jornal ou um grupo de jornais, uma revista ou um grupo de revistas são também “partidos” ou frações de partido ou função de determinado partido – é dizer dele. É só pensar, diz, na função do Times, da Inglaterra, ou do Corriere della Sera, da Itália, e também na chamada imprensa de informação, que se dizia apolítica, e mesmo na imprensa desportiva e na imprensa técnica.
Não é necessário gastar muito espaço para falar no papel da Rede Globo, cuja partidarização vem desde o início de sua existência, ou de seus primórdios, quando o jornal O Globo atuava com os mesmos propósitos. E não apenas tal rede e seus tentáculos, mas o conjunto dessa mídia. Diferenciá-la, encontrar singularidades, é justo e necessário, mas sem esquecer sua compacta unidade quando se trata dos interesses centrais dos de cima, quando, no Brasil recente, se trata dos interesses do neoliberalismo. E não me refiro apenas às redes de televisão. Os jornais estão aí, solidários.
Digo tudo isso porque durante o atual governo houve alarido com movimentos da mídia de críticas às vezes ácidas contra o presidente Bolsonaro, envolvendo a própria Rede Globo, jornais, revistas e emissoras de rádio, sem que houvesse qualquer esforço para reter o que nessa mídia era orgânico, estrutural, constante. Parecia termos agora a mídia contra o presidente neofascista. Engano. Fatal engano. Sobre essa mídia, já acalentamos ilusões. Melhor sepultá-las.
Há de se indignar e se manifestar quando a Folha de S. Paulo publica um editorial vergonhoso, apequenado, falso, inconsistente, calunioso contra a presidenta Dilma Rousseff. Surpreender-se, não. O jornal tem uma trajetória coerente. Teve sólida aliança com a ditadura. A presidenta lembrou isso na carta-resposta ao infamante editorial – simbolicamente, suas camionetes serviam diligentemente aos órgãos de repressão. E nunca vacilou na defesa do neoliberalismo. Dispenso-me de longa argumentação. Recomendo apenas a leitura de um livro, a deixá-la nua: Cães de Guarda: jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988. O título não faz justiça à grandeza da publicação. É o desmascaramento histórico do jornal, feito pela notável Beatriz Kushnir.
Há uma unidade compacta de nossa mídia empresarial. Claro, estou atento às singularidades, à atuação de tantos jornalistas capazes de, numa matéria ou outra, furar o bloqueio, e revelar coisas essenciais. Atento, inclusive, à defesa de alguns valores morais progressistas. Isso, no entanto, não altera o essencial, o movimento orgânico de nossa mídia. De alguma forma, tratei disso em artigo publicado no livro Brasil: incertezas e submissão?, publicado pela Fundação Perseu Abramo. Tantos autores discutiam os três primeiros meses de Bolsonaro.
Falei das novas mídias, de como o atual presidente soube lidar com elas, muita coisa. E das contradições entre ele a Rede Globo e da defesa feita por ela de algumas bandeiras compartilhadas pela esquerda no terreno de valores, como até certo o combate ao racismo. No meio dessa tempestade, eu perguntava: qual a diretriz estratégica da mídia tradicional, a essência dela? E acentuava seu movimento orgânico, consistente. Senão com tais palavras, o mesmo raciocínio. Dizia: a mídia está ancorada em trincheiras sólidas. Falava especificamente do jornalismo, cuja existência não independe das estruturas econômicas de cada empresa e de sua relação com as classes dominantes.
Ressaltava algo tendente a escapar das análises recorrentes sobre nossa mídia: há fortes pontos de unidade entre o atual presidente e a mídia. Toda ela. Ela não se oporá, dizia eu, de modo nenhum, à agenda econômica neoliberal, núcleo essencial da proposta governamental. “Estará de armas nas mãos contra os pobres” – afirmava. Ela guarda na mesa de cabeceira as suas cláusulas pétreas, como denominei seus compromissos essenciais. Tem lado e nunca será o dos trabalhadores. Tem programa político e econômico, nunca negou. Firme com as teses e práticas neoliberais, o ataque aos serviços públicos, defesa das privatizações, fim dos direitos do trabalho. Não era pequena a zona de acordo entre o presidente e a mídia.
Não é pequena.
Quando Bolsonaro pensou em mexer com o teto de gastos, por razões político-eleitorais recentemente, o cão de guarda de tal teto, uníssona, a rosnar vigorosamente, foi a mídia, inconformada com qualquer atitude capaz de comprometer o modelo de absoluta submissão ao capital financeiro, e a querer manter o Estado mínimo, a precarização dos serviços públicos, o diabo fosse.
Não imaginem subestime as divergências entre parte da mídia empresarial e o atual presidente. São reais, e devem ser levadas em conta nas avaliações de conjuntura. Têm sido importantes no enfrentamento da pandemia, por exemplo, no combate à política genocida do atual governo. Mas, é preciso captar seus movimentos orgânicos essenciais, na economia e na política.
