Há uma pesquisa muito curiosa empreendida por dois psicólogos e professores universitários norte-americanos nos anos 1990, sobre a ignorância ou incompetência auto-satisfeita. Eram eles David Dunning e Justin Kruger, e sua pesquisa levou à formulação do chamado “Efeito Dunning-Kruger”. Basicamente, ele consiste na assertiva de quanto mais uma pessoa é ignorante ou incompetente a respeito de um assunto, pode-se tornar mais difícil o auto-reconhecimento da própria ignorância ou incompetência.
Eles partiram do estudo de um caso concreto, do assaltante MacArthur Wheeler, que roubou dois bancos no mesmo dia. Filmado pelas câmeras locais, identificado, ele foi detido, e mostrou-se genuinamente surpreso por ter sido descoberto. Ele cobrira a própria face com suco de limão, acreditando que isto a tornaria invisível. Partira do conhecimento de que o suco de limão serve como uma tinta invisível, ao ser escrita sobre uma folha de papel, visível apenas depois desta ser aquecida. A questão é que este conhecimento, que é real, transformou-se num “conhecimento”, e a seguir numa “certeza”, completamente irreal, de que, se o suco de limão torna-se invisível no papel, ele torna invisível, digamos, o próprio papel, ou o rosto que ele cobre.
O mal-sucedido Wheeler chegou a argumentar com uma experiência “científica”: ele tirara uma foto de seu rosto coberto com o suco, e o rosto não aparecera na fotografia. Depois de alguma pesquisa, a dupla Dunning-Kruger chegou à conclusão de que, com os olhos cegados devido ao suco e sua ardência, Wheeler não conseguira focar o próprio rosto, tirando, na verdade, uma foto do teto acima dele.
A pesquisa e as conclusões dos dois professores universitários foram alvo de várias contestações. Eles enveredaram por um caminho espinhoso, qual seja, o de buscarem fórmulas matemáticas que quantificassem a relação entre ignorância, ou incompetência, e a incapacidade de reconhecê-la. Deram com os burros n’água, ou bateram numa parede. As fórmulas matemáticas são precisas e imutáveis, enquanto o comportamento de pessoas erráticas é exatamente isto: errático, impreciso e mutante.
Porém houve corolários interessantes. Um deles foi desenvolvido pelo pesquisador Ben Debney, da Western Sidney University, na Austrália. No seu paper, “Adolf Hitler: a Political Archetype of the Dunning-Kruger Effect”, ele mostra como, além do poder do auto-convencimento (quando o futuro Führer alega que sua incapacidade como pintor e arquiteto deriva do perigo judeu-marxista), o auto-convencido consegue “demonstrar” a hipótese para outros, transformando-a numa tese bem sucedida. O Efeito D-K prova-se, assim, coletivamente contagiante.
Mais: a afirmação da própria ignorância para o coletivo que se atinge, torna-se a prova de uma forma “superior” de conhecimento, e não apenas do ponto de vista “científico”, mas também “moral”. Basta, como no exemplo histórico citado, encontrar as fórmulas de convencimento adequadas, movidas pela própria esperteza e capacidade de manipulação de argumentos e sentimentos – no caso da Alemanha da década de 1930 e do Brasil de hoje – aqueles do ressentimento. Bolsonaro e sua quadrilha fazem isto com maestria, o que não anula sua estupidez e a de todos, de Damares a Salles, de Araújo a Pazuello, de Ramos aos seus filhos, etc., porque, se aquela é o contrário da inteligência, não o é da esperteza nem da canalhice.
Assim, temos um governo que em dois anos de existência nada fez de bom, só propagou a destruição do precário tecido de bem-estar social que fora construído a partir da Constituição de 1988 (nisto foi precedido pelo governo golpista e também estúpido, embora mais seboso e ensebado, de Michel Temer), além de destruir o prestígio internacional da política externa brasileira, construído a partir de Rio Branco, senão de antes, com o governo conservador, mas lúcido de Pedro II.
O problema não para aí. Se o governo de Bolsonaro é causa de malfeitos, ele também é efeito. Como qualificar a estupidez de nossa mídia mainstream, provinciana, carregada de preconceitos, industriando o que sabe ser uma mentira, sobre a invenção da corrupção pela esquerda brasileira? Ou louvando o completo fracasso das políticas neoliberais no mundo inteiro, como o sucesso da ordem e do progresso? Como qualificar a aceitação de tais teses por parte do nosso sistema judiciário, que vai de juízes de primeira instância ao Supremo, suportando os desmandos da Lava-Jato e do golpe contra Dilma Rousseff? O que fazer com a hipocrisia dos pastores das trevas, que usam o nome de Cristo para banir os princípios da pregação demoníaca com que industriam a ignorância mais opaca? Com os militares, agora enlevados pela possibilidade de condecorarem seus futuros pijamas com algumas boquinhas salariais a mais? E ponhamos etc. nisto.
Em suma, ao cabo destes dois anos estamos mal-parados, às voltas com uma pandemia fora de controle e de uma epidemia descontrolada de promoção da ignorância, da incompetência e da estupidez auto-satisfeitas.
Há bolsões de resistência? Há. O que falta, ainda, é costurá-los, ao invés de ficarmos em discussões estéreis sobre se a frente anti-fascista, anti-Bolsonaro, deve ser quilométrica, métrica, centimétrica ou milimétrica, quando deve-se buscar que ela seja tão universal quanto possível.
Não repitamos o erro dos alemães da década de 1930, quando os comunistas e os socialdemocratas não se falavam, nem eles falavam com os liberais, que não falavam com os religiosos, e todos não falavam com os aristocratas, que não falavam com os militares, que não falavam com ninguém. Os nazistas devoraram todos, tanto pelas bordas, quanto pelo cerne.
* Flávio Aguiar é jornalista, escritor e professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).
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