A frente política finalmente se pôs de pé, no Congresso Nacional, mas puxada pela extrema direita, para dar sustentação ao seu governo. Não nasceu a sonhada frente democrática. A frente de esquerda segue ainda mais distante, como longe está a frente simplesmente oposicionista, visto lhe faltarem união, programa e rumo.
A frente governista, porém, se fortalece no casamento do reacionarismo com o fisiologismo larvar. Estrutura-se para sustentar, a peso de ouro, um situacionismo envilecido que investe contra a nação e desmonta o Estado social, mas que ainda tem muitos recursos para distribuir e está disposto a pagar o preço do mercado de votos.
Urdido no submundo da pequena política, no tugúrio da caserna e nas franjas do crime organizado, esse é o mais autêntico governo da casa-grande em toda a história republicana, por isso tem o apoio sincero dos generais. Tem o apoio, no fundamental, dos grandes meios de comunicação de massa, porta-vozes dos interesses do 1% de brancos ricos e rentistas que nos governam desde a Colônia; é sustentado pelo grande capital financeiro, nacional-internacional, que jamais errou na identificação de seu lado na luta de classes. E conta com a aprovação de significativos segmentos da classe média e das populações das periferias, abandonadas pelas esquerdas quando, iludidas pela miragem da conciliação, desertaram da batalha ideológica.
Trata-se de adversário que, pelas armas que terça, impõe a unidade de ação a quem se decida a fazer-lhe frente. Essa unidade, porém, será de pouca valia se não tivermos competência para analisar o processo político das últimas décadas e nele rever nosso papel.
Em que pesem os avanços que logramos produzir, o fato é que mantivemos intocado o monopólio da terra e o império da propriedade privada, quando tínhamos o compromisso histórico com a reforma agrária; não movemos uma palha pela reforma tributária, mantendo um sistema fiscal que beneficia o capital e agrava a injustiça social; não demos um só passo com vistas à reforma do Judiciário, o centro do poder oligárquico; nos esquivamos da reforma do Estado e, ao cabo de treze anos, o devolvemos à direita como o havíamos recebido; não cuidamos da formação de nossos oficiais, deixando intocado um ensino antirrepublicano, reacionário, que alimenta a concepção de casta sem compromisso com a sociedade nem submissão ao poder civil; mantivemos o oligopólio midiático e não nos preparamos para a batalha da comunicação de massa, que assumiu novíssimos contornos na era digital. Ou seja, historicamente revolucionários, não ousamos sequer ser reformistas.
Por fim, confiamos cegamente no “republicanismo” de almanaque, na isenção do aparato jurídico-policial, ignorando que, em sociedade capitalista, as instituições servem fundamentalmente à reprodução do domínio de classe. Negamo-nos a interpretar os idos de 2013, não compreendemos o recado de 2014, nos surpreendemos com o golpe de 2016 e não pudemos impedir a prisão ilegal de Lula. Por fim, a manifestação da soberania popular rejeitou nosso retorno em 2018. E ainda há quem insista que não há o que rever…
O governo de militares e milicianos põe em marcha o projeto da classe dominante brasileira, baseado na concentração de renda e no desmonte do Estado em sua capacidade de combate à desigualdade social e à pobreza. Desmonta a soberania nacional, promove a alienação de empresas estatais estratégicas, fomenta o privatismo na bacia das almas e abre nossa economia ao pasto das multinacionais, com o auxílio de uma política externa que prima pela sabujice.
Diante disso, o que fazer?
Antes de tudo, é preciso ter claro que a fortaleza a ser destruída é o projeto reacionário da classe dominante brasileira, que tem no bolsonarismo sua mais perfeita tradução. Portanto, suplantar o deplorável governo que aí está, embora tarefa primordial, não é um fim em si nem o único desafio: precisamos, derrotando-o, vencer a direita tradicional e aquela batizada de “centro” pelos jornalões, que se apresenta como alternativa “democrática” aos mandos e desmandos do capitão.
Para esse desafio, os dados disponíveis põem em evidência que a unidade das esquerdas é um imperativo. A tarefa cobra disciplina e inteligência para superar as querelas estéreis, o desperdício de tempo e energia com o “fogo amigo”, e centrar nossa artilharia no inimigo principal.
Se o processo político acena com as eleições de 2022, é preciso ter em conta que o processo social não se resolve na disputa eleitoral quando não enseja a ruptura. E é para ela que devemos nos voltar estrategicamente, conscientes de que é preciso enfrentar o nó górdio do desafio histórico: a alteração na estrutura e na gênese do poder governante.
Vivemos, ao longo da história, todas as experiências oferecidas pelos manuais de ciência política. Transitamos da Colônia ao Estado nacional, da monarquia à República, projeto sempre por efetivar-se. Exercitamos o escravagismo e o etnocídio. Nossa história cruenta conta um sem-número de insurreições, golpes de Estado, quarteladas, eleições fraudadas, eleições legítimas e períodos de franquias democráticas ao lado de ditaduras diversas e longas, como a última, do mandarinato militar.
Nossos líderes conheceram o degredo, o exílio, a prisão, a tortura e o assassinato; governos militares cassaram mandatos eletivos e suspenderam direitos políticos de cidadãos; o Congresso foi várias vezes posto em recesso ou sitiado pelas Forças Armadas; contam-se as deposições de presidentes, o suicídio de um deles, a renúncia de outros dois, e mais de um mandatário conheceu o exílio. Nada disso, porém, alterou a composição e a natureza do poder e o mando político, intocável: o poder da casa-grande que nos governa desde sempre, mesmo quando o povo, aproveitando lapsos do sistema, elege governos democráticos e populares.
Cada vez mais se revela impensável que as reformas sociais e econômicas se façam nos termos prescritos pelo sistema. Sempre que essa perspectiva se coloca, a classe dominante intervém, a ferro e fogo, para impor o congelamento.
É preciso dar conteúdo político transformador à insatisfação e à revolta que a precarização massacrante inevitavelmente desperta. Parcelas expressivas da sociedade, com destaque para a juventude, não estão apáticas, nem indiferentes, nem inertes. Pelo contrário, mobilizam-se de formas diversas por causas igualmente múltiplas, no geral convergentes com as bandeiras da esquerda – porém, repelem as palavras de ordem e os ritos desgastantes e desgastados de nossas organizações partidárias. Precisamos dialogar com essa militância sem partido, com os trabalhadores não sindicalizados, com as populações das periferias; disputá-los com a direita e com o liberalismo que se disfarça de progressista, integrando-os ao projeto de construção socialista.
* Pedro Amaral é mestre em Relações Internacionais e doutor em Letras pela PUC-Rio; Roberto Amaral é escritor e ensaísta, e foi ministro de Ciência e Tecnologia (2003/2004).
* Pedro Amaral é mestre em Relações Internacionais e doutor em Letras pela PUC-Rio; Roberto Amaral é escritor e ensaísta, e foi ministro de Ciência e Tecnologia (2003/2004).
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