sexta-feira, 11 de setembro de 2020

O nacionalismo de Bolsonaro

Por Armando Boito Jr., no site A terra é redonda:

Por ocasião do 7 de Setembro, o campo democrático e popular deparou-se novamente com a questão: o Governo Bolsonaro e o movimento que o apoia é, de fato, nacionalista? Alguns intelectuais e agrupamentos de esquerda respondem negativamente a essa questão. Afirmam que o nacionalismo de Bolsonaro é vazio, demagógico ou que não seria um “verdadeiro nacionalismo”. Não pensamos que essa seja uma maneira correta de analisar a questão e vamos tentar explicar por que.

A dúvida de alguns sobre o nacionalismo de Bolsonaro deve-se, como se sabe, ao fato de o seu governo ser entreguista no plano da economia e subserviente aos Estados Unidos no plano da política externa. Lembremos que ele deu sequência, nessa matéria, ao que fora iniciado pelo Governo Temer: alinhamento com a política dos EUA para a América Latina, desnacionalização dos aeroportos; venda de parte da Petrobrás; modificação, a pedido das petroleiras internacionais, do regime de exploração do petróleo do pré-sal; entrega da Base de Alcântara aos Estados Unidos etc.

Mas, aqui, já se pode observar um fato interessante: o Governo Temer era entreguista, tal qual o de Bolsonaro, mas o primeiro, diferentemente do segundo, não ostentava um discurso nacionalista. Praticava discretamente o entreguismo, enquanto o Governo Bolsonaro pratica-o alardeando nacionalismo. E pensar que se trata justamente do presidente que fez continência para a bandeira estadunidense! Temos algo novo aí. Mera demagogia para enganar as massas? Não cremos.

O nacionalismo de Bolsonaro tem substância própria e pode, a justo título, reivindicar-se nacionalista. Não se trata de um discurso usurpador. Por que? Porque existem vários tipos de nacionalismo e todos eles, sem exceção, descendem de um tronco comum. O tronco comum é a ideia de nação que todos os nacionalismos compartilham, a despeito de poderem, na luta de ideias e na luta prática, colocarem-se em campos opostos.

Qual ideia de nação é essa? A de um coletivo de cidadãos, habitantes de um mesmo território e que seriam dotados de valores e interesses comuns. Essa ideia de comunidade de interesses e de valores não decorre do território, de uma língua ou de uma história comum. Há povos que falam a mesma língua e estão organizados em nações diferentes, como há nações cuja população fala diferentes línguas. Tampouco decorre de perfis culturais e psicológicos que abrangeriam todo um “povo”. Essa concepção culturalista de povo ou de nacionalidade não encontra apoio empírico nas nações modernas. Qual é o traço cultural ou o perfil psicológico que caracterizaria o conjunto dos brasileiros? A cordialidade, a extroversão e a hospitalidade, como ainda acreditam alguns? Fosse assim, o Brasil não teria produzido o bolsonarismo.

Na verdade, a nação, como unidade política e como ideia, foi uma criação das revoluções políticas burguesas. Como? Realizando duas transformações jurídicas e políticas que, combinadas, produziram aquele resultado.

Aquela revolução dissolveu as antigas ordens (de um lado, homens livres, de outro, servos ou escravos) e estamentos (nobres e plebeus) e implantou a igualdade jurídica entre os cidadãos. Essa transformação abriu caminho para a segunda que consistiu em liquidar o monopólio que a classe dominante detinha dos postos do Estado – monopólio que era viabilizado pela reserva, legalmente estabelecida, de tais postos à ordem superior (homens livres) ou até mesmo apenas ao estamento superior da ordem superior (nobres) – e substituí-lo pela abertura formal, jurídica, de tais postos a indivíduos egressos de todas as classes sociais.

Operário, camponês, profissional de classe média, industrial ou banqueiro, nada obsta – do ponto de vista jurídico – que qualquer um deles assuma qualquer posto em qualquer um dos ramos do Estado. Na prática, a grande maioria dos postos de mando é ocupada por indivíduos provenientes de famílias burguesas ou abastadas, mas seria um erro concluir daí que nada mudou. O fato de tais postos serem juridicamente acessíveis para os indivíduos provenientes de famílias das classes trabalhadoras e o fato de que, embora minoritariamente, indivíduos egressos das classes populares ocupem, de fato, altos postos de mando no Estado, esses fatos produzem efeitos ideológicos fundamentais.

O resultado da dupla transformação é o seguinte. Os indivíduos se tornam formalmente iguais, e por isso potencialmente dotados de interesses que seriam comuns, e o Estado, que aparentemente a todos acolhe, pode se apresentar como se fosse a instituição que a todos representa. Forma-se, então, o coletivo imaginário que denominamos “nação”.