Na essência, mantém-se ao lado do atual governo quanto ao rigor da política econômica neoliberal, quanto à continuidade de todas as medidas de superexploração do mundo do trabalho, manutenção da criminosa da EC do teto de gastos, conhecida apropriadamente como PEC da Morte.
Na política: uma no cravo, outra na ferradura. Críticas, e aqui falo da Rede Globo particularmente, ao enfrentamento da pandemia, mas alinhada ao centro, colocando-se na prática contra o impeachment. E procurando no centro político uma alternativa capaz de enfrentar a esquerda em 2022, tentando dar sobrevida à Lava Jato e sua liderança Sérgio Moro, hoje fora do governo.
Adeus às ilusões.
Busca de outros caminhos.
A mídia brasileira tradicional não é aliada de projetos democráticos para o Brasil. Nunca foi.
Jamais será.
Referências
Conjuntura não é coisa fácil de lidar. Provoca tombos, escorregões, arranhões, contusões. Escapar de tudo isso, não é simples. Quase impossível. Viver é arriscoso, analisar conjuntura também. Para redução de danos, aconselha-se não só a leitura dos mais próximos, como dos mais antigos. É de Gramsci o conselho de saber distinguir os chamados movimentos orgânicos, relativamente permanentes, dos considerados movimentos de conjuntura.
Não vou estender-me quanto a isso. Só aproveitar-me um pouco do conselho do comunista italiano, o maior marxista ocidental do século 20, quando ele trata da análise das situações, da relação de forças. Meu interesse aqui é sobre nossa mídia monopolista empresarial, envolvendo redes de televisão, jornais, emissoras de rádio, e de modo especial a Rede Globo, de seu papel na conjuntura, vista num horizonte temporal mais largo.
Ao falar em movimentos orgânicos, relativamente permanentes, como Gramsci o faz, penso na nossa mídia monopolista empresarial. Tem tempo, muito tempo, desde o seu nascedouro, observa-se a ligação profunda dela com os interesses das classes dominantes no Brasil. Jamais se colocou ao lado das classes exploradas, e se isso é obviedade, não custa insistir. Nas muitas flutuações da conjuntura, e conjuntura é celeiro fértil para flutuações, há essa constante quando pensamos na mídia brasileira, e em um de seus produtos, o jornalismo.
Se ela varia, se há movimentos permanentes, mudanças constantes, e há, mantém, não obstante, um movimento orgânico absolutamente constante: nunca se afastar das classes dominantes. Melhor, compor tais classes e defender rigorosamente seus interesses. Essa, me parece, é a única maneira de retirar o véu a recobri-la com o manto da imparcialidade, jamais existente. Única maneira de deixá-la nua – é melhor essa formulação. Desnudá-la.
Sempre disse: a mídia monopolista no Brasil tem uma atuação política acentuada. Configura-se como partido político. Não estou dizendo novidade. Claro, o Brasil não é exceção. Mas, no nosso caso, a intervenção política é feita a céu aberto, sem esforço para dissimulação, ao menos como regra geral. Peço desculpas aos leitores, por voltar a Gramsci, novamente.
Um jornal ou um grupo de jornais, uma revista ou um grupo de revistas são também “partidos” ou frações de partido ou função de determinado partido – é dizer dele. É só pensar, diz, na função do Times, da Inglaterra, ou do Corriere della Sera, da Itália, e também na chamada imprensa de informação, que se dizia apolítica, e mesmo na imprensa desportiva e na imprensa técnica.
Não é necessário gastar muito espaço para falar no papel da Rede Globo, cuja partidarização vem desde o início de sua existência, ou de seus primórdios, quando o jornal O Globo atuava com os mesmos propósitos. E não apenas tal rede e seus tentáculos, mas o conjunto dessa mídia. Diferenciá-la, encontrar singularidades, é justo e necessário, mas sem esquecer sua compacta unidade quando se trata dos interesses centrais dos de cima, quando, no Brasil recente, se trata dos interesses do neoliberalismo. E não me refiro apenas às redes de televisão. Os jornais estão aí, solidários.
Digo tudo isso porque durante o atual governo houve alarido com movimentos da mídia de críticas às vezes ácidas contra o presidente Bolsonaro, envolvendo a própria Rede Globo, jornais, revistas e emissoras de rádio, sem que houvesse qualquer esforço para reter o que nessa mídia era orgânico, estrutural, constante. Parecia termos agora a mídia contra o presidente neofascista. Engano. Fatal engano. Sobre essa mídia, já acalentamos ilusões. Melhor sepultá-las.