O coletivo é imaginário porque esses cidadãos habitantes de um mesmo território estão divididos, já que esposam valores e possuem interesses conflitantes ou contraditórios: valores e interesses de classe, de gênero, de raça etc. Em tal situação, isto é, num cenário em que a grande maioria se vê como integrante do coletivo nacional e o valoriza, a tendência é que as classes e demais segmentos sociais, caso não rompam com a ideologia da nação, procurem torcê-la para colocá-la a serviço dos seus valores e interesses específicos. Esse é o caminho para apresentar como universais valores e interesses que, de fato, são particulares – caminho espontaneamente buscado pela maioria das ideologias.

Nos países imperialistas, a burguesia, e os aliados que ela lograr conquistar nas classes dominadas, irão esgrimir a ideia de interesses nacionais para legitimar políticas imperialistas que negam aos povos oprimidos o direito à afirmação nacional. É nacionalismo negando nacionalismo. Nos países dependentes, as classes dominadas podem lançar mão da ideia de nação para legitimar um nacionalismo econômico e político, visando ao usufruto das riquezas do território nacional pela grande maioria dos seus habitantes e visando à necessária soberania do Estado nacional para lograr o controle de tais riquezas. Esse será um nacionalismo democrático e popular, oposto ao nacionalismo imperialista anteriormente citado.

Tem mais. Um governo ou regime fascista poderá, como a história ilustra à saciedade, lançar mão da ideia de nação, esse coletivo imaginário, homogêneo e legitimado pela grande maioria, para combater e criminalizar a luta de classes – entenda-se: a luta da classe operária pelo socialismo. Hitler e Mussolini foram nacionalistas. Em seu livro Lições sobre o fascismo, o dirigente comunista italiano PalmiroTogliatti sustenta que o elemento ideológico mais importante do fascismo é o “nacionalismo exacerbado”.

O nacionalismo do Governo Bolsonaro e do bolsonarismo é um nacionalismo de tipo fascista. Ele consiste em lançar contra os movimentos de trabalhadores, de mulheres, de negros, contra a população indígena e LGBT a acusação de que estão dividindo e conspurcando a nação. O raciocínio dos bolsonaristas – na verdade, o seu procedimento instintivo já que o ideólogo pratica a sua ideologia sem conhecê-la – é este: a nação – no caso, o Brasil – é um coletivo homogêneo e aqueles que minam, corrompem e ameaçam essa homogeneidade devem ser combatidos como se combatem os criminosos. É um nacionalismo retrógrado e autoritário.

Recorrendo ao coletivo nacional imaginário, pretendem universalizar sua ideologia pró-capitalista, racista e patriarcal que seriam, para os bolsonaristas, os atributos da nacionalidade brasileira. Desprovido de um programa de afirmação da economia e do Estado brasileiro no cenário internacional, esse nacionalismo se expressa, seguindo o Governo Trump, no discurso contra o globalismo, contra as instituições multilaterais, e no mero fetiche de símbolos nacionais – a camisa amarela, a bandeira etc. Mas, o nacionalismo de Bolsonaro não é falso e nem demagógico, ele é conservador, fascista, uma das variantes possíveis da ideologia nacional.

As variantes da ideologia nacionalista são muitas e, embora diferentes e até antagônicas, descendem de um tronco comum. É possível fazer algumas generalizações que contribuam para discernir tais variantes. Nos países centrais, a ideologia nacional é no geral reacionária. A resposta conhecida dos operários europeus a essa ideologia foi o internacionalismo proletário e a negação de laços nacionais que uniriam classes antagônicas.

Nos países dependentes, a ideia de nação ainda tem um papel progressista a cumprir na primeira fase do processo revolucionário desses países. Tanto as tarefas dessa fase, quanto as forças que a integram em razão de sua inserção econômica e social, induzem a coesão do movimento revolucionário com o recurso à ideologia nacional. Esse movimento poderá falar em nome do “povo brasileiro”, mas o povo aqui é definido politicamente e não de modo culturalista. A ideia de povo e de nação expressará uma aliança política de classes que poderá reunir as classes populares – operariado, campesinato, classes médias, trabalhadores da massa marginal – e até de setores burgueses, como as pequenas e médias empresas. Assim, em tais países, podemos encontrar um nacionalismo democrático e popular, embora também haja espaço para o nacionalismo fascista.

Mas os revolucionários da África, da Ásia e da América Latina não podem se esquecer que a nação é uma criação da burguesia e que o objetivo do movimento operário socialista sempre foi o de superar a divisão nacional. Tal divisão é, no plano político e ideológico, uma criação das revoluções burguesas e uma realidade própria do capitalismo. Superar o capitalismo implica a superação do Estado nacional.

É certo que seria ilusão pleitear, aqui e agora, uma instituição supranacional e soberana – se tal instituição chegasse a existir, ela estaria sob o controle de uma ou mais potência imperialista. Contudo, tampouco se pode perder de vista que, já hoje, problemas candentes da humanidade – citemos apenas a crise ambiental e climática – não podem ser resolvidos dentro dos limites estreitos impostos pelos Estados nacionais.

* Armando Boito é professor titular de ciência política na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Estado, política e classes sociais (Unesp).

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