Há de se indignar e se manifestar quando a Folha de S. Paulo publica um editorial vergonhoso, apequenado, falso, inconsistente, calunioso contra a presidenta Dilma Rousseff. Surpreender-se, não. O jornal tem uma trajetória coerente. Teve sólida aliança com a ditadura. A presidenta lembrou isso na carta-resposta ao infamante editorial – simbolicamente, suas camionetes serviam diligentemente aos órgãos de repressão. E nunca vacilou na defesa do neoliberalismo. Dispenso-me de longa argumentação. Recomendo apenas a leitura de um livro, a deixá-la nua: Cães de Guarda: jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988. O título não faz justiça à grandeza da publicação. É o desmascaramento histórico do jornal, feito pela notável Beatriz Kushnir.
Há uma unidade compacta de nossa mídia empresarial. Claro, estou atento às singularidades, à atuação de tantos jornalistas capazes de, numa matéria ou outra, furar o bloqueio, e revelar coisas essenciais. Atento, inclusive, à defesa de alguns valores morais progressistas. Isso, no entanto, não altera o essencial, o movimento orgânico de nossa mídia. De alguma forma, tratei disso em artigo publicado no livro Brasil: incertezas e submissão?, publicado pela Fundação Perseu Abramo. Tantos autores discutiam os três primeiros meses de Bolsonaro.
Falei das novas mídias, de como o atual presidente soube lidar com elas, muita coisa. E das contradições entre ele a Rede Globo e da defesa feita por ela de algumas bandeiras compartilhadas pela esquerda no terreno de valores, como até certo o combate ao racismo. No meio dessa tempestade, eu perguntava: qual a diretriz estratégica da mídia tradicional, a essência dela? E acentuava seu movimento orgânico, consistente. Senão com tais palavras, o mesmo raciocínio. Dizia: a mídia está ancorada em trincheiras sólidas. Falava especificamente do jornalismo, cuja existência não independe das estruturas econômicas de cada empresa e de sua relação com as classes dominantes.
Ressaltava algo tendente a escapar das análises recorrentes sobre nossa mídia: há fortes pontos de unidade entre o atual presidente e a mídia. Toda ela. Ela não se oporá, dizia eu, de modo nenhum, à agenda econômica neoliberal, núcleo essencial da proposta governamental. “Estará de armas nas mãos contra os pobres” – afirmava. Ela guarda na mesa de cabeceira as suas cláusulas pétreas, como denominei seus compromissos essenciais. Tem lado e nunca será o dos trabalhadores. Tem programa político e econômico, nunca negou. Firme com as teses e práticas neoliberais, o ataque aos serviços públicos, defesa das privatizações, fim dos direitos do trabalho. Não era pequena a zona de acordo entre o presidente e a mídia.
Não é pequena.
Quando Bolsonaro pensou em mexer com o teto de gastos, por razões político-eleitorais recentemente, o cão de guarda de tal teto, uníssona, a rosnar vigorosamente, foi a mídia, inconformada com qualquer atitude capaz de comprometer o modelo de absoluta submissão ao capital financeiro, e a querer manter o Estado mínimo, a precarização dos serviços públicos, o diabo fosse.
Não imaginem subestime as divergências entre parte da mídia empresarial e o atual presidente. São reais, e devem ser levadas em conta nas avaliações de conjuntura. Têm sido importantes no enfrentamento da pandemia, por exemplo, no combate à política genocida do atual governo. Mas, é preciso captar seus movimentos orgânicos essenciais, na economia e na política.
Na essência, mantém-se ao lado do atual governo quanto ao rigor da política econômica neoliberal, quanto à continuidade de todas as medidas de superexploração do mundo do trabalho, manutenção da criminosa da EC do teto de gastos, conhecida apropriadamente como PEC da Morte.
Na política: uma no cravo, outra na ferradura. Críticas, e aqui falo da Rede Globo particularmente, ao enfrentamento da pandemia, mas alinhada ao centro, colocando-se na prática contra o impeachment. E procurando no centro político uma alternativa capaz de enfrentar a esquerda em 2022, tentando dar sobrevida à Lava Jato e sua liderança Sérgio Moro, hoje fora do governo.
Adeus às ilusões.
Busca de outros caminhos.
A mídia brasileira tradicional não é aliada de projetos democráticos para o Brasil. Nunca foi.
Jamais será.
Referências
GRAMSCI, Antonio. Obras Escolhidas, Volume I. Lisboa: Editorial Estampa, 1974. Para discussão sobre conjuntura/estrutura, p. 323. Para jornalismo e partido político, p. 285.
JOSÉ, Emiliano. “Governo mambembe, militares no comando, mídias divididas: um país em busca da hegemonia perdida”. In AZEVEDO, José Sérgio Gabrielli de; POCHMANN, Marcio (orgs.). Brasil: incertezas e submissão? São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2019, 440 p. (Disponível em pdf)
JOSÉ, Emiliano. Intervenção da Imprensa na Política Brasileira (1954-2014). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015, 184 p. (Disponível em pdf)
KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, 405 p.
* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros.
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